Dilma: “Esquerda terá de discutir com quem defendeu Bolsonaro”
Para a ex-presidente, Brasil tem um governo neofascista executando um programa neoliberal
Publicado 05/02/2020 14:07
Para a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), a esquerda brasileira tem uma tarefa pela frente: se aproximar do povo e daqueles que apoiaram a eleição de Jair Bolsonaro. “Temos de olhar para os evangélicos, que votaram no Bolsonaro. Temos de discutir com aqueles que o defenderam porque acham e acreditam que a questão da segurança no Brasil é a questão central. E nós temos de tratar essa questão”, afirma.
Em entrevista à DW na Colômbia, onde participou do Hay Festival Cartagena – evento focado em cultura e responsabilidade social –, Dilma falou sobre as recentes convulsões sociais na América Latina e a guinada à direita ocorrida no Brasil com Bolsonaro. “No Brasil, o que você constata é a existência de um governo neofascista executando um programa neoliberal.”
Deutsche Welle: O ano de 2019 foi um ano de convulsões sociais na América Latina, vimos protestos no Chile, na Bolívia na Colômbia e também no Brasil. Qual é a polarização que existe no continente?
Dilma Rousseff: No continente todo, há uma polarização que é sobre o que acontece, em termos de como vivem as pessoas. Acredito que, primeiro, há um aumento brutal da desigualdade. As pessoas percebem que há alguns que têm muito e outros que têm muito pouco. Você tem, então, essa sensação imensa, esse mal-estar imenso. Ao mesmo tempo, como se fez um trabalho muito forte em todo esse período de descrédito nos partidos políticos e nas representações, nem sem canaliza isso, isso surge de uma forma muito forte, espontaneamente, vai para as ruas. Tem algo extremamente interessante que vi nas manifestações no Chile: havia uma inércia na população chilena, que não reagia a tudo isso que vinha perdendo há muito tempo. Por que só agora? E aí vi uma palavra de ordem que é muito elucidativa: não era conformismo, era silêncio. Não era medo, era silêncio.
DW: O Brasil deu uma guinada brusca à direita, assim como outros países que deram as costas para a esquerda, como a Colômbia há alguns anos e, mais recentemente, o Uruguai. Mas também há outros países, como a Argentina, por exemplo, que depois de uma experiência relativamente curta de um governo mais conservador, voltam ao conhecido. Em que situação se encontra a esquerda latino-americana?
DR: No Brasil, o que você constata é a existência de um governo neofascista executando um programa neoliberal. Defendem a tortura, os torturadores, dizem que não houve ditadura no Brasil. É capaz de utilizar de forma absolutamente clara todos os mecanismos possíveis para perseguir artistas, para desrespeitar educadores, desrespeitar a autonomia universitária, desrespeitar o direito, desrespeitar jornalistas. Eles têm de conviver com isso. Têm de conviver com a defesa da tortura, com a defesa da violência. Têm de conviver com as relações bastante estranhas que existem entre certos segmentos da milícia e setores do governo Bolsonaro.
DW: O que pode fazer a esquerda brasileira para recuperar o eleitorado que optou por esse presidente?
DR: A esquerda vai ter de ter um trabalho junto ao povo cada vez mais. Temos de olhar para os evangélicos que votaram no Bolsonaro. Temos de discutir com aqueles que defenderam o Bolsonaro porque acham e acreditam que a questão da segurança no Brasil é a questão central. E temos de tratar a questão da segurança. Vamos ter de voltar a todas essas esferas de atuação das pessoas. Onde está o povo brasileiro é onde teremos de estar. Só tem esta forma. Há que ter uma discussão sobre como construir um novo modelo que de fato seja aquele que atenda aos interesses das pessoas, que não torne as pessoas tão infelizes como estão. Essa forma de economia que leva a essa tamanha desigualdade não é consensual. Enquanto você achar que é consensual e agir como tal, não haverá alternativa pela esquerda contra esse processo. E aí tem campo fértil para, por exemplo, um Trump atribuir todo o processo de concentração de riqueza e renda dos Estados Unidos ao imigrante mexicano.
DW: Em que medida você que crê que a eleição de Jair Bolsonaro foi uma consequência direta dos protestos que estouraram no Brasil em 2013?
DR: Não diria uma consequência direta dos protestos de 2013 – movimentos sociais sempre são mais complexos. Mas é certo que, naquele movimento de 2013, houve um caldo de cultura no qual se desenvolveram alguns monstros – as organizações de direita, de extrema direita, que pela primeira vez apareceram claramente no cenário nacional. Além disso, houve, naquele momento, a visão, por parte de alguns, de que seria possível começar a manipular as coisas. Eu, especificamente, nunca quis dar muita importância às teses e teorias a respeito da influência americana nesse processo de golpe. Achava que a elite brasileira é suficientemente golpista para não precisar dos EUA para dar golpe. Toda a relação entre a Lava Jato e o Departamento de Justiça americano, quando descubro que eles fizeram um acordo, e pelo acordo, os procuradores, que são funcionários públicos, e funcionário público não pode receber dinheiro de outro país, criaram uma fundação com R$ 2,5 bilhões, uma fundação para trabalhar a corrupção. O escândalo foi tão grande que o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e o próprio Ministério Público (MP) os mandaram devolver o dinheiro. E por que o Departamento de Justiça americano tem essa relação tão aberta com eles? Então, alguns fatos me levaram a reconsiderar e achar que pode ter tido uma influência. Acredito que ali teve uma pré-estreia. Não acho que a razão está ali. Temos de reenquadrar o Brasil. O Brasil está saindo de um processo em que ele deve ser enquadrado econômica, social e geopoliticamente. Nunca se esqueça de que fomos responsáveis pelo surgimento dos Brics, participamos ativamente do G20 e jamais votamos a favor de nenhuma intervenção militar em todo nosso período de governo.
Com informações da Deutsche Welle