Contra o abismo, um pacto pelo licenciamento ambiental
Um apelo para que se reafirmem os compromissos de não pautar mudanças no licenciamento enquanto não houver consenso, equilíbrio, responsabilidade e transparência nas proposições legislativas
Publicado 18/02/2020 12:36 | Editado 18/02/2020 13:03
O deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP) promete levar à votação nas próximas semanas, no plenário da Câmara, o projeto relatado por ele da Lei Geral de Licenciamento Ambiental. A lei é importante por estabelecer normas que buscam uniformizar e modernizar a regulação sobre o tema. No entanto, o texto mais recente do relator faz o oposto: destrói o licenciamento no Brasil, traindo entendimentos com a área ambiental.
Como ministros do Meio Ambiente, ajudamos a construir o arcabouço existente sobre o licenciamento, sempre tentando conciliar a necessidade de agilidade com a proteção ambiental. As soluções ora propostas para a lei geral, porém, são falsas: derivam de uma noção de crescimento e de liberdade econômica arcaica e míope, que enxerga conflito onde na verdade há convergência. Não há desenvolvimento possível sem proteção do ambiente, como o Fórum de Davos deixou claro. A destruição do licenciamento ambiental não representa apenas graves riscos de novos Brumadinhos e Marianas: ela também aprofunda o abismo reputacional no qual o Brasil foi lançado no último ano.
As pressões contra o licenciamento vêm principalmente da indústria e de certa parcela do agronegócio. Tais apelos encontraram acolhida no governo de Jair Bolsonaro, cuja relação com o meio ambiente dispensa apresentações. As pastas da Infraestrutura e da Agricultura têm apresentado propostas de redução do rigor das normas. O Ministério do Meio Ambiente se cala.
A proposta de Kataguiri resgata e piora o chamado “licenciamento flex”: lista as modalidades de licença e a delega aos estados as regras sobre cada uma delas. Com isso, será gerada uma guerra antiambiental no Brasil, na qual cada ente federado busca afrouxar ao máximo suas exigências para atrair empreendimentos. Também prioriza a chamada Licença por Adesão e Compromisso, uma espécie de “autolicenciamento” sem exigência de estudo ambiental, que se aplicaria inclusive a asfaltamento de rodovias na Amazônia – sabido vetor de desmatamento e violência.
Conflitando com a busca de consenso assumida pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), as versões do texto divulgadas até agora não incorporam as análises dos ambientalistas, da Associação Brasileira de Avaliação de Impacto e do Ministério Público. Kataguiri reúne-se com as ONGs, com os órgãos ambientais e com o setor empresarial preocupado, tuíta a foto e ignora suas sugestões na sequência. Para citar apenas alguns exemplos, impactos indiretos das obras não são tratados na lei, e populações tradicionais e unidades de conservação passarão a ficar desprotegidas.
O cerco ao licenciamento não termina na Câmara: há propostas similares no Senado Federal, cujo presidente, Davi Alcolumbre (DEM-AP), declarou na COP-25, em Madri, que não aceitaria retrocessos na política ambiental nem iria “pautar matérias que possam ameaçar as florestas e os povos tradicionais”.
Complicando o quadro, o presidente da República editou uma medida provisória admitindo o licenciamento tácito por decurso de prazo para empreendimentos que não exigem estudo prévio de impacto ambiental (EIA). Isso conflita com a lei complementar 140, com a Constituição e com vários acordos internacionais ratificados pelo Brasil, além de evidenciar falta de responsabilidade nas decisões do País em torno do seu desenvolvimento.
Apelamos aos presidentes da Câmara e do Senado para que reafirmem seus compromissos de não pautar mudanças no licenciamento enquanto não houver consenso, equilíbrio, responsabilidade e transparência nas proposições legislativas. O fórum de ex-ministros do Meio Ambiente não ignora a necessidade de atualização no licenciamento ambiental e mesmo de simplificação de alguns processos, mas requer que isso seja feito sem retrocesso, que gerará riscos às pessoas, degradação ambiental e insegurança jurídica.
* José Carlos Carvalho, Edson Duarte, Gustavo Krause, Carlos Minc, Rubens Ricupero, José Sarney Filho, Marina Silva e Izabella Teixeira são ex-ministros do Meio Ambiente
Publicado originalmente na Folha de S.Paulo