Marcelo Lima: Como o governo Bolsonaro esmaga a ciência brasileira
O cenário de desmantelamento é compatível com uma eventual extinção do CNPq ou mesmo fusão com a Capes. Nesse ínterim, não se vê nenhuma ação resolutiva por parte do ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes, que também se revelou omisso frente à truculência e boçalidade do presidente Bolsonaro a respeito dos dados sobre as queimadas levantados pelo Inpe. Estamos à beira de um colapso das universidades federais.
Por Marcelo Lima*
Publicado 04/09/2019 08:08
Escrevi, meses atrás, por ocasião dos cem dias do novo governo federal, um texto fazendo um breve balanço acerca das expectativas da comunidade científica brasileira sobre as políticas de Bolsonaro para a área. Descrevi o panorama de cortes de recursos tanto para o MEC (Ministério da Educação) quanto para o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e manifestei minha estupefação a respeito da (agora consolidada) retórica obscurantista disseminada.
O fato novo, e que começa a ganhar um contorno bastante vívido, ao olharmos para nossos pares, é que tal postura de confrontação absoluta e de pauperização de recursos começa a esmagar, dia a dia, a moral e a motivação de nossos pesquisadores, docentes e alunos. Confesso nunca ter visto, dentro da universidade, tamanha frustração, sentimento de impotência, depressão e resignação. Minha percepção é que o governo está sendo bem-sucedido nessa empreitada de desmantelamento, uma vez que agride além da esfera profissional.
A carreira científica nunca foi de grande atratividade para nossos jovens, fruto principalmente das poucas oportunidades de colocação profissional, mas esse quadro se torna cada vez mais precário, uma vez que não teremos condições nem mesmo de oferecer formação científica para nossos jovens. O CNPq, em sua página eletrônica, já coloca em letras garrafais “O CNPq informa a suspensão de indicações de bolsistas, uma vez que recebemos indicações de que não haverá a recomposição integral do orçamento de 2019”.
Há ainda outros alertas: “Informamos que está suspensa, até 30/09/2019, a seleção de bolsistas relativa à Chamada CNPq 22/2018 – segundo período, tendo em vista o disposto no item 16.2 do instrumento convocatório e a indisponibilidade de recursos orçamentários no corrente exercício” e “Informamos que, devido ao atual cenário orçamentário e ao Decreto no. 9.741 de 29 de março de 2019, está suspensa, temporariamente, a implementação de novas bolsas referentes à chamada Universal MCTIC/CNPq no. 28/2018”.
Essas suspensões orçamentárias têm caráter temporário apenas por força de validade do referido decreto, refletindo clara e definitivamente a falta de apreço do governo pela ciência brasileira de hoje e, principalmente, de amanhã, que poderá nem mesmo existir. Essa crise é repercutida internacionalmente pelas mais renomadas revistas da literatura científica mundial, como a Science e a Nature, em artigos que resumem a situação.
Ironicamente, nesse ambiente infértil, estamos discutindo, em conjunto com a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), a nova formatação de avaliação dos programas de pós-graduação do Brasil, em que se pesam critérios como planejamento estratégico, qualidade e adequação das teses e dissertações, da produção intelectual e dos docentes, destino e atuação dos egressos, internacionalização e impactos na sociedade.
Embora constante e sempre salutar, tal discussão, no ambiente atual, desfruta da inata cientificidade de nossa comunidade. Explico: dê-nos um aspecto técnico para discutirmos que o faremos a exaustão, até chegarmos a alguma conclusão, mesmo que esse aspecto seja referente a como construirmos o melhor e mais eficiente telhado sem ao menos sabermos se haverá tijolos para as paredes.
Pergunto: até quando fará sentido pensarmos em métricas de aumento da qualidade se nossa atividade está à beira do cadafalso? Será que a sociedade brasileira tem uma percepção clara das consequências e dos impactos dessas escolhas para a soberania do Brasil? Parece-me cristalino que, quando um governo vende a ideia de ser patriota “acima de tudo”, contradiz-se gravemente ao impingir tamanha penúria à ciência e às universidades federais.
A proposta do “Future-se” foi à resposta do governo federal à crise, sem trazer nenhuma solução que já não tenha sido contemplada, por exemplo, pela Lei do Marco Legal da Ciência e Tecnologia (Lei No. 13.243 de 11 de janeiro de 2016), e carregando ainda um autoritarismo típico da atual gestão.
Não é à toa que a esmagadora maioria das universidades federais, após longas semanas de discussões e audiências públicas, tem produzido relatórios e pareceres que rejeitam a adesão ao projeto. O projeto chama a atenção também por se fundamentar em ideias fantasiosas de que se poderá arrecadar, por meio de um fundo de gestão obscura, cerca de R$ 50 bilhões através de investidores privados, sendo que atualmente já não há barreiras legais para tais parcerias.
Portanto, já deveríamos contar com um significativo aporte de recursos por meio de parcerias público-privadas, mas não as temos. É possível concluir que a pesquisa científica não gera atratividade para o empresariado brasileiro, que está imerso em impostos e majoritariamente dedica-se à sobrevivência de seus negócios, em sua maioria voltados à prestação de serviços. Além disso, não temos uma cultura formada, aos moldes americanos, de fomento a doações por parte de ex-alunos economicamente bem-sucedidos. Há, porém, exemplos de situações em que grandes empresários brasileiros doam fortunas para universidades ou institutos de pesquisa dos Estados Unidos, mas não do Brasil.
Mas o golpe mais duro, no momento, está sendo dado no CNPq, que necessita da liberação de mais R$ 330 milhões para conseguir honrar seus compromissos em 2019. Lembremos que essa situação já tinha sido antecipada em março deste ano pelo presidente do órgão, João Luiz Filgueiras de Azevedo.
A consequência disso será concretizada num corte de 84 mil bolsas de pesquisa que correspondem aos salários de alunos de mestrado, doutorado e pós-doutorado que compõem o grande volume produtivo da ciência brasileira. Para que se entenda isso, devemos imaginar que um laboratório de pesquisa funciona como uma pequena empresa. O gerente equivaleria ao pesquisador principal, que é um docente com amplo domínio daquela área do conhecimento, sendo, portanto, o responsável pela captação de recursos e orientação intelectual e metodológica dos alunos de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado envolvidos.
Esses alunos, portanto, corresponderiam aos funcionários da empresa, sendo remunerados com bolsas de pesquisa e gerando inúmeros produtos como artigos científicos, livros, softwares, medicamentos, vacinas, novos métodos diagnósticos e terapêuticos, entre tantos outros. A própria formação desses recursos humanos altamente qualificados já corresponde a um produto elementar para qualquer país que se propõe a galgar degraus em escalas de desenvolvimento social e econômico.
Tal cenário de desmantelamento é compatível com uma eventual extinção do CNPq ou mesmo fusão com a Capes, para desespero também de seus dirigentes, que se mostram frontalmente contrários a isso, devido a missões e orçamentos distintos das respectivas agências.
Nesse ínterim, não se vê nenhuma ação resolutiva por parte do ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes, que também se revelou omisso frente à truculência e boçalidade do presidente Bolsonaro a respeito dos dados sobre as queimadas levantados pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Somado a tudo isso, devemos lembrar que estamos à beira de um colapso das universidades federais, considerando o corte orçamentário sem previsão de restabelecimento.
A incapacidade de negociação, ou mesmo de reflexão e autocrítica, por parte do governo, é compatível com essa postura beligerante. Ao debater com um dirigente de alto escalão do governo federal, ligado ao MEC, e com extensa formação acadêmica, fiquei consternado ao ouvir que as críticas que nós, docentes/cientistas, fazemos a essas políticas deletérias servem apenas para reforçar as convicções portadas pelo governo.
Portanto, concluo que a atual gestão federal em momento algum será sensível às nossas causas, já que mesmo os “supostamente” mais bem-intencionados de seus integrantes viram as costas para a ciência e para a universidade pública. Iremos, cada vez mais, ter nossas atividades de produção de conhecimento sendo paralisadas por inanição, removendo assim o nosso país de um honroso e arduamente conquistado 13º lugar em produção científica mundial e colocando-o num patamar de ostracismo científico e intelectual que não merecemos e do qual não nos recuperaremos em uma ou duas gerações.
* Marcelo Lima é professor do Departamento de Fisiologia e do Laboratório de Neurofisiologia da Universidade Federal do Paraná