Publicado 28/08/2019 18:52
Em 1979, a cantora Elis Regina deu voz àquele que se tornaria o Hino da Anistia. Nos versos da canção “O bêbado e o equilibrista”, ela entoava os desejos de um Brasil, que sonhava com a volta do irmão do Henfil e com tanta gente que partiu num rabo de foguete.
Depois de quinze anos de uma ditadura civil-militar que perseguiu, torturou, matou e desterrou, tomou corpo um movimento em defesa de uma anistia ampla, geral e irrestrita. Vale lembrar que foram as mulheres que começaram a levar essa bandeira às ruas.
Em 28 agosto daquele mesmo ano, era aprovada pelo Congresso Nacional uma anistia que era parcial e restrita, mas que abriu caminhos para a nossa redemocratização.
Quarenta anos depois, a memória e a justiça relacionadas àquele período de sombras ainda está em disputa. E isso exige de nós muita reflexão.
A ditadura brasileira é um fato. É história. No livro “A ditadura acabada”, o escritor Elio Gaspari aponta que, em apenas quatorze anos, o regime militar havia cassado o mandato ou suspendido os direitos políticos de 1.088 cidadãos, afastado do serviço público 3.215 civis, excluído do serviço ativo 1.387 militares, condenado 11 mil pessoas e posto na cadeia dezenas de milhares de cidadãos.
Quando o general João Batista Figueiredo promulgou a Lei da Anistia, os porões da ditadura ainda mantinham cerca de 800 presos políticos. Calcula-se que entre 3 e 5 mil brasileiros viviam exilados, fugidos.
Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade estipulou pelo menos 434 mortos e desaparecidos no período de exceção. Segundo o Human Rights Watch, mais de 20 mil pessoas foram torturadas pelos militares brasileiros.
São fatos. Os números nos ajudam a resgatar a história, como ela aconteceu. Hoje, infelizmente, estamos em meio a uma disputa de narrativa. Mas não se trata só disso, de discurso. O que está em jogo é a verdade histórica. Aconteceu de termos na Presidência da República um homem que quer desconstruir essa verdade histórica. Que celebra a ditadura, tem torturadores como heróis, esbraveja que o regime de exceção salvou o país. É um escárnio.
Esse ataque à verdade vem acompanhado de um ataque à ciência e ao conhecimento. O negacionismo é parte do obscurantismo que nos ronda. E é preciso compreender que tudo isso é um projeto. Para levar adiante uma pauta que é ultraliberal na economia e hipocritamente conservadora nos costumes, é preciso ser autoritário na política. E é preciso haver o obscurantismo, acabar com o pensamento crítico, com o livre-pensar. Tirar nossa capacidade de refletir, nos desorientar.
Tenho muitos camaradas de partido e de diversas correntes de atuação política que sofreram na pele os horrores da ditadura. Conheço de muito perto as histórias dos paus-de-arara, dos choques elétricos. As histórias de filhos que perderam pais; de pais que perderam filhos; casais interrompidos pelo arbítrio. Nunca imaginei que, nos 40 anos da Lei da Anistia, estaríamos vivendo essa tentativa de apagar o passado. De desfazer o sentido da ditadura e tirar o peso de crimes cometidos pelo estado.
O atual governo federal tem atacado as instituições de direito à memória e à verdade e atentado contra as medidas de reparação aos danos causados pelo regime. Os pedidos à Comissão de Anistia agora são indeferidos. Integrantes da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos foram trocados por militares e partidários de Bolsonaro. O próprio presidente agride a memória de um desaparecido político como Fernando Santa Cruz e presta homenagem a um torturador como Brilhante Ustra.
Não podemos permitir que esse tipo de atitude se normalize. A história nos ajuda a compreender o que desse passado de horror persiste no nosso presente. A história é imprescindível para que possamos sonhar com um futuro digno.
Precisamos refletir sobre isso. E acertar contas com a nossa própria história. Lembrar os 40 anos da Anistia é também lutar para que a verdade não seja apagada. E é, principalmente, fazer a defesa da nossa frágil democracia. Nós já aprendemos com a canção que uma dor assim pungente – como a que nos acompanhou naqueles anos de chumbo – não há de ser inutilmente. Mantemos a nossa esperança equilibrista, a nossa fé em tempos melhores.
Dom Helder, cuja morte completou esta semana 20 anos, nos ensinou que “quanto mais escura é a noite, mais carrega em si a madrugada”. Seguimos seu exemplo e não aceitamos o retrocesso social, econômico e simbólico que o governo de Jair Bolsonaro tenta nos impor. Por isso resistimos e lutamos.