Vermelho Sol, fotossíntese da violência
Filme de jovem diretor argentino expõe a brutalidade — normalizada e pervasiva, numa cidade do interior — em tempos de repressão política. Atualíssimo, destaca o modo elíptico de narrar que caracteriza os vizinhos ao sul.
Por José Geraldo Couto*, no Blog do Cinema
Publicado 23/08/2019 16:42
A primeira cena é intrigante e estabelece a atmosfera sutilmente absurda que perpassará todo o filme. De uma casa de classe média, filmada de fora, com câmera fixa e frontal, saem tranquilamente, uma de cada vez, pessoas bem vestidas carregando objetos: um relógio de pêndulo, um televisor, um carrinho de mão com bugigangas. Um letreiro nos informa que estamos numa cidade de província argentina em 1975. Só lá pela metade do filme, juntando os pontos, compreenderemos o que significa aquela casa enigmática.
Tempo de violência
A informação espaço-temporal não é fortuita. Em 1975 a Argentina, sob o frágil governo de Isabel Perón, estava conturbada por diversas instâncias de violência política.
Enquanto grupos guerrilheiros de esquerda, como os Montoneros e o ERP (Exército Republicano do Povo), sequestravam e matavam chefes militares e membros da repressão policial, a temível Triple A (Aliança Anticomunista Argentina), uma espécie de esquadrão da morte, sequestrava e matava não apenas militantes daquelas organizações, mas potencialmente qualquer pessoa identificada como comunista, esquerdista ou simpatizante. Era um tempo de violência e medo, que antecipava o sanguinário golpe militar de 1976.
Nada disso é mencionado explicitamente em Vermelho Sol. O que vemos no filme é o reflexo amortecido, subterrâneo e insidioso dessa conflagração numa cidade aparentemente pacata do interior. Mais que isso: vemos como naquela realidade provinciana, entre seus “cidadãos de bem”, estão presentes, como forças constituintes, os atritos, a loucura e a violência que ajudam a explicar o quadro geral.
Na primeira sequência, depois do plano fixo da casa saqueada, um desentendimento inicialmente banal em torno de uma mesa de restaurante nos apresenta o protagonista, Claudio (Darío Grandinetti), um advogado de meia-idade sem vinculações políticas aparentes. É do ponto de vista dele e de sua família que veremos grande parte da história.
Mas não convém falar muito da trama, para não tirar o prazer do espectador de ir descobrindo-a aos poucos. Basta dizer que todas as pontas que parecem soltas, em cenas “avulsas”, acabam por se entrelaçar num tecido narrativo coeso, consistente e de grande impacto.
Senso de absurdo
Tudo é amortecido e, de alguma forma, normalizado, incorporado ao cotidiano da vida na província, o que acaba por disseminar uma atmosfera de absurdo semelhante à que encontramos na melhor tradição literária e cinematográfica argentina, de Arlt e Borges a Mariana Enríquez e Lucrecia Martel.
Contribui muito para essa atmosfera sutilmente inquietante, além da competência dos atores, a extraordinária fotografia (do brasileiro Pedro Sotero), cujo cromatismo nos faz ter a impressão de que estamos diante de um filme dos anos 1970, com as cores tornadas um tanto foscas com o tempo. Isso introduz uma espécie de nostalgia irônica, ou ironia nostálgica, que é um pouco como se o filme dissesse: veja, aquele passado inocente que a gente acalenta na memória ou na fantasia não foi assim tão inocente, muito pelo contrário.
Não por acaso, no festival de San Sebastián, na Espanha, Vermelho sol ganhou justamente os prêmios de direção, ator (Grandinetti) e fotografia. São os três pilares em que se assenta esse grande filme.
Uma última palavra sobre o título. O original, Rojo (vermelho), remete ao eclipse solar que avermelha tudo por um momento, mas também a outros sentidos possíveis: o sangue que emerge aqui e ali, o temor do comunismo que levou muita gente a abraçar ou aceitar a brutalidade da repressão (e que é mencionado em um par de falas). O título brasileiro, Vermelho sol, limita os sentidos a um só.