Extinguir Comissão de Anistia é ato autoritário, diz Marcello Lavenère
Clima de intolerância reabre “um período extremamente penoso”, denuncia advogado
Publicado 09/03/2020 10:56 | Editado 09/03/2020 13:05
Se o encerramento das atividades da Comissão Nacional da Anistia “se der apenas por discordância política, será um ato autoritário. Sabemos que o presidente Jair Bolsonaro é apoiador da tortura e da ditadura militar”. A opinião é do advogado alagoano Marcello Lavenère, membro vitalício da OAB.
Autor, em 1992, do pedido de impeachment do ex-presidente Fernando Collor, Lavenère presidiu a Comissão de Anistia no primeiro governo Lula. Hoje, aos 81 anos, critica a “política de intolerância” em curso no País. “Esse clima está reabrindo um período extremamente penoso, em que jornalistas e universidades eram silenciados”, diz o advogado em entrevista à revista Época. Confira.
Época: O presidente Jair Bolsonaro criticou recentemente o pagamento de pensões a anistiados políticos. No início do ano, a ministra Damares Alves disse que passaria um “pente-fino” na Comissão de Anistia. Houve “farra” na concessão de benefícios a anistiados políticos, como eles dizem?
Marcello Lavenère: Evidentemente, não. Nas diversas formações da Comissão de Anistia sempre houve pessoas conhecidas da imprensa e da opinião pública, que trabalhavam abertamente. Nada era sigiloso ou escondido. Todos os processos eram estabelecidos de maneira oficial e não havia nada que fosse clandestino. Isso não significa dizer que, num caso específico, não possa ter havido algum engano ou algum equívoco que possa ter passado despercebido. E isso pode, sim, ser revisto. Mas é absolutamente injusto dizer que no funcionamento da Comissão de Anistia tenha havido uma farra apenas com o objetivo específico de desqualificar o trabalho que foi feito por ela.
Época: Passados 35 anos do fim da ditadura militar, os trabalhos da Comissão de Anistia deveriam ser encerrados?
ML: Os trabalhos da comissão se destinam a indenizar as pessoas que sofreram danos em sua vida durante o regime. Isso significa que os trabalhos da comissão devem terminar quando todos os que foram prejudicados, que sofreram uma ilegalidade cometida pelo Estado, tiverem seus direitos recompostos. Se todos estão atendidos, então a comissão se extingue naturalmente. Não é pela passagem de 35 anos, ou mais, do fim da ditadura. Temos na história vários exemplos de restauração de direitos que se processou muito depois.
Época: Quais seriam as consequências de um eventual encerramento dos trabalhos da comissão?
ML: A primeira consequência prática seria em relação a quem tem processos em andamento ou a pessoas que ainda não procuraram a comissão. Se a comissão for encerrada antes de analisar esses casos, essas pessoas poderão ficar desamparadas em relação a um direito de reparação que está previsto em lei. Além disso, se um eventual encerramento se der apenas por discordância política, será um ato autoritário. Sabemos que o presidente Jair Bolsonaro é apoiador da tortura e da ditadura militar.
Época: Por que o pagamento de pensões a anistiados tem provocado tantas discussões no Brasil?
ML: Acho que houve uma exposição um tanto quanto exagerada e equivocada em relação aos primeiros pagamentos de indenização quando isso ocorreu, no início dos anos 2000. Havia casos de jornalistas, por exemplo, que na época em que foram perseguidos ganhavam salários altos. Como a lei previa que as reparações levassem em conta o prejuízo financeiro da vítima na época em que as violações aconteceram, algumas reparações foram consideradas altas. Isso acabou propagando uma visão equivocada sobre a atuação da comissão.
Época: Em sua avaliação, o Brasil está reconciliado com o passado, sobretudo o período da ditadura?ML: O Brasil está vivendo hoje uma situação que aumenta uma ferida que estava cicatrizando. Vivemos uma política de intolerância. Esse clima está reabrindo um período extremamente penoso, em que jornalistas e universidades eram silenciados.