Roberto Marinho e a biografia de Roberto Marinho

Contar a história desse personagem exige passar boa parte do Brasil do século XX a limpo.

Por Osvaldo Bertolino

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Num esforço de seis anos de pesquisa, conforme relato do jornal O Globo, o primeiro volume da biografia Roberto Marinho — O poder está no ar reconstrói a vida do empresário de mídia, do nascimento, em 1904, até 1969, ano de criação do Jornal Nacional. Ainda não há previsão de lançamento para o segundo volume, diz o jornal, que entrevistou o autor, o jornalista Leonencio Nossa. Segundo a apresentação, baseado em arquivos e entrevistas com mais de 100 pessoas, ele compôs "uma biografia independente", buscando “rigor jornalístico”.

Não há, ainda, referências sobre a obra, mas pelo que disse o autor na entrevista e por seu passado polêmico envolvendo trabalhos referentes à Guerrilha do Araguaia e ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB) pode-se tirar algumas conclusões. Leonencio Nossa fez, em 2013, um artigo no jornal O Estado de S. Paulo que recebeu duras contestações minhas e do historiador Augusto Buonicore. Ele escreveu também o livro Mata, publicado pela Companhia das Letras. O tema, conforme o subtítulo da publicação, é a relação do major Curió com “as guerrilhas no Araguaia”.

Método farsesco

O artigo e o livro são permeados por preconceitos e inverdades, uma prática muito comum de jornalistas que ao abordar esse tema priorizam o espetáculo narrativo em detrimento dos fatos, fartamente pesquisados em obras como os livros Guerrilha do Araguaia — a esquerda em armas, Araguaia — depois da Guerrilha, outra guerra (de Romualdo Pessoa Campos Filhos), Testamento de lua — a vida de Carlos Danielli, Maurício Grabois — uma vida de combates, Pedro Pomar — ideias e batalhas (de Osvaldo Bertolino) e Meu Verbo é Lutar – a vida e o pensamento de João Amazonas (de Augusto Buonicore).

Leonencio Nossa repetiu o método farsesco de Lucas Figueiredo na revista CartaCapital — com a conivência do redator-chefe da revista, Sérgio Lirio — sobre o suposto "diário" de Maurício Grabois no Araguaia, mais recentemente seguido por Hugo Studart no seu livro-farsa Borboletas e lobisomens. A diferença é que o autor de Mata não se comportou como os farsantes Lucas Figueiredo e Hugo Studart —  que reagiram às críticas às suas farsas com ataques grosseiros, recheados de novas farsas —, reconhecendo, em contatos comigo e com Buonicore, que cometera alguns equívocos. De qualquer forma, ficou, como registro histórico,uma versão que não corresponde aos fatos, oportunamente corrigida pelas referências dos artigos escritos por mim e Buonicore.

Testemunha do passado

No caso da primeira parte da biografia de Roberto Marinho, de acordo com a entrevista de Leonencio Nossa n'O Globo, o tom parece ser de poucas críticas a esse personagem que muito colaborou para impedir que o Brasil pegasse o rumo do desenvolvimento com democracia e progresso social. Ele diz que buscou “uma opção mais jornalística, trabalhando com o máximo de versões, para que o leitor pudesse chegar à sua própria interpretação”. “É mais jornalismo do que uma biografia tradicional”, informa.

Escrever uma biografia é, basicamente, um exercício jornalístico. Significa contar a história de um personagem no contexto em que ele viveu. Se não for assim, a obra se transforma em ficção — ou charlatanice, como é a obra de Hugo Studart. Não é história, nem jornalismo. Escrever uma biografia, palavra cuja origem etimológica vem da junção dos termos gregos bios (vida) graphein (escrita), é revelar um álbum fotográfico em letras, fazer o leitor ver fotografias imaginárias da trajetória de uma pessoa. Com ela, conta-se um período conjuntural, mostra-se partes de outras vidas, desmistifica-se fatos e versões.

Na definição de Marco Túlio Cícero, o famoso orador romano, a história é testemunha do passado, luz da verdade, vida da memória, mestra dos fatos, anunciadora dos tempos antigos. Pode-se também citar como paradigma a definição de Gay Talese, um dos criadores do jornalismo literário, para quem o realismo é fantástico. Ou Alphonse Daudet — romancista, poeta e dramaturgo francês —, que via em cada ser uma multidão. Contar a vida de uma personagem como esse exige mostrar a essência de sua atuação política.

Trajetória de O Globo

Não há como dissociar a vida de Roberto Marinho dos acontecimentos do país em grande parte do século XX. Esse protagonismo se liga à tragetória do jornal O Globo, embrião do que seria, na ditadura militar, o seu poderoso grupo de mídia. Nas pesquisas das biografias de Maurício Grabois e Pedro Pomar deparei com vários episódios em que O Globo agiu com desonestidade. Pomar disse certa vez que o jornal estava “notoriamente a serviço dos americanos”. Para o Partido Comunista do Brasil, à época conhecido pela sigla PCB, O Globo era “um órgão reacionário e policial”, e “órgão oficial dos restos fascistas”.

A onda que se levantou contra a legalidade dos comunistas nos anos 1940 começou com uma entrevista do obscuro deputado Edmundo Barreto Pinto n’O Globo. O ministro da Justiça do governo do general Eurico Gaspar Dutra, Benedito Costa Neto, que organizou a “Liga de defesa da democracia”, entidade que pretendia agrupar a nata do anticomunismo, era voz frequente no jornal. Em uma entrevista, anunciada de forma estrepitosa na capa da edição de 8 de janeiro de 1947, ele fez provocações anticomunistas grosseiras — respondidas por Grabois com contundência.

Preparação do terreno

Logo após a cassação do registro do PCB, O Globo começou a orquestrar a grita pela cassação dos mandatos comunistas. A tática era tentar desmoralizar o Partido e levantar calúnias. Em suas páginas começaram a crepitar manchetes dando conta, segundo Grabois, de campanhas de “infâmia” e atos “ultrajantes”, dizendo que havia uma ação política deliberada movida pelos comunistas contra o governo. Segundo O Globo, os jornais do PCB eram “órgãos de imprensa” que obedeciam “à orientação bolchevista”. O jornal de Roberto Marinho esmerava-se nas mais torpes invencionices para atribuí-las aos comunistas.

Quando Pedro Pomar dirigia o jornal do PCB Tribuna Popular, ele também teve um entrevero com O Globo. O episódio envolveu o então presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Herbert Moses, que era também tesoureiro d’O Globo. Numa época de grave crise de escassez de papel, ele usou a sua influência para que um navio com a carga destinada à publicação em que trabalhava fosse descarregado, no congestionado porto do Rio de Janeiro, antes de outro, com carregamento para vários jornais, entre eles a Tribuna Popular.

Na passagem de um ano da Tribuna Popular, em 22 de maio de 1947, O Globo atacou o jornal comunista dizendo que ele promovia uma “campanha ultrajante” contra o presidente Dutra. Segundo nota da Tribuna Popular, a campanha visava à preparação do terreno para a cassação dos mandatos comunistas. O Globo estava sugerindo a volta da mordaça do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) — o feroz órgão de censura da ditadura do Estado Novo — e batendo palmas para os bandos terroristas que empastelavam jornais, disse a nota.

Onda de provocações

Quando Pomar, como deputado federal, esteve no “Congresso Continental Americano pela Paz”, na Cidade do México, em setembro de 1949, O Globo protagonizou uma torpe campanha contra ele. Seu discurso no evento foi acompanhado letra a letra. “Repudiou a pátria!”, berrou a manchete do jornal em 11 de setembro de 1949. “O ministro da Justiça, em declaração ao O Globo, anatemiza a conduta do deputado Pedro Pomar”, dizia a linha fina, o subtítulo do jornal. E emendava: “Primeiras demarches em torno da possível cassação do parlamentar vermelho.” Outros jornais — principalmente os da cadeia de Assis Chateaubriand — seguiram a batuta.

Segundo disse João Amazonas, em artigo na revista Problemas de agosto-setembro de 1949, a derrota dos que tentaram impedir a presença do Brasil no Congresso resultou na onda de provocações a Pomar. O objetivo, disse ele, era criar as condições para, sob a calúnia de que os comunistas haviam injuriado o Brasil para defender a Rússia, abafar a repercussão interna dos êxitos do Congresso e conseguir novas leis fascistas que tramitavam na Câmara dos Deputados contra o povo brasileiro.

O Globo entrou de cabeça no submundo que imperava na Câmara dos Deputados, onde uma comissão de inquérito foi proposta e suscitou intensos debates. Na matéria que comentou o discurso de Pedro Pomar no México, o jornal disse que sua atitude, “injuriando a nossa pátria, causou indignação no Congresso”. “Há um movimento no sentido de cassação do mandato do parlamentar comunista”, declarou.

Falsa versão

Poucos dias depois, em 15 de setembro de 1949, O Globo voltaria ao assunto, sentenciando-o a um desagravo como pena imposta pela “indignação” que “perdura em todo o país”. “Desagravo que se impõe!”, dizia a manchete principal. A “afrontosa conduta do comunista Pedro Pomar, que insultou o Brasil, suas instituições e especialmente suas classes armadas perante uma assembleia tipicamente bolchevista na capital mexicana”, não poderia ficar impune.

Os ministros da Guerra, general Canrobert Pereira da Costa, e da Aeronáutica, Armando Figueira Trompowsky de Almeida, foram convocados pelo jornal para opinar sobre o assunto. O primeiro disse que cabia “aos poderes competentes” a “tarefa” de processar Pedro Pomar. O segundo apoiou a campanha d’O Globo pelo desagravo. “A circunstância que ocorreu de tais declarações terem sido feitas em terra estranha faz avultar a afronta nos feita e justifica o clamor de toda a nação pelo desagravo que se impõe”, disse.

Pedro Pomar mostrava-se pouco surpreso com o tom do jornal. O próprio O Globo publicou em 20 de setembro que ele achava “interessante” a cassação do seu mandato, segundo declaração emitida quando desembarcava em Belém. “No meu discurso não me referi às Forças Armadas e sim às classes dominantes do país. Repeti no México o que digo na Câmara”, disse aos jornalistas. Sobre a cassação do mandato, foi taxativo: “É o que desejam. Seria até interessante que tal acontecesse.”

Não adiantou Pedro Pomar dizer que não havia cometido nenhuma infração. O jornal recrudesceu a campanha pela sua punição, publicando no dia 21 que o PCB havia divulgado uma versão falsa do discurso. “O verdadeiro texto do discurso do senhor Pedro Pomar”, anunciou O Globo.

“Chegou ao Rio na manhã de hoje o deputado Pedro Pomar que tomou parte no Congresso da Paz, realizado no México, onde emitiu discursos ofensivos ao Brasil. Fomos informados que o embaixador do Brasil no México, senhor Camilo de Oliveira, mandou ao Itamaraty o verdadeiro discurso pronunciado pelo senhor Pedro Pomar e que o texto não corresponde, na realidade, ao que foi divulgado pelos comunistas no Rio”, disse o jornal, sem se dar ao trabalho de publicar os textos anunciados. Era, na verdade, fogo de palha. O Globo tentou começar uma fogueira anticomunista na Câmara dos Deputados, mas calou-se diante da firmeza das respostas de Pedro Pomar.

Testa-de-ferro

Essa trajetória conspirativa evoluiu para o processo que resultou no golpe de 1964. Os grupos de Assis Chateaubriand (Diários Associados) e de Roberto Marinho (Globo), que agiram freneticamente contra a democracia e o governo João Goulart, lideraram as facções que disputavam a posição de porta-voz oficioso do regime. Em 1965, o deputado federal João Calmon, do Partido Social Democrático (PSD) do estado do Espírito Santo, diretor do Diários Associados, se notabilizaria pelo combate à presença de grupos estrangeiros de mídia.

Ele denunciou, inicialmente, a Editora Abril, comandada pelo ítalo-americano Victor Civita, flagrantemente em desacordo com a Constituição, que vedava o acesso de estrangeiros ao controle de meios de comunicação. Civita seria um testa-de-ferro do grupo norte-americano Time-Life e intermediou o acordo firmado com Roberto Marinho para criar a TV Globo, inaugurada em 26 de abril de 1965.

A briga do representante do Diários Associados com Roberto Marinho expôs o primeiro racha na cúpula do golpe. O presidente Castelo Branco determinou que o ministro da Justiça, Mem de Sá, constituísse uma “comissão de investigação” para apurar as denúncias “com o maior rigor possível”. De acordo com o presidente, Calmon era “um homem merecedor de respeito e consideração”, não levantaria suspeitas infundadas.

A denúncia da negociata de Roberto Marinho ganhou a adesão de Carlos Lacerda, dono do jornal Tribuna da Imprensa e governador do estado da Guanabara, e motivou o Conselho Nacional de Telecomunicações (Contel) a abrir um processo para investigar o caso. A apuração concluiu que havia marmeladas, além da já revelada na Editora Abril — o maior conglomerado de mídia estrangeiro, com dezoito publicações e dois milhões de exemplares mensais —, envolvendo também o Grupo Folha, que estaria em negociação com o Grupo Rockfeller; e o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul.

Tom agressivo

Em entrevista à TV Rio, Calmon disse que Roberto Marinho havia encaminhado uma consulta de empréstimo à Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), aumentando ainda mais a suspeita do grupo do presidente da República Castelo Branco de conluio de setores do governo com o negócio ilegal, e motivou o deputado Eurico de Oliveira (PTB-Guanabara) a pedir a abertura de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados — depois de muita pressão contrária, a CPI foi constituída em 19 de outubro de 1965.

As revelações causaram um reboliço nos bastidores do governo e nos grupos de mídia, que deflagraram uma troca de acusações pesadas. O Jornal do Brasil atacou o presidente da Abert em editorial intitulado “Jacobinismo provinciano”, acusando-o de xenofobismo e de agir para abolir a “competição democrática” entre os grupos midiáticos.

O Grupo O Estado de S. Paulo, ao responder em tom agressivo a um leitor que questionou a presença de capitais estrangeiros na mídia em carta ao Jornal da Tarde — uma de suas publicações —, abriu fogo contra o Grupo Folha, que editava os jornais Folha de S. Paulo, Folha da Tarde, Última Hora e Notícias Populares. O leitor, que assinou como Newton Proença Cavalcanti, terminou a carta com uma pergunta incisiva.

“É verdade que as seguintes empresas brasileiras estariam sob controle acionário dos seguintes grupos estrangeiros? Rockefeller: Folha, Última Hora, Notícias Populares, Diário Carioca, TV Excelsior, Correio da Manhã (arrendado por cinco anos); Time-Life: O Globo, TV Paulista, Editora Abril Limitada, NBC (Mórmons), Rádio Piratininga e rádio e TV Bandeirantes (em negociações)”

Aliados militares

A resposta do JT, como o jornal era conhecido, foi violenta. Disse que o leitor era “um desses esquerdinhas que alimentam seus espíritos pouco cultivados com slogans enlatados”, que não liam e nem viam televisão, e que ele ganharia uma gorda recompensa se conseguisse demonstrar o que acusava.

“Se lesse jornais ou visse televisão saberia que o deputado João Calmon respondeu, há poucos dias, pela televisão, a todas essas perguntas, denunciando a existência de empresas jornalísticas financiadas por capital estrangeiro”, atacou.

A resposta atingiu o fígado do Grupo Folha, que reagiu à altura. A Folha de S. Paulo, em editorial intitulado “Nossa moeda é o trabalho”, lembrou que o jornal havia publicado na primeira página um comunicado desfazendo “de maneira cabal” as “insinuações” de João Calmon na entrevista à TV Rio e afirmou que mesmo assim o Grupo O Estado de S. Paulo alimentou a mentira. A Folha duvidou da autenticidade do leitor e acusou o concorrente de possuir “força econômica” de duvidosa procedência. A polêmica se desdobrou em novas acusações, mas o foco principal, para o governo, era o negócio do Grupo Time-Life com o Grupo Globo.

O tenente-coronel Rubens Mário Brum Negreiros, membro do Conselho Nacional de Segurança, foi indicado para a “comissão de investigação” por influência de aliados militares do presidente da Abert, sobretudo o chefe da Casa Militar da Presidência da República, general Ernesto Geisel — além dele, compunham a “comissão” Gildo Correia Ferraz (procurador da República) e Celso Luiz Silva (gerente de Fiscalização dos Créditos Estrangeiros do Banco Central).

Terçar armas

Roberto Marinho convenceu uma ala do governo e da mídia a isolar, acatar e desmoralizar Calmon. A primeira ação foi uma visita ao ministro da Justiça, Mem de Sá, um lance ousado para mostrar que ele estava disposto a brigar por suas posições. O capo do Grupo Globo lamentou o momento da visita, logo após a instalação da “comissão de investigação”, pensando que isso poderia dar margem a interpretações dúbias, mas o próprio ministro esclareceu que não havia motivo para esse receio por se tratar de uma conversa “entre amigos”. A segunda foi uma série de visitas a veículos da mídia tidos como seus aliados.

Em declaração ao Jornal do Brasil, Roberto Marinho disse que Calmon estava interessado em deter apenas a entrada de dólares na imprensa brasileira, ignorando o ingresso de francos, pesestas ou rublos, referindo-se ao presidente da Abert ironicamente como “velho amigo”. Ele atacou o Diários Associados, sem citar o nome do conglomerado de mídia, dizendo que Calmon cometia injustiças ao “terçar armas” contra qualquer outro monopólio privado contrário ao monopólio “dos outros”.

“De qualquer modo, folgo em verificar que o meu amigo Calmon, mesmo cometendo algumas injustiças, está desencadeando forças que podem, afinal, contribuir poderosamente para a moralização da imprensa no país. Não seria crível que o governo revolucionário, tão atuante em outros setores, perdesse a oportunidade para acabar com as empresas jornalísticas que há muito sobrevivem graças apenas aos odiosos privilégios que lhes foram concedidos”, agulhou.

Compra de ações

Mais um vez ironizando Calmon, Roberto Marinho disse que o presidente da Abert não agia de má-fé mesmo sendo diretor de uma organização de jornais, de rádio, de revistas e de televisão com notórias dificuldades financeiras que procurava com seus ruidosos pronunciamentos uma maneira de eliminar ou criar embaraços para seus mais fortes concorrentes.

O passo seguinte seria o desligamento do Grupo Globo da Abert, anunciado em carta de Roberto Marinho endereçada à entidade, logo seguido pela Rádio Jornal do Brasil. Calmon reagiu com novas denúncias, dizendo que fora procurado pelo diretor no Brasil da petrolífera multinacional Esso, Paulo Carvalho Barbosa, que, em tom de ameaça, exigiu o fim da campanha contra o acordo do Grupo Globo com o Grupo Time-Life. O presidente da Abert mostrou um relatório dando conta da compra de ações do Grupo Globo pela Esso por meio de empresas intermediárias.

Calmon chegou a defender, na Câmara dos Deputados, a estatização da mídia para conter a investida estrangeira. A proposta contundente surgiu depois de informações na Justiça do Trabalho contidas na reclamação trabalhista do ex-diretor geral da TV Globo, Rubens Amaral, que demostravam a intervenção do Grupo Time-Life na emissora.

O Grupo Globo respondeu com comunicados em vários jornais, lidos em suas emissoras de rádio e TV, dizendo que o Diários Associados, em tempos passados, fora beneficiado por acordos de Assis Chateaubriand com o magnata norte-americano David Rockfeller. A mídia ligada a Roberto Marinho também intensificou os ataques a Calmon — chegaram a dizer que ele deveria mudar o nome para João “Calmão”, mais adequado ao seu “nacionalismo”.

Período de trégua

A tentativa de esvaziar a Abert atingiu também a “comissão de investigação”. Além do bombardeio de Roberto Marinho e seus aliados, acusando a iniciativa de “autoritária” e “invasiva”, não havia local para ela trabalhar. No dia da sua instalação, o ministro Mem de Sá disse que o Ministério da Justiça era pobre e sugeriu a sede do Conselho de Segurança Nacional para o seu funcionamento, onde existiam salas, “embora sem móveis”. Ele também comunicou a imprensa que a “comissão” não daria nenhuma notícia durante o andamento dos trabalhos.

Em agosto de 1966, a “comissão”, que nunca obteve um lugar definitivo para trabalhar — reunia-se esparsamente e ouviu poucas pessoas —, entregou seu relatório final ao novo ministro da Justiça, Carlos Medeiros da Silva, recheado de informações artificiais que em notas os grupos estrangeiros já haviam tornadas públicas. O documento foi para alguma gaveta do Ministério; as movimentações políticas para a substituição do presidente Castelo Branco estavam a todo vapor e havia interesses de todos num período de trégua. A paz temporária foi selada num almoço promovido por Castelo Branco no Palácio das Laranjeiras, a sede do governo do estado da Guanabara, em 22 de março de 1966, com as presenças de diretores de jornais, entre eles Roberto Marinho e João Calmon.

O general Costa e Silva, ministro da Guerra, como escolhido para substituir Castelo Branco, sugeriu o nome do presidente da Abert, agora um influente líder do partido político que dava sustentação à ditadura, a Aliança Nacional Renovadora (Arena), para a vice-Presidência da República. Na acirrada disputa que se estabeleceu, saiu vitorioso o grupo de defendia o ministro da Educação, Pedro Aleixo, e a guerra Roberto Marinho-João Calmon voltou a pegar fogo. O Grupo Globo foi incitado por seus apoiadores do governo a atirar para matar.

Infração grave

Em nota publicada nos jornais, assinada pela TV Globo, Calmon foi acusado de pedir dinheiro à Embaixada norte-americana. Quem fez a denúncia, de acordo com o jornal O Globo, foi a correspondente do jornal Washington Post, Georgie Anne Geyer.

“Autorizadas fontes norte-americanas daqui salientam que Calmon, cujo império está mergulhado em dívidas, procurou a Embaixada americana, no outono passado, a fim de obter dinheiro para livrar os 'Diários' das dificuldades. Ante a negativa do então embaixador Lincoln Gordon, ele, ao que informa, jurou vingar-se”, teria escrito a jornalista.

Seguiu-se mais uma violenta troca de acusações, com Lincoln Gordon e Georgie Anne Geyer dando declarações desencontradas, um autêntico duelo nas páginas dos jornais O Globo e O Jornal — este, o líder do Diários Associados. Calmon também usou a tribuna da Câmara dos Deputados para desancar Roberto Marinho. E declarou-se vitorioso com o resultado da CPI, que encerrou seus trabalhos em 22 de agosto de 1966 concluindo pela inconstitucionalidade dos acordos do Grupo Globo com o Grupo Time-Life.

“Os contratos firmados entre a TV Globo e o Grupo Time-Life ferem o Artigo 160 da Constituição, porque uma empresa estrangeira não pode participar da orientação intelectual e administrativa de sociedade concessionária de canal de televisão; por isso, sugere-se ao Poder Executivo aplicar à empresa faltosa a punição legal pela infringência daquele dispositivo constitucional”, defendeu o parecer do relator, deputado Djalma Marinho, que pertencia à Arena.

O relatório das investigações apontou que a TV Globo, inequivocamente, fora financiada pelo Grupo Time-Life sob a cobertura de um contrato regulamentando a prestação de assessoria técnica. Outro infração grave foi a compra de equipamentos a uma taxa de dólar um terço mais baixa do que o valor de mercado em vigor.

O contrato principal estabelecia que o grupo norte-americano obteria parte dos lucros líquidos da TV Globo, um ato ilegal, já que não podia haver participação estrangeira nos lucros de empresas brasileiras de comunicação. No contrato de assistência técnica constava que o Grupo Time-Life teria de “colaborar” na elaboração do conteúdo da programação e noticiários — mais uma prática proibida, uma violação do Código Brasileiro de Telecomunicações. O acordo sequer foi apreciado pelo Contel. Apenas dois anos após a assinatura dos contratos a TV Globo enviou um deles — o de assistência técnica — para a Sumoc, assim mesmo por ordem do Contel.

Alinhamento incondicional

Em nova burla às leis, a TV Globo, atingida pela campanha do deputado João Calmon, trocou o contrato principal por um de arrendamento de um terreno onde se localizava a sede da televisão. No contrato constava que a TV Globo seria locatária de um prédio vendido ao Grupo Time-Life, feito antes da venda do local aos norte-americanos. O grupo de Roberto Marinho alugou um prédio que era seu. Em troca do uso, se comprometeu a pagar 45% do lucro líquido da empresa pelo aluguel. Somado aos 5% do lucro líquido, destinado à assessoria técnica, o grupo norte-americano detinha 50% da TV Globo. Para impedir qualquer tipo de fiscalização, alguns documentos da transação desapareceram.

Roberto Marinho, apesar de baleado naquela refrega, saíra fortalecido. Havia uma lógica na sua conduta, ditada pela tendência de moldar a mídia com o alinhamento incondicional do golpe ao ditame norte-americano no âmbito da Guerra Fria anticomunista. O decadente grupo de Assis Chateaubriand, o Diários Associados, estava tão avariado que não responderia aos estímulos do regime. A segunda opção, a Editora Abril — intermediária da negociata de Roberto Marinho com o Grupo Time-Life —, também estava descartada pela flagrante ilegalidade constitucional. A emergência de um novo grupo seria a saída óbvia.

Na biografia de Pedro Pomar, Haroldo Lima, dirigente do Partido Comunista do Brasil — agora com a sigla PCdoB —, preso no episódio conhecido como “Chacina da Lapa", em 16 de dezembro de 1976 — quando a ditadura militar metralhou a casa em que a direção comunista se reunia, matando brutalmente Pomar e Ângelo Arroyo —, relata que, em dado momento, foi insultado por um agente da repressão que lhe mostrou uma manchete d’O Globo anunciando o fim da “guerra dos comunistas”. O jornal também disse que oficiais do II Exército receberam “numerosos” telefonemas de pessoas ligadas a todas as atividades sociais do estado de São Paulo cumprimentando-os pelo êxito da operação, efetuada sem pôr em risco a integridade física dos moradores da vizinhança.