Os deserdados do capitalismo são a base social do autoritarismo
“Na crise, a classe dominante conserva o poder”. Artigo de Roberto Amaral
Publicado 21/12/2019 15:12 | Editado 22/12/2019 00:40
Nos momentos de crise, e na antessala das rupturas históricas, setores ponderáveis das grandes massas desorganizadas e da chamada classe média tendem a procurar porto seguro para sua insegurança. O medo diante das dúvidas relativas ao futuro, quando o presente começa a ruir sob seus pés, estimula o apelo ao conservadorismo que lhes chega pelas mais diversas vias, todas elas conduzindo ao retrocesso político. Não é outra a lição das primeiras décadas do século passado. A violência da sociedade de classes que mais atinge as populações das periferias urbanas, ceifando jovens pobres, em sua maioria negros, extrai dessas massas desamparadas o que elas carregam de mais retrógrado. Os banidos pelo neoliberalismo, arcaísmo que, no entanto, prevalece entre nós, dão corpo e alma às forças do atraso e do autoritarismo, na busca da fantasia da segurança.
Por Roberto Amaral*
Os deserdados do capitalismo são a base social do autoritarismo, e assim se dão as mãos oprimidos e opressores, pois o autoritarismo é o instrumento mediante o qual, na crise, a classe dominante conserva o poder.
As circunstâncias brasileiras pouco têm de especificidade, inserindo-se no quadro geral de retrocesso político que domina as democracias ocidentais, cujos espaços institucionais não são mais suficientes para a representação dos conflitos, que crescem na medida em que mais se afirmam as políticas neoliberais que, celeremente, vão derrogando o Estado do bem-estar engendrado pela social democracia europeia para fazer face aos avanços do socialismo no pós-Segunda Guerra Mundial.
O quadro comum da crise democrática é marcado pelo esvaziamento da democracia representativa, com o declínio dos direitos políticos e das liberdades civis e a crise de legitimidade das instituições republicanas ocidentais. Causa e efeito ao mesmo tempo, destaca-se a falência dos partidos políticos, os quais, na sua grande maioria, em quase todo o mundo e entre nós, foram reduzidos ao simples papel de siglas sem capacidade de mobilização social significativa.
Os fatos recentes, as verdadeiras irrupções sociais que unem, na revolta, o velho continente e a América do Sul – França, Espanha (e de certa forma o Reino Unido do Brexit) ao lado de Colômbia, Equador, Chile e Bolívia – desconheceram os partidos políticos, à esquerda e à direita, e não produziram novas lideranças populares, nem mesmo lideranças empresariais, políticas ou religiosas, pondo em questão a sustentabilidade de suas conquistas.
Boris Johnson, o vitorioso premier britânico, é descrito pela The Economist como chefe do “governo mais impopular já registrado”, mas seu oponente, o líder trabalhista Jeremy Corbyn, é apontado, na mesma matéria, como o “líder mais impopular da oposição”, chefiando um partido trabalhista “cada vez mais sem identificação com os trabalhadores”.
A quase falência da ordem partidária – nesse sentido as eleições brasileiras de 2018 oferecem um bom campo de estudo – não é, porém, um fato isolado, pois é preciso considerar a retração das instituições da sociedade civil, o recuo do movimento social e de suas organizações, e, certamente o quadro mais preocupante, a crise de representação, responsável pela anomia do movimento sindical brasileiro.
Entre nós, e em quase todo o mundo, a crise da representação tem funcionado como trampolim para o avanço das ações, das políticas e do pensamento de direita e de extrema-direita, galvanizando governos e avançando sobre segmentos populares tradicionais na sustentação do discurso trabalhista e de esquerda de um modo geral.
Hoje, na Europa, são reconhecidos como de direita ou extrema-direita os governos da França, da Inglaterra, da Hungria, da Polônia, da Áustria e de quase todos os Estados do antigo Leste europeu.
O gabinete conservador de Angela Merkel, em final de vigência, pode ser substituído por um governo de extrema-direita, e Itália e Espanha (está às voltas com os pleitos separatistas) vivem frágil equilíbrio após a derrota da direita nas últimas eleições parlamentares. De direita é o governo da maior potência do mundo e na direita, qualquer que seja o resultado das eleições, permanecerá o governo de Israel, enclave dos EUA no Oriente.
Dado precioso na recente e acachapante derrota do Partido Trabalhista inglês – o pior desempenho desde 1935! – é o avanço dos conservadores sobre a classe operária e redutos tradicionais da esquerda inglesa, refazendo os passos da vitória de Donald Trump ao garimpar votos em colégios democratas. Esse movimento, aliás, já havia sido a base das vitórias de Ronald Reagan e Margareth Tatcher. A propósito, deve-se a Steve Bannon, um dos mentores do bolsonarismo, a afirmação segundo a qual o trumpismo transformou “o Partido Republicano num partido da classe trabalhadora” americana.
Para uma ilustração doméstica, lembremos a eleição de Bolsonaro, para a qual foi decisiva a conquista de setores consideráveis da classe média e das grandes massas, setores que, em sua maioria, ainda o acompanham no apoio ao governo.
O desafio com o qual o processo histórico põe em xeque os partidos se aplica de forma ainda mais contundente para a ordem sindical. O fim da fábrica moderna e a introdução da robótica e de outras conquistas da tecnologia no processo produtivo, liberando a mão de obra (processo crescente e inevitável), reduzem a massa trabalhadora e por consequência a força política e estratégica dos sindicatos. Este é o preço arguido pela modernidade. Mas, de outra parte, agravando a crise sindical, o arcaísmo do neoliberalismo, de par com o desemprego massivo, libera um novo lupemproletariado, ou subproletariado, um precariado formando exércitos de reserva, trabalhadores “por conta própria” sem vínculo empregatício, sem vida sindical, trabalhadores de aplicativos, uberistas e similares, determinando, de uma forma ou de outra, a expansão do número de trabalhadores atuando na informalidade, o que significa menos trabalhadores em fábricas e empresas e escritórios e mais trabalhadores nas ruas, mais motoristas autônomos, mais ambulantes, mais entregadores em motocicletas, bicicletas e patinetes. Ou seja, um exército disperso nas cidades, sem tradição de vínculo sindical ou associativo.
Entre nós a crise do sindicalismo foi agravada, ao lado de outros fatores estruturais e políticos adstritos à vida sindical, pela reforma trabalhista e pelo fim da contribuição sindical, e poderá ser ainda mais atacada se o governo conseguir, como pretende, pôr fim à unicidade sindical.
O fato objetivo é que, apenas a um ano das reformas, nada menos do que 1,552 milhão de trabalhadores deixaram de ser sindicalizados, como revela a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) do IBGE. A taxa de sindicalizados é de 12,5% do total de trabalhadores brasileiros (92,333 milhões), o menor indicador desde 2012, quando teve início a série histórica.
A tendência, em curso, na vigência da globalização capitalista e do neoliberalismo, é a precarização das condições de trabalho, desafiando partidos e sindicatos, o que passa a exigir das lideranças políticas e sindicais a invenção de novas formas de organização e de ação política, que requer a participação da cidadania nas mais diversas frentes de luta, a começar pela resistência ao bolsonarismo em suas diversas expressões, seja o autoritarismo político, seja o projeto neoliberal de desconstrução do Estado nacional.
Isso implica compreender que o país mudou – e mudou a correlação de forças – e que precisamos mudar para poder acompanhar, na vanguarda, o processo histórico.
*Cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-presidente do PSB. Autor de “Socialismo, Morte e Ressurreição” (Editora Vozes).