Luiz Gonzaga Belluzzo: Arrependimentos corporativos 

O site Project Syndicate patrocinou um debate entre economistas. Joseph Stiglitz, Michael Spence e Katharina Pistor foram convocados para avaliar um mea culpa dos CEOs americanos. Na American Business Roundtable, os bacanas das grandes corporações bateram no peito para purgar os pecados cometidos em nome da maximização do “valor do acionista”.

Por Luiz Gonzaga Belluzzo

CEOs

Em 1962, um dos sacerdotes do Deus-Mercado, Milton Friedman, publicou o livro Capitalism and Freedom. O livro foi crucial para a defesa da primazia dos acionistas: as corporações não devem ter outro propósito, senão maximizar os lucros para seus acionistas. “Poucas tendências”, Friedman escreveu, “poderiam minar tão completamente os fundamentos de nossa sociedade livre quanto a aceitação da responsabilidade social pelos gestores corporativos. Suas obrigações devem se restringir a ganhar dinheiro para seus acionistas”.

A expressão “valor do acionista” sintetiza as práticas de gestão empresarial que buscam maximizar a extração de valor de um ativo já existente em detrimento da criação de valor mediante o investimento em um novo ativo reprodutivo. É impressionante a evolução da saída líquida de grana das grandes empresas para remunerar os acionistas e recomprar as próprias ações. No período 1976-1985 as transferências de valor para os acionistas chegaram a US$ 290 bilhões (0,4% do PIB americano). Entre 1986 e 1995 alcançaram a casa dos trilhões, US$ 1,54 trilhão, para avançar entre 1996-2005 para US$ 4,46 trilhões (2,6% do PIB) no período 2006-2015.

Inverteu-se a relação entre os recursos destinados ao investimento e aqueles utilizados para propiciar a elevação “solidária” dos ganhos dos acionistas e a remuneração dos administradores (“stock options”). A associação de interesses entre gestores e acionistas estimulou as compras das ações das próprias empresas com o propósito de valorizá-las e favorecer a distribuição de dividendos. A isso se juntam a febre das fusões e aquisições, o planejamento tributário nos paraísos fiscais, o afogadilho das demonstrações trimestrais de resultados e as aflições das tesourarias de empresas e bancos, açoitadas com o guante da marcação a mercado.

Stiglitz reconheceu que a declaração em prol do bem-estar das demais partes interessadas – trabalhadores, fornecedores, clientes – repercute um mal-estar com os desequilíbrios de poder e desigualdade na distribuição de renda. Assinado no início deste mês por praticamente todos os parrudos membros da Mesa Redonda, o mea culpa causou grande agitação nos mercados.

Desconfiado, o economista recomendou cautela diante das boas intenções dos executivos. “Teremos que esperar para ver se a declaração recente da American Business Roundtable a respeito da governança corporativa com base na primazia dos acionistas é [para valer] ou meramente um golpe publicitário. Se os CEOs mais poderosos da América realmente acreditam no que dizem, apoiarão reformas legislativas abrangentes”.

Talvez tenha escapado a Stiglitz o tratamento que Keynes, o John Maynard dedicou às relações complexas entre Estrutura e Ação, entre os papéis sociais e sua execução pelos indivíduos engalanados nos ouropéis da liberdade e racionalidade, mas, de fato, enredados nas camisas-de-força da acumulação monetária. Keynes, na esteira de Freud, introduziu as configurações subjetivas produzidas pelas interações entre as formas sociais e seus indivíduos. Estão implícitos os processos de individuação mediados pelo objetivo da acumulação de riqueza monetária.

O despertar social dos gestores corporativos responde às metamorfoses ocorridas nas formas de acumulação da riqueza espargidas pelo mundo capitalista na posteridade dos anos 80 do século 20. Se convocado em sessão de Mesa Branca para avaliar as reformas liberalizantes de Reagan e Thatcher, o espírito iconoclasta de John Maynard Keynes poderia augurar que a Economia Monetária da Produção estivesse prestes a assumir a natureza recôndita que inferniza sua alma, o demônio da Economia da Produção Monetária.

Nesse momento da economia global, o demônio da Produção Monetária ameaça os gestores do Dinheiro. A saúde dos bancos, das demais instituições financeiras e, sobretudo, dos fundos de pensão, periclita diante da perenidade da valorização dos estoques de ativos e da queda correspondente dos rendimentos.

Katharina Pistor desvenda as razões que hoje perturbam os executivos. “A situação é uma quando os acionistas são dispersos. Muito diferente são as condições atuais: os acionistas estão reunidos em blocos, com poder de veto efetivo e capacidade de fixar objetivos comuns”.

Cerca de 74% das ações do JP Morgan Chase são detidas por investidores institucionais, cinco dos quais – incluindo Vanguard, Blackrock e State Street – controlam um terço do total de ações. E o JP Morgan não está sozinho. Pesquisas recentes nos EUA mostram que “os mesmos gestores de ativos globais são os principais acionistas em quase todos os maiores intermediários financeiros, empresas da Big Tech e companhias aéreas. Para CEOs, o surgimento de blocos de acionistas poderosos mudou o jogo de governança corporativa.

No jogo entre o Sistema e seus protagonistas, as práticas corporativas de extração de valor respondem a um ambiente governado pela lógica da financeirização da riqueza e, ao mesmo tempo, suas decisões atiçam mais combustível à fornalha da valorização de ativos “descolada” da produção de bens e serviços. Descolada, mas não estranha.

Desconfiava um pensador do século 19, que essas formas de valorização da riqueza são, a um só tempo, formas ilusórias que ocultam as relações de produção subjacentes e formas necessárias, enquanto expressões dessas relações transformadas pelo processo fantasmagórico que assombra a vida dos assalariados e dos produtores de mercadorias e serviços.

As abstrações do Dinheiro fazem aparições no mundo comportado da racionalidade e do equilíbrio, como o fantasma de Banquo assombrava Macbeth. “Quando o empresário tende inevitavelmente a se tornar um “rentier”, dominante sobre os que apenas possuem próprio trabalho, o capital se reproduz mais velozmente que o aumento da produção e o passado devora o futuro” (Thomas Piketty-2014).