Irã, Estados Unidos e a geopolítica do Grande Oriente Médio
Públicas e notáveis são as tensões que permeiam as relações entre Irã e Estados Unidos da América desde a revolução […]
Publicado 07/01/2020 20:24
Públicas e notáveis são as tensões que permeiam as relações entre Irã e Estados Unidos da América desde a revolução de 1979, que levou à implantação da República Islâmica. À época, a ditadura do Xá Reza Pahlavi recebia extensa assistência dos EUA – 24.000 americanos auxiliavam o regime nas mais diversas atividades -, visando fortalecer sua posição numa das fronteiras mais quentes da Guerra Fria. Para além de sustentar parte da aliança militar que estabelecia na região, o apoio ao Xá também advinha da necessidade de frear a onda nacionalista, instrumentalizada pelos comunistas, que há décadas ascendia nos territórios desta civilização, herdeira do milenar Império Persa. Afinal, não fora apagada da memória iraniana a chamada Operação Ajax – dirigida pela CIA e o M16 em 1953, dois anos após o parlamento nacionalizar o complexo petrolífero do país -, resultante na queda do então primeiro-ministro Mohammad Mossadegh e na execução de lideranças do partido comunista, o Tudeh, e do Partido Nacional.
Nas gigantescas manifestações de 1979, prevaleceu a força do fundamentalismo xiita, personificado na figura do Aiatolá Khomeini, derrotando a ditadura do Xá mas também a burguesia liberal e o próprio Tudeh, que, vinculado à URSS, disputava os rumos da revolução. Mesmo que distante do marxismo, o novo regime representava evidente ameaça aos interesses estadunidenses na região. Ainda na esteira das manifestações, a crise dos reféns americanos – na qual 52 estadunidenses foram mantidos reféns por um grupo de militantes islâmicos – potencializou as turbulências, ainda mais após a missão militar de resgate, tentada pelos EUA em 1980, fracassar de forma vexatória, ferindo também o orgulho nacional norte-americano.
O que interessa notar é que, destes eventos em diante, a rivalidade entre EUA e Irã apenas seria amplificada, repercutindo no conjunto das movimentações regionais no Grande Oriente Médio. De pronto, uma série de sanções unilaterais seriam adotadas pelos EUA, estabelecendo embargos comerciais ao Irã e pressionando terceiros países a fazerem o mesmo, ao tempo em que influenciava as coalizões da fratricida Guerra Irã-Iraque, que por 8 anos consumiria o regime xiita numa guerra santa contra o vizinho, então dirigido por Saddam Hussein. Da mesma forma, seria cessado todo e qualquer apoio dos EUA e das potências ocidentais ao programa nuclear iraniano – criado na década de 1950, e que vinha sendo potencializado com especial ajuda de EUA, França, Alemanha Ocidental, África do Sul e Israel. Progressivamente, a república islâmica se aproximaria de China e Rússia, após lapsos de cooperação com o Paquistão, para prosseguir com seu programa.
A influência exercida pelo Irã sobre agrupamentos políticos e militares no Líbano, Palestina, Síria, Iraque, Iêmen, Afeganistão, dentre outros, manteve uma espécie de Nova Guerra Fria no Grande Oriente Médio, que persiste até os dias atuais, com os iranianos antagonizando EUA, Israel e Arábia Saudita em diversos cenários. Mas foi na primeira década do século XXI que as escaramuças se acirraram: se por um lado os eventos do 11 de Setembro e a Guerra Global ao Terror desencadeada por Washington afirmaram o Irã no chamado Eixo do Mal, por outro a denúncia, de 2002, acerca de atividades nucleares não-supervisionadas no Irã acendeu o sinal de alerta sobre o programa nuclear do país. Para piorar, em 2003 a Coreia do Norte denunciaria o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), detonando seu primeiro artefato militar nuclear em 2006: mesmo parte do TNP, nada impedia que o Irã tomasse medida similar aos norte-coreanos.
Nesse quadro, seriam intensificadas as ondas de sanções unilaterais, por parte dos EUA, e multilaterais, com aprovação do Conselho de Segurança da ONU, ao Irã, visando obstar a evidente atividade nuclear clandestina em seu território, que poderia evoluir para além dos fins pacíficos então alegados. A China sempre buscou evitar a adoção de medidas que cerceassem as exportações energéticas iranianas, que ascendiam espetacularmente em direção ao gigante asiático, ao tempo em que a União Europeia também tergiversava, buscando meios de atingir uma solução pacífica, dados os investimentos que possuía, até então, no setor energético do país. Ainda assim, tanto as gestões do Conselho de Segurança quanto as de atores externos – como a Turquia e o Brasil na Declaração de Teerã, de 2010 – fracassaram, durante anos, em chegar a um acordo plausível para as partes. Quando atingido, acabava reprovado pelo parlamento iraniano ou por alguma das grandes potências envolvidas nas negociações.
Foi no contexto de inflexão da política externa estadunidense para o Oriente Médio que se chegou, finalmente, ao Joint Comprehensive Plan of Action (JCPOA), em 2015, impondo restrições ao programa nuclear iraniano que permitissem uma verificação confiável de suas finalidades pacíficas. Em contrapartida, o país veria retiradas as sanções de bloqueio financeiro e comercial às quais estava submetido, além de descongelar seus bilhões de dólares então retidos no exterior e voltar a ter permissão para a compra de aeronaves. No entanto, inúmeras seriam as repercussões do acordo no contexto geopolítico da região. Ao mesmo tempo em que abria portas para investimentos ocidentais no Irã (possibilitando reduzir a imensa ascendência econômica chinesa sobre este), também fortalecia estruturalmente o país, que vinha demonstrando imenso vigor na capacidade de exercer influência em outros importantes cenários do Oriente Médio. Ou seja, se por um lado abria as portas para os EUA dialogarem com o Irã visando a resolução de conflitos como os da Síria, Iraque e Afeganistão – possibilitando o cumprimento da promessa eleitoral de Obama, de gradual retirada das tropas estadunidenses destes sítios -, por outro afrontava estrondosamente os interesses de Israel e Arábia Saudita, ao verem um Irã fortalecido na Guerra Fria que paira sobre a região.
Valendo-se destas contradições, Donald Trump não titubeou em catalogar, ao longo de sua campanha, o JCPOA enquanto “o pior acordo do mundo”, enfatizando as cláusulas que gradualmente terminariam, em 15 anos, com as restrições inicialmente impostas. Cabe observar que o megaempresário sionista Sheldon Adelson, com profundos vínculos com o governo israelense de Benjamin Netanyahu, foi o principal doador individual nas campanhas eleitorais estadunidenses de 2016, atingindo a cifra de nada menos do que 82 milhões de dólares em doações para Trump e outras candidaturas do Partido Republicano. O primeiro país a ser visitado por Trump após sua eleição foi a Arábia Saudita, com a qual assinou o maior contrato de venda de armas da história dos EUA, chegando às cifras de cerca de 110 bilhões de dólares. É muito provável que Riad tenha colocado na mesa de negociações o isolamento de Teerã. O fato é que, em 2018, os EUA se retiraram do JCPOA, retomando as sanções unilaterais, ao tempo em que ameaçavam empresas e terceiros países que não fizessem o mesmo.
Hoje, Trump encontra-se emparedado por uma ofensiva oposicionista interna que avança em prol de um processo de impeachment. Ainda que debilitando o Irã com a retomada das sanções e o boicote aos acertos do JCPOA, as gestões do governo Trump parecem ter sido insuficientes para garantir a total lealdade de parte de seus mais importantes aliados, e financiadores, para os momentos decisivos que antecedem não apenas as votações do impeachment, mas também a próxima corrida eleitoral. Assim, além de adotar a agenda prioritária de parte de suas bases de sustentação, também recorre à histórica prática de criação do inimigo externo, tentando dar coesão à política doméstica estadunidense – artifício reiteradamente utilizado em tempos de disputas por reeleições.
No cenário externo, a incapacidade de imposição dos EUA em cenários como os da Venezuela, Síria e Coreia do Norte, além das sucessivas dificuldades nas rusgas com China e Rússia conformam um panorama de relativo fracasso das opções do governo. Na tentativa de ampliar sua presença no Oriente Médio, provocando fricções e convulsões, corre o risco de conformar novos alinhamentos regionais – repetindo casos como os que resultaram na inflexão da diplomacia turca, no fortalecimento da presença russa na Síria e na aproximação sino-iraniana, fruto das sanções ao programa nuclear do Irã. Num quadro internacional de instabilidade política e crise econômica, o brusco movimento que resultou no assassinato de Qasem Soleimani – em mais uma flagrante violação do direito internacional por parte dos EUA – conforma um panorama de profunda incerteza. Este evento deve ser percebido como resultante do entrelaçamento do conjunto destas contradições e tênues movimentações de aliados, inimigos e terceiros elementos que ainda não se posicionaram no tabuleiro.
Até o momento, apenas Israel se posicionou de forma mais veemente apoiando a gestão estadunidense. A discrição saudita em muito remete à hábil estratégia chinesa, que há décadas vem balanceando suas boas relações com Irã e Arábia Saudita, visando atraí-los para sua órbita pela via da preponderância comercial nos seus respectivos mercados. Os satélites iranianos nos demais países da região mantêm seus postos, aguardando orientações de um regime que acaba de perder uma de suas mais nobres figuras, um estrategista de difícil reposição: o homem que era comandante da unidade especial de guerra irregular e operações de inteligência, a Força Quds; que se somou aos esforços para liquidar o Estado Islâmico; e responsável pela articulação do chamado Eixo de Resistência, envolvendo forças políticas no Líbano, Síria, Iraque, Palestina, dentre outros.
A futurologia não é um exercício que costuma triunfar nas análises políticas. No entanto, algo evidente resta ressaltar. O Irã é herdeiro de uma civilização milenar, que resistiu às mais diversas invasões e privações. Contemporaneamente, encontra-se em franca oposição aos desígnios do mais poderoso país do mundo – economicamente e militarmente – há pelo menos quatro décadas. Àqueles que esperam por uma resposta rápida e desequilibrada: esqueçam. O sistema internacional passa por um explícito período de transição, no qual os EUA perdem progressivamente a capacidade de manter sua hegemonia, e a China aparece enquanto a mais forte candidata a ascender ao primeiro posto global, tendo no projeto da Nova Rota da Seda o baluarte de sua estratégia corrente. O Irã é um país-chave nisso tudo, não apenas pela questão energética, mas pela sua posição territorial crucial para a integração Eurasiática. Nos últimos anos, o país logrou importantes vitórias na Síria e no Iraque, colaborando robustamente no esfacelamento do temido Estado Islâmico.
Com certeza, um contra-ataque será orquestrado. No entanto, não virá em 280 caracteres, tampouco desprovido de uma reflexão afim às pretensões do país por ora atacado. Os iranianos sabem onde estão, o que representam, e o porquê de serem atacados. Sabem que o atual episódio se trata de uma isca para que o país se torne o epicentro de uma nova guerra no Golfo. Mas também sabem das dificuldades que os EUA teriam em sustentar a invasão de um país grande, populoso, com condições geográficas dificultosas, com importante base urbano-industrial e com expressivo grau de legitimidade e coesão política das forças governantes. Portanto, a resposta tende a tomar contornos indiretos, e aguardar seu tempo propício.
Por fim, Teerã também sabe que a prioridade resta em fortalecer sua influência no plano regional, ao tempo em que consolida suas relações com a Rússia e a China no plano global. A resiliência iraniana ao cerco dos EUA e as recorrentes rusgas entre os dois países apontam não para uma escalada militar de gigantescas proporções, mas para a adoção de minuciosos cálculos de poder, e quiçá o estabelecimento de um novo equilíbrio para a retomada das negociações. É fato, contudo, que os quadros de transição sistêmica tendem a conformar eventos disruptivos. Se ocorrerão, apenas o tempo e as decisões políticas dirão.
Por Diego Pautasso, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); e Tiago Nogara, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (PPGRI), da Universidade de Brasília (UnB).
Fonte: Portal Disparada