Publicado 07/12/2019 22:40
Uma longa estrada de terra, ladeada por muitos galhos retorcidos pela seca, desemboca na fazenda Não me Deixes, em pleno sertão central cearense —onde a escritora Rachel de Queiroz passava longas temporadas todos os anos. Nascida em Fortaleza em 1910, Rachel se mudou com a família para o Sudeste brasileiro depois de uma grande seca. Retornou ao Ceará ainda criança. Ali terminou os estudos e escreveu o livro O Quinze, um retrato social da seca que a consagrou quando tinha apenas 18 anos de idade.
Saiu de lá para se instalar no Rio de Janeiro, onde foi ampliando os espaços para a mulher na literatura brasileira: foi a primeira a ganhar o Prêmio Camões e a primeira a ingressar na Academia Brasileira de Letras. Embora tenha vivido em terras cariocas até morrer aos 93, nunca cortou vínculos com o sertão. Voltava à sua fazenda todos os anos, sempre no simbólico be-erre-o-bró, a época mais quente no ano, dos meses terminados em bró. O dia da chegada da escritora era um acontecimento na região, e o alpendre da casa grande se enchia de gente de todas as idades, a maioria afilhada de Rachel, para recebê-la.
“Dona Rachel, do jeito que acolhia o rico, acolhia o pobre”, conta a agricultora Maria Alzenir Pereira, de 76 anos, enquanto observa o mesmo alpendre agora esvaziado. Vez por outra, ela coça a cabeça coberta por um chapéu de pano rosa e pergunta para a filha Nize, atual gerente da fazenda, se um grupo que marcou visita já está pra chegar. Parece ansiosa. De tanto ouvir Rachel de Queiroz dizer que a fazenda Não me Deixes não podia acabar, quer ver a casa cheia. E conta da fartura de café, cuscuz e bolos colocados na ampla mesa de madeira da sala. Estas são cenas que pelo menos três gerações da família dela se esforçam para manter vivas, trabalhando ali no roçado e na contação de uma história que é também delas, mais de quinze anos depois da morte da escritora. “Pra mim a dona Rachel não morreu, não. É como se ela tivesse feito só uma viagem, como fazia sempre”, diz Alzenir.
Para a família Pereira, Rachel de Queiroz é como um personagem marcante que se espalhou por aquela terra e agora não se acaba mais. Está no chalé ao lado do açude, onde escrevia seus textos sentada em uma pequena escrivaninha de madeira que segue ali tal qual deixou. Na cabeceira da mesa da sala, onde dava a merenda aos amigos e onde discutiu tantas vezes seus escritos com a irmã dela, Maria Luiza. Está na sua própria obra, acomodada em uma estante de madeira e vidro regularmente limpa por seus afilhados. Está até na certidão de nascimento que Nize, filha de Alzenir, que se recusa a tirar uma segunda via pra não perder no documento a assinatura da madrinha escritora, testemunha de sua existência oficial. Nize é mãe de Daniel Victor, hoje guia turístico na fazenda, e a terceira geração que ajuda a desenhar a memória da escritora com as suas próprias.
Rachel segue mais pulsante mesmo é na cabeça de Alzenir, que depois de idosa começou a escrever versinhos de cordel. “Aqui e acolá dona Rachel dizia uns versinhos pra gente achar graça. Eu tenho pra mim que esses versinhos que eu decoro hoje é ela quem sopra no meu ouvido”, diz, enquanto folheia alguns cadernos nos quais anota com dificuldade algumas estrofes. A maioria delas Alzenir guarda é na memória mesmo e, sem qualquer papel por perto, recita as histórias da fazenda que virou área protegida pelo Ibama pela diversidade vegetal da caatinga, refúgio da autora de O Quinze e pilar da sua família.
“Escreveu Rachel de Queiroz na consciência da vida / que a fazenda Não me Deixes não pode ser destruída / Falou logo com o Ibama pra não ser invadida / Eu amo minha fazenda / amo meu imóvel estimado / as madeiras vegetais / as melhores, de qualidade / cumaru, pau branco e preto, pau d’arco e a violeta / Das plantas medicinais, não posso me esquecer, lá nas margens do meu açude / Nem da flor do moçambique / Ela era poderosa no mandado e no poder / Foi ser Rachel de Queiroz / Seu nome ficou no mapa pra ninguém mais esquecer”.
Alzenir conheceu Rachel de Queiroz aos nove anos de idade, quando via a moça que estudava em Fortaleza chegar de trem na cidade de Quixadá enquanto brincava com as amigas próximo aos trilhos. Uma imensa desigualdade dividia a história delas duas. Alzenir cresceu ajudando os pais na roça, acostumada a ver a falta de chuva ressecar o mato e ameaçar a sobrevivência dos seus. “Meu saber é pouco. Não estudei muito porque era da roça, né? Não tinha tempo”, ela diz. Nunca conseguiu ler um livro completo de Rachel de Queiroz, mas da varanda de casa (vizinha à casa grande da fazenda) vai enumerando, um a um, os títulos da amiga. “Costume mesmo com dona Rachel eu só peguei quando vim morar na fazenda aqui, nos anos 1970”, conta. Alzenir passava com frequência pelas terras da família Queiroz enquanto tangia o gado na infância e na adolescência. Viu os trabalhadores erguerem os primeiros alicerces para construir a Não me Deixes e foi ali, naquelas passagens diárias e pequenas paradas para conversar, que ela conheceu o marido, Manoel, trazido da fazenda dos Queiroz de Fortaleza para cuidar do terreno onde a escritora construiu seu refúgio.
Rachel de Queiroz havia ganhado aquelas terras do pai ainda na infância e, seguindo as instruções dele, construiu, muitos anos depois, uma casa voltada para o nascente, um açude e um curral. Uma realidade social distante da de Alzenir, que lembra emocionada da multidão que se reuniu na inauguração da fazenda em uma festa tão farta que entrou pro imaginário da região. “Tinha gente que chorava de tanta fartura. Era carne assada, tacho de doce, tudo”, conta. E diz que não podia imaginar que, anos depois se apaixonaria pelo gerente e criaria naquelas terras suas duas filhas, ambas afilhadas da escritora. “Casei no poder dos Queiroz igual os pais do meu marido”, ela diz.
Alzenir perdeu as contas de quantas vezes precisou deixar o roçado mais cedo para percorrer 30 quilômetros para levar os artigos escritos por Rachel de Queiroz para os jornais do Sudeste até os Correios em Quixadá. Lembra que “dona Rachel” costumava chamar suas filhas, crianças, e depois o neto para se deitar com ela em uma rede armada do alpendre. Ali, lia para eles e mostrava ilustrações dos livros. “Ela dizia que meu neto Daniel Victor era a sétima geração da nossa família com a família dela”, diz. Isso porque o tataravô de Manoel já trabalhava para a família Queiroz em Fortaleza.
Aos 21 anos, Daniel Victor lembra vagamente dessas cenas. A escritora morreu quando ele tinha apenas cinco anos, e ele cresceu sem conseguir entender direito a reverência exagerada que os familiares nutriam pela ex-patroa. "Eu não tive muito o contato direto com ela, mas cresci no ambiente onde ela viveu e gostava. E a reverência da minha família foi despertando em mim uma vontade de conhecer melhor essa história”, conta. Daniel foi então fazendo perguntas aos avós, pais e tios. Descobriu uma Rachel de Queiroz que tinha influência na sociedade brasileira, mas que preservava a essência do sertão. Ouviu tantas vezes que ela conseguiu transformar o cotidiano duro da seca em poesia, especialmente pelo livro O Quinze, que lhe despertou admiração. “Rachel de Queiroz pra mim é sinônimo de inspiração e coragem”, define.
Daniel acabou virando guia, quando os dois sobrinhos e únicos herdeiros de Rachel de Queiroz aceitaram abrir a propriedade privada para visitação pública. Ali não há programação definida. É preciso marcar com antecedência com os próprios caseiros, que cobram uma taxa de 50 a 120 reais por veículo. Daniel então deixa sua casa em Quixadá, onde agora cursa Engenharia, e vai contar aos turistas as histórias que ouviu a vida toda. Acaba por narrar também as próprias raízes. "Meu bisavô por parte de pai nasceu na fazenda dos Queiroz, em Fortaleza. A gente tem o dever de manter viva a história da Rachel, e acho que nós estamos inseridos nela”.
A mãe dele, Nize, gerencia a fazenda desde que o pai Manoel morreu, há dois anos, e se preocupa em garantir alguns quitutes à venda para os visitantes. Enquanto organiza a merenda, conta dos tempos em que seus pais eram acordados de madrugada com a chegada de famosos em pleno sertão. “Meu pai contava que Luiz Gonzaga chegou uma vez meia-noite tocando Asa Branca porque era uma música que a madrinha Rachel gostava. Ela nunca se incomodou com visita, e a gente aprendeu com ela a receber”, diz. Nize então pede desculpas porque, especialmente naquele dia, não teve tempo de fazer um bolo que era receita de sua avó e que Rachel de Queiroz gostava tanto que incluiu no livro “Não me Deixes: suas histórias, sua cozinha”. “Eu sempre trago em dia de visita. O bolo é escuro porque tem rapadura. Tem gente que faz cara feia, mas quando eu falo que a madrinha Rachel gostava, todo mundo quer”, diz, aos risos.