Samuel Costa: O combate à corrupção nos períodos Lula e Dilma
Apesar da opinião pública contrária, é inegável que os principais avanços nos instrumentos e nas estratégias de combate à corrupção foram implantados pelos governos de esquerda (2003-2016). O pequeno – mas necessário – distanciamento temporal em relação à experiência das gestões Lula e Dilma já nos permite hoje saber que a associação entre corrupção e esquerda é fruto, sobretudo, de uma narrativa espetacularizada.
Por Samuel Costa*
Publicado 27/11/2019 06:55
Em vez de traçar uma avaliação assertiva sobre o período, essa narrativa, desdobrada paulatinamente em capítulos, baseia-se em evidente articulação entre os principais veículos de comunicação, visando um objetivo político comum. Mas, com as atuais e contínuas derrotas sofridas pela Operação Lava Jato, a narrativa da “esquerda corrupta” também tende a se esfarelar.
Assim, torna-se necessário recordarmos as principais medidas de combate à corrupção aplicadas na era Lula/Dilma, a fim de ressaltar a singular contribuição que essas gestões efetivamente deram no combate ao crime. É uma forma também de descontruir a narrativa oportunista que, somada a outras, serviu de base para o golpe de 2016 e a prisão política de Lula em abril de 2018.
Sob os governos da esquerda, a ampliação da autonomia da Polícia Federal (PF) e do Ministério Público Federal, por exemplo, mostrou avanços significativos. No caso da Polícia Federal, houve contratação de agentes e delegados, substancial aumento de seu orçamento e um número maior de operações. Já no âmbito da chefia do Ministério Público da União, a nomeação do procurador-geral da República (que é de competência do presidente, com aprovação do Senado) passou a seguir, em 2003, a indicação via lista tríplice. Ou seja, o próprio corpo técnico da instituição, através de votação interna na Associação Nacional dos Procuradores da República, elabora uma lista par sugerir que o presidente nomeie um dentre os três nomes mais votados.
No texto constitucional, a escolha ainda é de competência privativa do presidente. Mas a observância da lista tornou-se uma tradição republicana de fortalecimento da instituição e de valorização de indicações técnicas. Após 16 anos, tal tradição foi absolutamente ignorada pelo atual presidente, Jair Bolsonaro, que indicou um procurador cujo nome não foi recomendado pelos seus pares na lista.
Vale recordar também a relação institucional entre os poderes da República, que garantiu ao STF a independência necessária para julgar, condenar e prender integrantes do alto escalão do próprio governo. Não houve qualquer interferência ou ameaça por parte do Poder Executivo nas funções da Corte, apesar das possíveis críticas jurídicas, em especial à tão debatida Teoria do Domínio dos Fatos. A própria condenação de um ex-ministro-chefe da Casa Civil, como José Dirceu, mesmo sendo passível de severas contestações, seria inimaginável em outras democracias emergentes, como Rússia ou Turquia.
Esse fato, por si só, revela uma postura comprometida dos governos petistas com o bom funcionamento das instituições democráticas, ao não se utilizar da máquina pública para influir nos rumos do “caso mensalão”. Bolsonaro e seus correligionários, ao contrário, ameaçam constantemente a atuação independente do Judiciário, defendem abertamente um novo estado de exceção com o fechamento do STF e, mais recentemente, interferiram diretamente na produção de provas e investigações sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL).
No que tange às ferramentas legais de combate à corrupção, é possível destacar a especial importância do governo Dilma. Em sua presidência, houve um efetivo empenho em modernizar e aperfeiçoar a legislação existente. A título de exemplo, podemos citar:
– A publicação da lei de organizações criminosas (Lei 12.850/2013), que regulamenta algumas das principais ferramentas investigavas usadas no combate aos crimes de colarinho branco, como a colaboração premiada, ação controlada e infiltração de agentes polícias;
– A lei de conflito de interesses (Lei 12.813/2013), que, apesar de não tratar diretamente sobre corrupção, visa impedir que interesses privados se apropriem da administração pública, dificultando ainda mais qualquer ação criminosa;
– A Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013), que trouxe a responsabilização das pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, permitindo que as instituições também sejam responsabilizadas por atos de corrupção;
– E, por fim, não menos importante, a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) permitiu maior transparência e controle da sociedade civil sobre as atividades do Estado.
É significativo ressaltar que, diferentemente da sanha punitivista que nos assola atualmente sob o bolsonarismo, os dispositivos legais trazidos pelos governos de esquerda tinham um foco claro no aperfeiçoamento dos meios e ferramentas de combate à corrupção. Tratava-se de uma melhoria na gestão e na eficiência investigativa de diversas instituições públicas (polícias, Ministério Público, tribunais de contas, etc.).
Em contrapartida, Bolsonaro vem desmantelando as estruturas públicas de controle e fiscalização. Exemplo disso foi a recente alteração no antigo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), em que o governo apostou no recrudescimento penal em detrimento da modernização das ferramentas de combate à corrupção.
Com isso, fica claro que, após o processo de redemocratização, houve um período de otimização do combate à corrupção, acompanhado do fortalecimento das instituições democráticas. Nesse cenário, as contribuições dos governos Lula e Dilma foram fundamentais. Além disso, ao olharmos comparativamente as iniciativas do atual governo com as medidas aplicadas pela esquerda, fica evidente que o combate à corrupção entrou num ciclo de retrocesso.
Cabe, agora, descontruir a narrativa golpista, que reduz a experiência das administrações de esquerda como corruptas. Conforme demonstra a experiência histórica – e como podemos presenciar atualmente –, são os atores políticos da direita autoritária que impedem o avanço do combate à corrupção.
* Samuel Costa, servidor público federal, é bacharel em Direito pelo Mackenzie