Crise econômica europeia já é realidade, diz especialista italiano

Desdobramentos políticos, como o Brexit, não são as causas, mas consequências do colapso de uma dinâmica global de acumulação de capital.

O italiano Francesco Schettino - Fotografia: Andes-SN

Docente do departamento de jurisprudência da Universidade da Campânia, na Itália, Francesco Schettino se debruça há anos sobre questões referentes à economia europeia e global, em uma ótica voltada à desigualdade social. Entre outros pontos, o italiano denuncia processos que tentam nos convencer de que o abismo entre riqueza e miséria vem diminuindo quando, na verdade, se torna cada vez maior – o que submete aspectos fundamentais, como o acesso a serviços básicos e o desenvolvimento de patentes e tecnologias, aos interesses do capital. Um fosso que, é claro, não cresce impunemente.

Schettino respondeu, por e-mail a algumas perguntas do Democracia e Mundo do Trabalho em Debate (DMT). Sua visão sobre a situação econômica da Europa e do mundo é dura: para ele, já estamos em uma crise global, que organismos internacionais como o FMI tentam disfarçar com eufemismos e tergiversações.

Desdobramentos políticos, como o Brexit, não são as causas da crise: para Schettino, esses eventos surgem como consequências (ou, talvez de forma mais clara, como sintomas) do colapso de uma dinâmica global de acumulação de capital. Um cenário que coloca em risco pilares da própria democracia representativa, insinuando um novo modelo no qual a gestão da engrenagem capitalista pode exigir governos cada vez mais despóticos.

Um número crescente de especialistas têm apontado o risco de uma nova crise no continente europeu, apontando a estagnação econômica e a falta de ações de revitalização. O senhor concorda? Quais são, na sua visão, as principais características desse momento vivido pela Europa?

Francesco Schettino – Mais do que um risco, já é uma realidade. Muitos dos países tradicionalmente considerados como a “locomotiva” da zona do Euro fecharão 2019, de acordo com as últimas estimativas internacionais, com um substancial estagnação. A questão mais importante a ser observada é que, embora fatores aparentemente locais (por exemplo, o Brexit) possam desempenhar um papel importante nessa fase duradoura de asfixia, a condição tendencialmente recessiva dos países pertencentes ao continente europeu faz parte de uma crise global mais ampla que, desde 2008, praticamente não passa por fases significativas de resolução. A inundação de liquidez (também conhecida como quantitative easing) de trilhões de dólares, euros, yuan e iene serviu para adiar por alguns anos uma possível explosão da bolha especulativa que vem sendo formada ao longo do tempo. Algo que é uma consequência e, portanto, algo completamente distinto de uma causa, da crise real – ou melhor, da acumulação de capital que, a partir dos anos 1970, cria dificuldades para que a classe dominante concretize seu desejo natural de obter lucro. O FMI fala da fase atual como um “momento delicado”: estamos acostumados a reconhecer, por trás do uso desses eufemismos, algo muito mais problemático do que todos os analistas fora da ideologia dominante veem, mas que, por diferentes razões, têm dificuldade em admitir.

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) projetou, em setembro deste ano, o crescimento da economia mundial em 2,9% para 2019 e 3% para 2020. Esse é o menor índice desde a crise financeira global de 2008-2009. O que esse número nos indica?

Schettino – Este número resume, em essência, o que foi dito acima. A crise na zona do Euro não pode ser analisada fora da dinâmica de acumulação do capital mundial. Há décadas, a produção global é organizada em cadeias de produção transnacionais e transcontinentais. Portanto, é necessário e oportuno observar a crise de acumulação de capital como um todo, de forma a determinar, em nível local, um colapso mais ou menos intenso. Soma-se a isso dois elementos fundamentais que estão intimamente ligados: 1) a quantidade de liquidez em que o mundo se vê inundado após o impressionante quantitative easing fornecido pelo Fed e pela UE (assim como por outros bancos centrais ao redor do mundo) de 2008 para cá; 2) o número apavorante de títulos especulativos tóxicos, muito mais perigosos do que aqueles que agiram como detonadores da crise que surgiu precisamente em 2008. Em resumo, é provável que a economia mundial esteja uma vez mais à beira do abismo.

O senhor mencionou o Brexit, como um fator que pode desempenhar um papel importante na crise, embora são seja capaz de definir sozinho todo esse cenário. De qualquer modo, quais efeitos podemos esperar do Brexit, tanto para a economia britânica quanto para a União Europeia como um todo?

Schettino – É frequentemente citado, e de forma errônea, como uma das “causas” da crise iminente. Certamente, representa um rebaixamento, do ponto de vista capitalista, porque reduz os benefícios – em termos de lucros, bem entendido – em relação ao mercado livre. Deste ponto de vista, a redução do comércio Alemanha-Reino Unido certamente terá um efeito multiplicador (no sentido negativo) em outros países. Mas sempre frisando que a questão, como já mencionado, deve ser vista em um sentido global e holístico. A crise de acumulação da qual a economia mundial encontra dificuldades em sair há mais de uma década se deve justamente ao excesso de superprodução de bens e capital, que é imanente ao desenvolvimento do modo de produção de capital.

Em paralelo, temos visto o crescimento da extrema-direita como força política, inclusive conquistando o poder em alguns países europeus. Trata-se de uma ameaça concreta ao esforço de união continental que a União Europeia representa. O que isso reflete, em termos de angústia popular com a economia? E que riscos podem surgir de uma lógica cada vez mais nacionalista e isolacionista às economias regionais?

Schettino – É importante saber ler esse fenômeno dentro de uma dialética estrutura-superestrutura. Tentar identificar apenas no fato “político” as razões para a ascensão da extrema-direita (que se dá em todo o mundo e não apenas na Europa) seria um erro. Provavelmente estamos diante de uma mudança de fase, caracterizada por uma crise de acumulação desconhecida e duradoura que não pode mais ser gerenciada com as formas da democracia burguesa. Talvez possa ser o indicativo de uma fase “despótica” do imperialismo, na qual o desenvolvimento de forças produtivas – em particular robótica e big data – poderá desempenhar um papel crucial.

DMT – Como o senhor avalia, então, a atuação dos governantes dos principais países europeus (e mundiais) diante desse quadro econômico e de risco iminente às estruturas democráticas?

Schettino – ‘Esquizofrenia’ é a palavra mais adequada. O capital europeu, unido sob a égide do Euro como antagonista do Dólar, claramente capitulou na guerra cambial. E, portanto, agora debaixo da asa do “irmão inimigo” do exterior e apertado a leste pelo avanço da China e pela interferência russa, ele sobrevive. Mas as formas de poder nele representadas refletem, de modo evidente, seu nada extraordinário estado de saúde.

O Brasil também vive um momento de dificuldade econômica, incapaz de atrair investimentos e em um cenário que alguns especialistas já qualificam como de recessão econômica. O quanto dessa crise brasileira tem a ver com problemas globais? E qual a sua visão sobre as medidas que o Brasil parece disposto a tomar, com redução de direitos trabalhistas e de sistemas de seguridade social?

Schettino – Como já mencionado, cada país faz parte do mesmo sistema de produção de commodities. E o Brasil, como ator muito importante do capitalismo mundial, não pode evitar compartilhar – para o bem ou para o mal – da dinâmica mundial. Dito isto, fica claro que a incapacidade dos governos, atuais e anteriores, agravou uma situação estrutural que já havia sido prejudicada por uma especulação sem precedentes nos governos de PT, que fizeram uso de discursos ilusórios de milagre econômico. Parece claro que a reforma do mercado de trabalho e do sistema de seguridade social têm como objetivo permitir que o capital local e estrangeiro explore ainda mais a força de trabalho, para permitir taxas de acumulação mais adequadas e, portanto, lucros.

Fonte: Democracia e Mundo do Trabalho em Debate

Autor