Hong Kong e a ocupação que não terminou
"A disputa por Hong Kong não é por mais ou menos democracia, é muito mais do que isso, é por mais ou menos hegemonia entre China e Estados Unidos."
Por Aldo Rebelo*
Publicado 22/08/2019 08:27
Hong Kong, um dos últimos enclaves britânicos e, portanto, do ocidente, segundo o conceito de guerra civilizatória em moda, foi devolvido à China, ou seja, ao oriente, em 1997, depois de 155 anos de ocupação.
Mas a batalha por Hong Kong está longe de terminar. A ilha foi tomada dos chineses em 1842 ao término da primeira Guerra do Ópio, no primeiro grande ciclo de expansão do Império Britânico, quando o tear e a canhoneira a vapor construíram o império no qual o sol nunca se punha.
A Inglaterra combatia o tráfico de escravos no ocidente e impunha, pelas armas, o tráfico de drogas no oriente. O ópio, produzido a partir da papoula das colônias britânicas na Ásia, contrabandeado, ajudava a equilibrar a balança comercial deficitária com a China.
Depois das seguidas guerras perdidas para o ocidente, a China foi obrigada a aceitar tratados de paz humilhantes e a ceder dezenas de seus portos aos impérios coloniais europeus e aos Estados Unidos. Daí nasceu a expressão “negócio da China” para caracterizar qualquer transação extremamente vantajosa para uma das partes. Até a Revolução conduzida por Mao Tsé-Tung, em 1949, era possível encontrar à entrada do bairro inglês em Xangai a inscrição: “Proibida a entrada de cães e de chineses”. Até o início do Século XIX, a China era a primeira economia do mundo, algumas vezes maior que a economia britânica, com a qual acumulava expressivo saldo comercial. Para tentar abrir o mercado chinês aos produtos britânicos, o rei George III enviou uma grande delegação à China, chefiada por lord Macartney. A numerosa comitiva fez uma escala de um mês no Porto do Rio de Janeiro para descanso e reabastecimento a caminho da China.
Mas o imperador Qianlong, depois de fazer a missão real esperar mais de 30 dias, recebeu lord Macartney em audiência para negar todas as propostas do rei George, inclusive a permissão para abrir uma embaixada na China. Não impressionaram Qianlong nenhuma maravilha da indústria britânica e nem os canhões enviados de presente pelo monarca da Inglaterra.
O resto da história é bem conhecido. Depois de mais duas tentativas diplomáticas de apresentar aos chineses as conquistas da tecnologia e da indústria a vapor, os britânicos decidiram enviar as canhoneiras a vapor e os portos chineses foram bombardeados e ocupados. O ópio e as demais mercadorias britânicas passaram a ter acesso livre ao gigantesco mercado do país asiático, pelos “tratados desiguais” como denominaram os chineses as atas de rendição impostas pelo império ocidental em expansão.
A China conheceu então um longo período de declínio, revertido a partir da Revolução de 1949, e principalmente, depois das reformas promovidas pela liderança de Deng Xiaoping.
A devolução de Hong Kong foi acertada, no começo de década de 1980, entre a primeira ministra Margaret Thatcher e o líder Deng Xiaoping, e consumada em 1997, depois de 155 anos de domínio britânico.
Hoje, Hong Kong é colhida no epicentro da disputa geopolítica, científica, tecnológica, comercial, diplomática e militar entre os Estados Unidos e a China. Ameaçados em sua supremacia pelo rápido desenvolvimento de seu concorrente, os Estados Unidos procuram bloquear por todos os meios a ascensão chinesa ao posto mais elevado do pódio da economia mundial.
A China, protegida pela expansão de sua economia gigantesca e pela disponibilidade de recursos para investimentos e crédito interno e externo, não está disposta a renunciar aos dividendos decorrentes de sua posição privilegiada. Deseja o máximo de segurança para suas rotas de navegação no Mar do Sul da China e para seu ambicioso projeto da nova rota da seda, denominado One Belt, One Road (Um cinturão, uma rota), o que inclui passagem pelo Pacífico e pelo Índico, vigiados pela supremacia da esquadra norte-americana.
Hong Kong e seu modelo de “um país e dois sistemas” é o ambiente ideal para o ocidente, leia-se Estados Unidos, testar os nervos e a resiliência do gigante asiático.
O presidente Trump tem feito uma defesa moderada das manifestações em Hong Kong, mas Pequim sabe que dólares norte-americanos abastecem as ONGs e os movimentos democráticos na ilha, além do apoio midiático, é claro.
Um porta-voz oficial chinês deu o tom da reação ao problema: “Nós gostaríamos de deixar bem claro para o grupo bem pequeno de criminosos inescrupulosos e violentos e para as forças sujas por trás deles: aqueles que brincam com fogo morrerão queimados”.
A disputa por Hong Kong não é por mais ou menos democracia, é muito mais do que isso, é por mais ou menos hegemonia entre China e Estados Unidos. Não era por democracia no Iraque e na Líbia, era por petróleo. Estados Unidos e China sabem disso e se movem em Hong Kong a partir desta lição.