Liberdade, fraternidade e igualdade em tempos de Fake News

 

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Hoje, qualquer um é produtor de conteúdo; do conteúdo que desejar e não precisa se basear em fatos, basta ter, como dizem, uma opinião. O “opinismo” é a tônica e é tanto mais forte, quanto mais poder a pessoa que dele lança mão, tiver. Mas afinal, quem irá pendurar o guizo da verdade fundamentada, no gato poderoso que se acha a reencarnação de Deus, na terra? Nelson Rodrigues dizia, com propriedade, que poucas coisas são mais perigosas do que um idiota com iniciativa e poder. Tristes tempos, estes! Tristes e perigosos.

Por Carlos Fernando Galvão*

Relembrando uma fábula de La Fontaine, alguns ratos se esgueiravam furtivos pelos cantos de uma grande casa, mas nela, havia um gato indiscutivelmente rápido e que caçava aqueles que se aventuravam a sair muito longe da toca. O conselho das ratazanas se reuniu para discutir o que eles poderiam fazer e um ratinho teve a ideia de pendurar um guizo no pescoço do gato. Assim, sempre que ele se movesse, eles o ouviriam e dele poderiam fugir. Todos gostaram da ideia, mas o rato mais velho, o decano do grupo, pediu a palavra e perguntou: “A ideia é ótima, mas quem vai botar o guizo no pescoço do gato?”. Silêncio…

Atualmente, o Brasil está em uma encruzilhada civilizatória que transcende, em muito, a velha dicotomia política entre esquerda e direita. Lutar contra o obscurantismo pré-medieval que nos assola, simbolizado pelo “terraplanismo”, é uma luta sanitária pela sobrevivência de valores solidários, generosos e democráticos.

Muitos acreditam que o estado das coisas teve início nos movimentos políticos de 2013. Pode ser. Entretanto, a verdade é mais complexa do que, comumente, achamos. As eleições de 2018 trouxeram a novidade das fake news. Eu disse, trouxeram? Não, não há novidade, aqui. Chamemos de fake news, de pós-verdade ou de fofoca, como vovó as definiriam, não importa, falsas histórias e notícias sobre outras pessoas e fatos existem desde sempre.

A novidade, se podemos chamá-la, está na tecnologia digital, que potencializou a disseminação de ideias, verdadeiras ou mentirosas. Não se combate ignorância, com ignorância, não obstante. Sabedoria, paciência e persistência devem ser a tônica de nossos sentimentos, pensamos e ações políticas.

Hoje, qualquer um é produtor de conteúdo; do conteúdo que desejar e não precisa se basear em fatos, basta ter, como dizem, uma opinião. O “opinismo” é a tônica e é tanto mais forte, quanto mais poder a pessoa que dele lança mão, tiver. Mas afinal, quem irá pendurar o guizo da verdade fundamentada, no gato poderoso que se acha a reencarnação de Deus, na terra? Nelson Rodrigues dizia, com propriedade, que poucas coisas são mais perigosas do que um idiota com iniciativa e poder. Tristes tempos, estes! Tristes e perigosos.

Em tempos de “opinismo”, notadamente, na política e na gestão pública, a liberdade está sendo levada aos píncaros da mediocridade discursiva e executiva. Mudanças climáticas são negadas em nome de um suposto “marxismo cultural”, uma releitura enviesada e distorcida da ideia dos intelectuais orgânicos de Gramsci, representantes de uma classe. Ditaduras são louvadas como a salvação da pátria contra um comunismo que, no Brasil, nunca teve a força que lhe atribuem, como se os fins justificassem os meios, em nova leitura torta das ideias de Maquiavel, para quem o governante deve agir com a máxima ética possível, em face de razões de Estado, para manter o poder e bem governar, mas não para usar esse poder para fazer qualquer coisa.

O grupo que, provisoriamente, está no poder, no Brasil, mostra uma atávica predisposição para ignorar as fontes de saber, uma condição estrutural de malversação da gramática ideológica que professa, a liberal, negando-a todo dia e um intrínseco desprezo pela bondade e diversidade humanas, culminando suas bizarrices atrozes com as tentativas que estamos observando de eliminar, pela raiz, qualquer ideia ou ação que seja democrática.

Liberdade

IPara Immanuel Kant (1724-1804), a liberdade de cada um, como racional, é o resultado de um conjunto de leis, por assim definir, que impomos a nós mesmos e que são pactuadas com outros seres humanos. A moralidade impõe a autonomia da vontade, tanto do, individualmente falando, quanto do cidadão, inserido no sistema que regula, politicamente, o Contrato Social de Hobbes e Rousseau.

Kant, em sua filosofia moral, afirmava também que tudo o que você não puder contar como fez, não faça. Para o autor, haveria dois imperativos que guiariam as ações humanas. O Imperativo Hipotético, que seria uma “ação-meio” para alcançarmos um fim específico, como quando nos dizem “estude, para tirar boas notas” e o Imperativo Categórico, que se constituiria em uma ação que seria, por si mesma, um fim, posto ser boa, justa e correta. Uma conclusão possível dessa ideia é que podem existir fins absolutos, a depender da visão de mundo de cada um.

Para mim, citando um único exemplo, o respeito ao outro e ao seu modo de ser é um fim absoluto. Usar a liberdade do ser, para termos a igualdade social (como acima proposto) leva, quase que forçosamente, a todos e cada um de nós a nos conduzirmos com solidariedade coletiva e com generosidade pessoal, no dia a dia, ou seja, a sermos fraternos com o outro. Usar a sua liberdade para impor seus sentimentos e desejos ao outro, está errado.

Exagero? Bem, vejamos rapidamente o caso da renovação/cancelamento do contrato de compra e venda do excedente de energia da Hidrelétrica de Itaipu, por exemplo, é emblemático. Resumidamente, sendo binacional, Brasil e Paraguai usufruem da energia elétrica que Itaipu gera; como o Paraguai não usa a metade da energia gerada vende seu excedente para o Brasil. O governo Bolsonaro havia tentado modificar o acordo, com o aval do governo paraguaio.

Pelo tratado, a estatal de energia do Paraguai só pode vender o excedente produtivo para a Eletrobras, estatal energética brasileira, mas pelo acordo entre os dois presidentes, o Paraguai passaria a vender o excedente para uma empresa privada brasileira, de propriedade de um suplente de senador pelo PSL paulistano, com prejuízo para o povo paraguaio de US$200 milhões por ano. Bem, o acordo secreto emergiu, por denúncia do presidente da estatal paraguaia e o presidente Mário Abdo Benítez, do Paraguai está ameaçado de perder o mandato. O Ministério Público de lá e a imprensa estão investigando a suspeita transação, que pode respingar aqui, no Brasil. Esse pessoal, realmente, não leu Kant (talvez sequer tenha ouvido falar).

A democracia é o regime da maioria, mas a liberdade da minoria não pode ser suprimida. O ser humano livre é aquele que se submete às leis de sua própria razão e emoção e o faz sabendo que terá que abrir mão de um tanto de sua liberdade, para que todos possam ser igualmente livres. Isso é viver em sociedade. Essa liberdade, assim encarada, fundamenta a igualdade social, sem a qual, as sociedades podem morrer “envenenadas” por sua própria intolerância com a diversidade que lhe é intestina, que lhe define e que a leva à frente porque, sem ela, imutabiliza-se em um presente recorrentemente estagnado, quando não, fraturado.

Igualdade

Importante, neste ponto da reflexão, é caracterizar o que quero dizer quando uso a palavra “igualdade”. Uma sociedade com a igualdade aqui pregada não é aquela que realiza uma espécie de terraplanagem, igualando os desiguais no topo porque não somos iguais na base.

Como admitirmos o discurso da meritocracia no Brasil, se nossos pressupostos competitivos, assim os definindo, estão muito longe da igualdade de condições? Só podemos falar e pregar qualquer meritocracia individual se a todos forem oferecidas, como prega a Constituição Federal brasileira em seu preâmbulo e em seus Artigos 1º, 2º, 3º, 4º e 5º, dentre outros, as condições objetivas para que, sobre o mesmo alicerce social, cada um construa a sua casa.

Nós não cumprimos nossa lei maior, a começar dos governos. Esse alicerce jamais será alcançado se, por exemplo, o sistema público de ensino brasileiro, onde estuda 85% de nossas crianças e adolescentes, permanecer a incúria, administrativa e pedagógica, que tem sido já há décadas. Como querer meritocracia se as melhores oportunidades profissionais são acessadas apenas pelos filhos da classe média e alta, que compõem, no máximo, com boa vontade, algo entre 15% a 20% da população brasileira?

Não há meritocracia se os fundos públicos permanecerem apropriados para, dentre outras ações, perdoar dívidas milionárias de empresas, bancos e do agronegócio, com a conta a ser paga pelo arrocho das aposentadorias da maior parte da população. Impossível qualquer ideia de igualdade ou equilíbrio, neste quadro social predatório e injusto.

Para que tenhamos uma sociedade equilibrada, e não necessariamente de iguais, posto que, não sendo iguais na forma, talvez não tenhamos que ser, mesmo, iguais no conteúdo, para sermos justos, temos que tratar desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade.

A igualdade na base, uma vez realizada de modo real e estrutural, e não apenas no discurso, induz a políticas públicas socialmente equilibradas e justas. Feito isso, poderemos começar a realizar ideias como sistemas meritocráticos – mas sem nos esquecer de que a meritocracia é, também e na base, social, infraestrutural; a meritocracia individual vem depois, garantida por dispositivos superestruturais, como a ação estatal para que, juridicamente, esse sistema não descambe para algo próximo do que temos hoje.

Nada é mais importante ao ser, às pessoas, aos cidadãos, do que ser livre para reconstruir este país com nova tessitura, para usufruirmos de nossos sentimentos com candura, para refletirmos sobre o mundo com ternura, para realizarmos nossas ações, individuais e coletivas, com bravura, para reavaliarmos quem somos e o que fizemos com mesura. Nada como sermos aquilo que desejamos ser, livremente, e dando as mãos, unindo mentes e corações, para que o outro também tenha esse privilégio, que é viver na liberdade, na igualdade e na fraternidade de um mundo e de um país diverso e afetuoso e, portanto, melhor do que este mundo em que estamos vivendo e, pior, que estamos deixando para nossos filhos e netos.

*Carlos Fernando Galvão é geógrafo e pós Doutor em Geografia Humana. Artigo publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil