Ken Loach, o cineasta pró-trabalhadores, denuncia a “uberização”
Novo filme do diretor inglês, Você Não Estava Aqui, chega aos cinemas brasileiros
Publicado 26/02/2020 12:19 | Editado 26/02/2020 16:17
Ricky Turner é casado, tem dois filhos e já fez de tudo na construção civil. Até que a crise de 2008 levou os empregos embora e arrastou a família ladeira abaixo. Com a esperança de melhorar de vida, ele investe o que tem – e o que não tem – na compra de uma van para, como autônomo, prestar serviços de entrega para uma grande empresa do setor.
Morador de Newcastle, na Inglaterra, Rick é o protagonista do novo filme de Ken Loach, Você Não Estava Aqui, que chega nesta quinta-feira (27) aos cinemas brasileiros. É um personagem ficcional, vivido pelo ator Kris Hitchen, mas poderia ser alguém de carne e osso, em qualquer parte do mundo hoje. “Você não é contratado – você embarca. Você não trabalha para nós – trabalha conosco. Você não dirige para nós – presta serviços”, ouve ele assim que chega à empresa.
Logo Rick se encontra preso às exigências de um aplicativo que controla seus passos e sua produtividade sem considerar as mínimas necessidades humanas (como ir ao banheiro) e imprevisibilidades da vida. Enquanto isso, também sem alternativa, sua mulher, Abby (Debbie Honeywood) trabalha como cuidadora terceirizada, sem folgas. Pais dedicados, eles se veem cada vez mais afastados dos filhos conforme tentam dar conta das inesgotáveis demandas da gig economy – termo para o sistema em que autônomos prestam serviços para grandes empresas por aplicativos.
Nesta entrevista ao O Globo, Loach, de 83 anos, conhecido por seu cinema em defesa da classe trabalhadora, fala sobre a “uberização” dos empregos e compartilha sua visão do Reino Unido pós-Brexit.
O Globo: Por que o senhor e o roteirista Paul Laverty decidiram discutir a uberização do trabalho?
Ken Loach: A ideia estava nas nossas mentes há algum tempo. É um filme sobre o aumento da exploração e o que perdemos. Quando você tem um emprego fixo, não pode ser mandado embora da noite para o dia, pode tirar férias e, se fica doente, ainda é pago. Quando mudamos da segurança para a insegurança, há consequências graves para as famílias, para a saúde mental das pessoas, para a felicidade. Está acontecendo com milhões e milhões de pessoas, e não falamos disso. Tratamos como se fosse um fato da natureza – e claro que não é. É um fato de um sistema econômico em que a ciência e a tecnologia não são usados para fazer a vida melhor, mas, sim, para explorar as pessoas e dar lucro a poucos.
O Globo: Nesse sentido, até que ponto a tecnologia poderia ser culpada por essa exploração?
KL: A tecnologia é útil – a questão é quem controla esse conhecimento. Se os empregadores controlam a ciência, eles a usam em seu interesse, que é cortar custos de trabalho e ganhar mais dinheiro. A ciência pode ser usada para coisas boas, como fazer as pessoas viverem mais. Mas, na indústria, é usada para explorar trabalhadores.
O Globo: O filme aborda uma questão global. Aqui no Brasil, cerca de 40% dos trabalhadores estão na informalidade. Como foi a resposta ao redor do mundo?
KL: Na Europa, as pessoas reconhecem a história, mesmo que os detalhes sejam diferentes em cada país. Também foi marcante a resposta que tivemos no Japão. Como é uma experiência tão comum ao redor do mundo, todo mundo entende.
O Globo: É comum ouvir de motoristas que trabalham para aplicativos que eles são seus próprios patrões, fazem seus horários…
KL: No começo, soa bem – parece que você vai ter essa liberdade. A maioria das pessoas com quem falamos acreditava nisso no começo. Logo, ouvimos histórias de gente que não conseguia escapar. Pegaram dinheiro emprestado para comprar a van, tinham que pagar de volta e não conseguiam. E esse é o ponto de Ricky. Conhecemos o caso de um homem que sofria de diabetes, teve de ir ao hospital um dia e foi penalizado. Então, nas outras vezes em que tinha de ir ao hospital, não foi porque não podia perder mais dinheiro. No fim, ficou tão doente que passou mal e morreu. A companhia para qual trabalhava apenas deu os pêsames e nem ajudou a viúva. Ela precisou deixar a casa e morar num lugar mais barato
O Globo: Mesmo no cenário sem saídas apresentado em Você Não Estava Aqui, ainda é possível sentir esperança?
KL: Sim! A esperança está na raiva. A esperança está em ver que algo precisa mudar. Nossa intenção era que o filme levasse o público a ver que isso é errado. Se as pessoas não sentirem algo forte com isso, nada irá mudar. Mas há outra coisa que talvez não fique explícita no filme, que estava nas nossas mentes: temos uma emergência climática. Há um desastre ambiental e temos um sistema em que cada entrega, cada item individual que você compra é enviado numa van, um de cada vez, e a van usa combustível fóssil. E isso é insustentável.
O Globo: Mas o filme também defende que esse é um sistema de trabalho que desintegra a união. AlNão são apenas sindicatos que não existem mais, os colegas de trabalho são concorrentes entre si.
KL: Sim, é isso que as empresas querem fazer. Eles suspenderam os meios de se comunicar um com o outro. Mas o filme é também um desafio para os sindicatos. Claramente há uma necessidade de mudança. É um desafio para as lideranças políticas. É dizer: “Isso é um desastre. Então, organizem-se!”.
O Globo: Você Não Estava Aqui se passa em Newcastle, mesma cidade de Eu, Daniel Blake. Podemos ver os dois filmes como parte de um só universo?
KL: Sim, essa foi a nossa intenção – de que essa família pudesse viver na mesma rua que Daniel Blake. São dois lados da mesma economia. Newcastle é um lugar onde as indústrias antigas morreram: havia mineração, que foi embora; havia a indústria de aço, que foi embora; havia construção de navios, que também se foi. Tudo o que sobrou foram esses tipos de emprego da gig economy. É uma cidade pequena, e as pessoas são muito acolhedoras, porque poucos filmes são feitos lá. É um bom lugar para contar histórias, porque as pessoas lá estão vivendo isso na realidade delas.
O Globo: O filme foi lançado no Reino Unido um pouco antes de o Brexit se tornar uma realidade. Qual impacto a saída da União Europeia poderia ter na vida das pessoas retratadas no filme?
KL: Em princípio, não mudaria. A discussão sobre os benefícios ou não de sair da União Europeia era uma briga entre dois lados da direita. A UE é um arranjo para negócios. Não é sobre solidariedade entre trabalhadores de diferentes países, senão eles não teriam tratado a Grécia da forma que trataram e não tratariam os refugiados tão mal. Parte da direita quer ficar na Europa para ter mais acesso a esse mercado, e a outra parte acha que poderá explorar os trabalhadores melhor se estiverem fora, porque não precisariam ter os padrões ambientais do bloco e poderiam cortar os salários mais ainda. Mas, em um sentido, vai piorar as coisas, porque temos um governo que quer fazer um acordo comercial com os Estados Unidos. Isso significa que a força de trabalho será mais barata, que os padrões alimentícios serão menores, que haverá mais química na comida. Definitivamente, é uma má notícia.
O Globo: Na condição de criador que faz coproduções com países europeus, como o Brexit poderia impactar no seu próprio trabalho?
KL: Ainda haverá coproduções, mas será muito mais difícil ter trabalhadores de outros países, o que é uma pena. Nos últimos filmes, tivemos pessoas da Bélgica, porque parte do dinheiro vem de lá. A maioria da nossa audiência está na Europa, não no Reino Unido, e certamente não nos Estados Unidos.
O Globo: O senhor acompanha a política e o cinema do Brasil?
KL: Não vejo tanto quanto deveria. Sei que há coisas interessantes saindo da América do Sul, leio sobre elas, mas não há tantos cinemas no Reino Unido que as exibem, e eu não vivo em Londres. Mas certamente ouvimos sobre Bolsonaro e seus ataques contra a classe trabalhadora e o meio ambiente. É muito perigoso, mas é parte de uma onda da extrema-direita, que incluiu Netanyahu em Israel, Salvini na Itália, Orbán na Hungria e Modi na Índia.
O Globo: Há planos para um novo filme?
KL: Não sei, não tenho certeza de que haverá outro. Mas há histórias para contar.