Álvaro Miranda: Estudar Marx e o marxismo para entender o Brasil 

Tendo voltado a estudar o marxismo, ainda que lentamente e de forma errática, confirmo aqui comigo e reitero como Marx é atualíssimo e necessário para entender o Brasil e o mundo contemporâneo. Claro que Marx não teve tempo de abordar determinados problemas já da sua época, nem de outros que surgiram posteriormente.

Por Álvaro Miranda*

Marx

Como aprendiz, assumo o risco aqui de errar e tornar superficial o que exigiria mais densidade. Se errar, ótimo, que alguém aponte e aprimore a reflexão. Mas, basta dizer que Marx foi um dos primeiros, se não o primeiro, a desmistificar a condição do ser humano como ser social.

Em suma, nada de entidades sobrenaturais, mas, sim, as relações concretas entre seres humanos no seu metabolismo com a natureza através do trabalho. Não toco nos pensadores gregos nessa ligeira anotação, atendo-me mais ao período convencionalmente chamado da modernidade, a partir do século 15.

Não enveredo também pelos contemporâneos, a exemplo das contribuições em diversas áreas de Foucault, Delleuze, Guattari, Derrida, Sartre, Camus e outros, mesmo que muitos autores vejam incompatibilidades de alguns dos citados com Marx. Eu não vejo. Estes pensadores trouxeram questões outras do indivíduo e de suas relações com a sociedade, mas, a meu ver, nenhuma grande teoria conseguiu refutar até agora o método do materialismo dialético para explicar a sociedade capitalista.

Em relação à passagem do período medieval para a modernidade, lembro de Quentin Skinner e Perry Anderson, o primeiro sobre as fundações do pensamento político moderno e o segundo sobre os diferentes absolutismos que marcam a formação capitalista específica de cada nação europeia.

Pode-se dizer que Maquiavel, considerado o inaugurador do pensamento político moderno, talvez tenha sido também o que saiu das águas idealistas e levantou as premissas necessárias para se navegar, de forma concreta, pelos problemas das relações entre governantes e governados e da geopolítica, dentre outros.

Do seu tempo para cá, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau, John Stuart Mill e Kant, em suas diferenças, não tocaram nas questões nevrálgicas do materialismo da vida das relações entre classes. Hegel deu seu conhecido passo importante em relação à problematização do Estado, mas também de forma idealista – não à toa Marx ser considerado um hegeliano no seu movimento teórico inicial.

Entre os economistas, Adam Smith foi o mais impactante para fundar o princípio enganador e contraditório do liberalismo, a tal “mão invisível” do mercado. Uma quimera, pois, na verdade, essa mão invisível nada mais é do que o próprio Estado ou as institucionalidades por ele criadas.

Não existe mercado livre por si só. Algum elemento garante ou não essa suposta liberdade. O salve-se quem puder da livre concorrência não tem nada de normal e justo, nem é natural como peculiaridade da espécie humana, a não ser para os oportunistas ou aqueles que se deixam enganar e tapar os olhos para a captura do estado por forças hegemônicas.

O próprio liberalismo, no processo histórico das revoluções burguesas dos séculos 17 e 18 que destronaram o poder do Rei, trouxe a contradição do binômio igualdade-liberdade como mantra natural do ser humano. Este foi usado pela burguesia para garantir seus direitos e depois, contraditoriamente, para restringir a própria democracia diante da luta, pelo mesmo binômio, empreendida pelos movimentos socialistas do fim do século 19 e início do 20.

A teoria política moderna acabou se transformando para muitos como um conjunto de elementos para uma espécie de “fim da história” da formação do Estado capitalista ocidental. Não se costuma ouvir que a democracia é sempre problemática, mas até hoje não se inventou um sistema melhor?

Os positivistas chegam no século 19 não para questionar essa sociedade, mas para tentar explicá-la e apenas legitimá-la. E o fazem meio no delírio “matematizante”, utilizando-se de métodos das ciências físicas e biológicas para a compreensão dos problemas da sociedade.

Sem falar, na maioria de todos os pensadores, da inclusão de entidades sobrenaturais em tudo que se relaciona com as relações de poder e dominação entre os seres humanos. Max Weber, com seu portentoso caminho teórico na área jurídica, fica aquém também da necessária imbricação dos problemas da vida material nas questões conflituosas que configuram disposições políticas e institucionais.

Vida material, no sentido de reunir não só o econômico, mas todos os aspectos circunstanciais das relações em sociedade. Todos os aspectos, enfim, do metabolismo do ser humano com a natureza e nas relações entre indivíduos, grupos e nações através da divisão do trabalho. Talvez o maior legado de Weber tenha sido o de apontar importantes problemas do processo de burocratização das relações sociais, mas, mesmo assim, sem entrar no cerne explicativo desse processo.

O próprio Durkheim já vinha alinhavando esses problemas em seu pensamento sobre a divisão social do trabalho e outros, como, por exemplo, sobre o suicídio, mostrando que esse gesto dos seres humanos não era um problema de pessoas supostamente desequilibradas individualmente, mas fruto de questões sociais, a chamada anomia.

Em resumo, Marx nunca esteve ultrapassado desde então e se torna cada vez mais atualíssimo, confirmado pelos problemas contemporâneos. A queda do Muro de Berlim, no fim da década de 1980 do século passado, soterrou a inteligência de alguns e abriu o horizonte da manipulação teórica. Certo multiculturalismo e diversas bandeiras e causas legítimas de grupos acabaram sendo capturadas pela própria sociedade de mercado a fim de incentivar a ideia do fim das grandes narrativas e dizer que não há luta de classes, mas sim pluralidade de visões de mundo.

Ora, marxistas nunca negaram a pluralidade. Além disso, a visão marxista não se resume a um suposto economicismo, como se costuma dizer. Marx foi talvez o mais interdisciplinar dos pensadores da modernidade, vinculando economia, política e cultura, dentre outras dimensões da vida social.

A própria globalização foi prevista por Marx ao analisar o caráter expansivo do capital. Marx é controverso, sim, e até entre marxistas vigorou polêmica, durante várias décadas, na União Soviética, sobre quem tinha autoridade para interpretá-lo de forma mais próxima do que ele quis dizer em seus trabalhos. Sem falar de Engels, que continuou sua grande obra após sua morte.

Bobagem da indigência intelectual a ironia de questionar, por exemplo, os esforços socialistas da China por ela manter nos dias de hoje um sistema de relações de mercado. Ora, países não vivem isolados como ilhas no mundo da lua ou das beatitudes celestiais. Estão interagindo com outras nações e regiões. O caráter expansivo do capitalismo não significa evolução no sentido de aprimoramento, mas sim de contradições envolvendo interação entre Estados mediante guerras, imperialismo, colonialismo e saques, dentre outras situações.

A chamada modernidade deve ser vista do ponto de vista da divisão internacional do trabalho. Subdesenvolvimento de uns países não é uma fase do desenvolvimento a ser alcançado nos patamares de outros países já considerados desenvolvidos. Subdesenvolvimento e desenvolvimento são duas faces do mesmo fenômeno da expansão capitalista em seus diferentes momentos históricos – mercantil, comercial e industrial – depois o fordismo contrastado pelo toyotismo no século 20 e outras situações que foram surgindo com as mudanças tecnológicas e das formas geopolíticas. Isso, em meio a contradições, guerras e crises culminando nesse estágio tresloucado da financeirização da economia. Tudo refletindo crises de diversos tipos e lutas de classes.

Para terminar de forma bem esquemática e superficial: ao usar a expressão lutas de classes no plural, no Manifesto Comunista, Marx não estava se referindo à luta especificamente econômica entre donos de meios de produção e proletários, como se ocorresse de maneira igual nas diferentes sociedades. Mas a diferentes formas, dependendo das configurações específicas de cada formação social. Há luta de classes dentro de um país e entre países. Lutas que se configuram, como causa ou efeito, nos problemas jurídicos e políticos e nos conflitos entre instituições políticas, ao lado (e/ou imbricados) de (nas) relações econômicas intercapitalistas e entre donos de empresas e trabalhadores.

Daí que esta ligeira nota é um convite à reflexão sobre o caráter de classe da crise que estamos vivendo hoje no Brasil em relação aos conflitos diversos estampados nos jornais. Não adianta quererem acabar com a luta de classes por decreto ou dizendo que todo mundo é comunista quando contesta o governo.

Luta de classes é uma realidade, não um desejo de comunistas. O escândalo da Lava Jato, o golpe contra Dilma e a prisão absurda de Lula, tudo isso reflete lutas de classes. Nosso problema não é moral ou gerencial, mas sim estrutural que tem a ver com o modelo de sociedade. Ou alguém acredita na incorruptibilidade do sistema capitalista como caminho de aprimoramento para a beatitude celestial de todos?

* Álvaro Miranda, jornalista, é mestre e doutor pelo Programa de Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)