Publicado 30/04/2019 16:53
Em 12 de agosto de 2003, o então deputado Jair Bolsonaro foi ao microfone do plenário da Câmara dos Deputados e discursou, dando os parabéns a grupos de extermínio que operavam na Bahia, afetuosamente chamados por ele de companheiros.
“Quero dizer aos companheiros da Bahia — há pouco ouvi um parlamentar criticar os grupos de extermínio — que enquanto o país não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se não houver espaço para ele na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro. Se depender de mim, terão todo o meu apoio… Na Bahia, pelas informações que tenho — lógico que são grupos ilegais —, a marginalidade tem decrescido. Meus parabéns”!
A transcrição é, rigorosamente, literal. Bolsonaro não “se atrapalhou” no que disse. Não cabe aqui o tipo de explicação costumeira dos generais Mourão e Heleno para dissolver os impactos negativos da incontinência verbal do capitão – ele não só falou o que está escrito, reafirmou tudo em vídeos e entrevistas que estão disponíveis na internet a quem tiver o interesse de acessar.
Na época, esses grupos, que eram embriões de milícias, cobravam de R$ 50,00 a R$ 100,00 de comerciantes locais por marginal morto. E a família Bolsonaro estava empenhada em organizar uma forte rede de apoio entre os “companheiros” milicianos, especialmente no Rio de Janeiro.
Alguns anos depois, valendo-se da impunidade que blindou sua ação criminosa, as milícias ganharam terreno. Em 2007, o deputado estadual Flávio Bolsonaro, em discurso na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) afirmava:
“A milícia nada mais é do que um conjunto de policiais, militares ou não, regidos por uma certa hierarquia e disciplina, buscando, sem dúvida, expurgar do seio da comunidade o que há de pior: os criminosos… Eu não me importaria em pagar R$ 30,00 ou R$ 40,00 para ter mais segurança, para não ver meus filhos aliciados por traficantes… Façam consultas populares na comunidade do Rio das Pedras, na própria favela do Batan”.
Hoje o senador, eleito em 2018, diz em sua defesa que tais declarações não representavam endosso ou apoio a ação das milícias. Ele acha que pode escamotear sua responsabilidade na expansão dessas organizações criminosas com a surrada alegação de que “foram declarações retiradas do contexto”. Mas, em 2008, Papai Bolsonaro usava e abusava do plenário da Câmara Federal para defender a atuação desses grupos criminosos:
“Existe miliciano que não tem nada a ver com ‘gatonet’ e venda de gás. Como ele ganha R$ 850,00 por mês, que é quanto ganha um soldado da PM ou do bombeiro, e tem a sua própria arma, ele organiza a segurança na sua comunidade… Eles oferecem segurança e, desta forma, conseguem manter a ordem e a disciplina nas comunidades. É o que se chama de milícia. O governo deveria apoiá-las, já que não consegue combater os traficantes de drogas”.
No Rio de Janeiro, milícias, como a “Liga da Justiça”, do então vereador Jerominho (Jerônimo Guimarães Filho), tinham dominado territórios e diversificado as atividades.
A CPI da Alerj apurou, naquele ano (2008), que a milícia do Rio das Pedras monopolizava, sob ameaças à população, serviços como segurança de moradores (entre R$ 10,00 e R$ 50,00 mensais); taxa para funcionamento do comércio (R$ 50,00 e R$ 200,00 por estabelecimento); pedágio para entregadores de mercadorias no bairro (R$ 20,00); taxa para barracas (R$ 30,00); venda de gás (R$ 39,00); sinal de TV a cabo irregular, mais conhecido como “gatonet” (R$ 18,00); além do transporte alternativo (R$ 270,00 a R$ 325,00 por semana).
Não parou aí. Dez anos mais tarde, os procuradores do Ministério Público incluíam entre as atividades exploradas pela milícia os seguintes itens:
“Grilagem de terrenos, construção, venda e locação ilegais de imóveis, receptação de carga roubada, ocultação de bens adquiridos com os proventos das atividades ilícitas, falsificação de documentos públicos, pagamento de propina a agentes públicos, agiotagem, utilização de ligações clandestinas de água e energia para o abastecimento dos empreendimentos imobiliários ilegalmente construídos, e, sobre tudo, prática de homicídio”.
Mas, para que a família Bolsonaro não venha dizer que sua apologia das milícias não passou de “xixi na cama”, passemos aos atos derivados dessas ideias que eles veicularam fartamente em discursos e entrevistas.
Em setembro de 2007, Danielle Mendonça da Costa da Nóbrega, mulher do ex-capitão da PM Adriano Magalhães da Nóbrega, foi nomeada assessora do gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, onde ficou empregada por 11 anos, até 13 de novembro de 2018. A mãe do ex-capitão, Raimunda Veras Magalhães, também se tornaria assessora do deputado, permanecendo no cargo, como a nora, até o final do mandato.
Seis meses antes da nomeação de Danielle, Fabrício Queiroz, “amigo de churrasco e futebol” de Jair Bolsonaro, chegara ao gabinete para ser motorista, segurança e “faz- tudo” de Flavio Bolsonaro.
Segundo Queiroz, denunciado pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras do Ministério da Fazenda (Coaf) pela movimentação “atípica” de R$ 7 milhões em sua conta bancária entre janeiro de 2014 e janeiro de 2017, tanto a contratação de Danielle, quanto a de Raimunda, se deram por iniciativa dele.
A nota assinada pelo advogado Paulo Márcio Ennes Klein, que trabalha na sua defesa, formaliza essa versão:
“Queiroz é ex-policial militar e conheceu o sr. Adriano na época em que ambos trabalhavam no 18º Batalhão da Polícia Militar e, após a nomeação dele como assessor do ex-deputado estadual, solicitou ao gabinete moção para o sr. Adriano, bem como a nomeação dele para trabalhar no referido gabinete… Ademais, vale frisar que o sr. Fabrício solicitou a nomeação da esposa e mãe do sr. Adriano para exercerem atividade de assessoria no gabinete em que trabalhava, uma vez que se solidarizou com a família que passava por grande dificuldade pois à época ele estava injustamente preso…”
De fato, Queiroz serviu com Adriano no 18º Batalhão da Polícia Militar, situado na região de Jacarepaguá. Morador da Taquara, bairro localizado naquela região, a um passo da comunidade do Rio das Pedras, não tinha como ignorar a expansão e o poder crescente da milícia que dominava a área. Seus familiares, inclusive, chegaram a ter autorização fornecida pela milícia, e não pelo poder público, para explorar serviço de transporte “alternativo” – isto é, irregular – de vans na comunidade.
Entusiasta, conforme suas próprias palavras, dos “rolos” para “fazer dinheiro”, e habituado com a violência, pois tem na conta dez autos de resistência (mortes em decorrência da atividade policial), Queiroz acompanhou a sucessão de sangrentos assassinatos que regiam as mudanças de chefia na milícia do Rio das Pedras. Otacílio Biondi (1989), depois Elita Biondi (1995), inspetor de polícia Félix Tostes (2007), vereador Nadinho do Rio das Pedras (2009), até que, num passe de mágica, o comando daquela força caiu no colo do “injustiçado” companheiro do 18º Batalhão da Polícia Militar, que, hoje, foragido da Justiça e caçado pela Interpol, é também apontado como fundador do sinistro Escritório do Crime.
Sob comando de Adriano Magalhães da Nóbrega, ex-capitão, com passagem pelo BOPE, expulso da PM em dezembro de 2013, depois de preso em 2006, 2008 e 2011, por suspeita de assassinato, a milícia do Rio das Pedras tornou-se a maior, mais atrevida e mais perigosa do Rio de Janeiro. Enquanto isso, a esposa e a mãe do “injustiçado” operavam no gabinete do deputado Flávio Bolsonaro, com salário pago pela Alerj, ao lado de Queiroz, que movimentava em sua conta bancária milhões cuja procedência e destino ele não consegue explicar.
Diante de fatos tão eloquentes, Flávio Bolsonaro abandonou a tese da “mera coincidência” e tratou de tirar o corpo fora, dizendo que não sabia de Adriano nem tomava conhecimento de quem trabalhava em seu gabinete. Segundo ele, era Queiroz que contratava e administrava o pessoal, com plena autonomia.
Em nota, Bolsonaro afirma:
"A funcionária que aparece no relatório do Coaf foi contratada por indicação do ex-assessor Fabrício Queiroz, que era quem supervisionava seu trabalho. Não posso ser responsabilizado por atos que desconheço… Quanto ao parentesco constatado da funcionária, que é mãe de um foragido, já condenado pela Justiça, reafirmo que é mais uma ilação irresponsável daqueles que pretendem me difamar".
Ao confirmar a narrativa do chefe e chamar para si a responsabilidade sobre as ligações temerárias, Queiroz talvez não tenha reparado que invalidou o álibi que pretendia reforçar. Seu ingresso no gabinete do deputado ocorreu em 1° de abril de 2007, dois anos depois que Bolsonaro premiou Adriano com a mais alta condecoração da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, a medalha Tiradentes – a mesma que ele concedeu, em 2011, ao autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, uma espécie de Rasputin da corte bolsonarista. A homenagem ao tenente que viria a acumular alguns anos mais tarde o comando do Escritório do Crime e o da milícia do Rio das Pedras foi realizada em agosto de 2005.
Também cabe registrar que, embora a nota do advogado de Queiroz passe a ideia de que a esposa e a mãe de Adriano foram contratadas no gabinete de Flávio Bolsonaro ao mesmo tempo, quando passavam por “grande dificuldade”, Raimunda Veras Magalhães, a mãe, só entrou na Alerj em 2015, passando a receber pelo gabinete em 2016. Em 2009, a dificuldade era tanta que ela abriu um restaurante no bairro do Rio Comprido – rua Aristides Lobo, 224.
O Escritório do Crime começou como uma equipe de matadores de aluguel contratados por contraventores para eliminar concorrentes. Em seu portfólio há uma longa lista de homicídios que ficaram impunes, como o do presidente da Portela, ex-PM Marcos Falcon, morto em Oswaldo Cruz, próximo ao comitê de sua campanha para vereador, em setembro de 2016, e o do sargento reformado da PM Geraldo Antônio Pereira, da milícia de Curicica, abatido a tiros de AK-47 no estacionamento do Novo Rio Country Club (Recreio dos Bandeirantes), em maio de 2016.
Outro ruidoso crime encomendado ao Escritório foi a execução de Haylton Escafura – jogo do bicho e caça-níqueis – com mais de 20 tiros de armas de três calibres num apartamento no 8.º andar do hotel Transamérica (Recreio dos Bandeirantes), em 29 de abril de 2017. A policial militar Franciene de Sousa, que o acompanhava na ocasião, também foi fuzilada.
Em 14 de março de 2018, superestimando a sua blindagem, o Escritório do Crime metralhou a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes, com 13 disparos. Desta vez a polícia, após 12 meses de diligente investigação, apontou os assassinos – PM reformado Ronnie Lessa e ex-PM Élcio Vieira de Queiroz – e o mandante, ex-deputado estadual Domingos Brazão.
A família Brazão – Chiquinho, Pedro e Domingos – se tornou dona dos votos da comunidade do Rio das Pedras depois que o vereador Nadinho (Josinaldo Francisco da Cruz) foi riscado do mapa. Chiquinho foi vereador, hoje é deputado federal, Pedro é deputado estadual e Domingos – o chefe do clã – passou ao Tribunal de Contas do Estado (TCE), em 2015, por indicação da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
Mas a investigação policial ainda não está concluída. É bom que não esteja. Falta precisar o motivo do crime. No caso de ter sido uma ação terrorista para excitar a extrema-direita, no início da campanha para presidente da República, ainda que Brazão tenha pago a fatura, a decisão teria que vir mais de cima.
A milícia do Rio das Pedras e o Escritório do Crime, na época do atentado, estavam sob domínio do amigo de Queiroz, o ex-capitão Adriano Magalhães da Nóbrega. O amigo do amigo de Jair Bolsonaro só passou à condição de fugitivo em 22 de janeiro de 2019, por consequência da “Operação Os Intocáveis”, realizada pelo Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Rio de Janeiro, com apoio da Polícia Civil, que prendeu cinco membros da cúpula da milícia do Rio das Pedras e desarticulou o Escritório do Crime.
Com todo o respeito à família Bolsonaro, num contexto como esse não há como aceitar que o atentado possa ter sido realizado pelas suas costas. Mas se foi apenas uma “disputa local” e não uma “ação terrorista”, não está mais aqui quem falou. Daí a necessidade da investigação não ser concluída antes do motivo do crime estar devidamente esclarecido.
Ronnie Lessa, apontado pela polícia como o assassino que efetuou os disparos contra a vereadora Marielle Costa e o motorista Anderson Gomes, foi preso em sua luxuosa casa, por sinal vizinha à de Jair Bolsonaro, no Condomínio Vivendas da Barra. O Mito diz que não reparou no vizinho e que seu filho Jair Renan “não se lembra” de ter namorado a filha dele. “Não se lembra” é a resposta típica que advogados de defesa orientam seus clientes a dar quando estes não estão em condições de negar, sem cometer perjúrio, a participação em eventos comprometedores. Ronnie é subtenente reformado, cujo soldo, por volta de R$ 7 mil, jamais permitiria que ele morasse ali. Também não permitiria que ele tivesse, na casa de um amigo no Méier, um lote de 117 fuzis M-16, de procedência não declarada, avaliados em R$ 4 milhões.
Como Queiroz, Ronnie Lessa passou pelo Exército antes de ingressar na Polícia Militar. Como Adriano, atuou no Bope e foi segurança de contraventores antes de passar ao Escritório do Crime. Como Bolsonaro – e, aliás, como todos eles -, é um fanático adorador da Scuderie Le Cocq, a ponto de possuir carteirinha da associação, emitida em 1989, com o número de matrícula 3127, cujo fac-símile foi apresentado pela revista Época em reportagem publicada no dia 4 de abril. E tinha só 18 anos quando se matriculou.
O símbolo da Scuderie Le Cocq é uma caveira que repousa sobre duas tíbias cruzadas, tendo embaixo as iniciais EM, que, segundo seus criadores, significam “Esquadrão Motorizado” e não “Esquadrão da Morte” – exibição de cinismo explícito que os levou também a registrar a associação como entidade “filantrópica”. Ativa na década de 70, ela celebrava a união dos grupos de extermínio de todas as procedências – torturadores e homicidas das bandas podres da Polícia, Exército, Marinha e Aeronáutica, irmanados no imundo ofício de matar por dinheiro.
Com o fim da ditadura, a Scuderie perdeu o viço e refluiu para as sombras. As milícias atuais introduziram inovações naquele modus operandi e criaram outras oportunidades de negócios, mas o espírito continua o mesmo. Expurgado do Exército, em 1988, Bolsonaro mergulhou de cabeça nesse submundo.
Há menos de 15 dias, desabaram, sem aviso prévio, dois empreendimentos imobiliários construídos ilegalmente em terreno público grilado, na comunidade da Muzema, vizinha do Rio das Pedras: 24 mortos e 35 feridos.
Os moradores pagaram de R$ 40 mil a R$ 100 mil pelos apartamentos aos donos dos prédios – milicianos comandados pelo foragido Adriano Magalhães da Nóbrega, o amigo de Queiroz. Perderam tudo, e muitos a própria vida.
Pelo Censo de 2010, a Muzema tinha 4.000 habitantes e Rio das Pedras 50.000. E de lá para cá não parou de chegar gente. Há mais de 200 prédios na região, levantados desse modo. É uma prévia do que Bolsonaro e as forças que creem poder manipulá-lo estão chocando no front da Segurança Pública.