Publicado 30/03/2019 10:43 | Editado 04/03/2020 16:22
«Muro branco, povo calado» diz em grandes letras num muro ao lado da estrada em Fortaleza, entre desenhos, pichações, críticas e perguntas feitas a base de spray. «E se fosse com você?» Nossos muros falam, questionam, denunciam. Os muros, os postes, as caixas de eletricidade, as lixeiras. As colunas que mantêm o túnel estável acima da sua cabeça, tranquilizam: Vai dá certo Vai dá certo Vai dá certo Vai dá certo Vai dá certo Vai dá certo Vai dá certo Vai dá certo Vai dá certo Vai dá certo Vai dá certo Vai dá certo Vai dá certo, até você sair à luz do sol do outro lado da passagem subterrânea. O sinal fechado nos lembra do cheiro dela. Caixas de luz prometem trazer nosso amor de volta. Lixeiras nos lembram de «Um grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo». O que não entra nos livros de história, está escrito no concreto da cidade. Para não esquecermos, para não cair no esquecimento entre tantas e tantas notícias que escorrem por nossas telas dia após dia. Os muros ficam ali, firmes, compartilhando suas (nossas) memórias com quem passa ou para ao seu lado. Nos emprestam seu espaço para lembrar das nossas lutas, para fazer nossas perguntas, críticas e denúncias que não querem calar, que alguém tenta calar, que não queremos deixar calar.
Véspera do 14 de março de 2019, Fortaleza*. Três mulheres, um balde, meio litro de cola branca, um litro de água, uma brocha e 100 cartazes. O primeiro vai para um poste. Uma passa a brocha na superfície, a segunda escolhe o cartaz, a terceira o coloca, a primeira passa a brocha em cima. O poste deixou de ser uma fonte de luz muda e virou uma fonte de luz que ilumina uma pergunta: «Quem matou Marielle?». Logo, a ação se repete numa caixa elétrica. «Quem mandou matar Marielle Franco?». Depois outro poste, desta vez exigindo: «Justiça para Marielle e Anderson!». Finalmente um tapume provisório na volta de uma obra vira um mural de fotos em preto e branco com um simples aviso: «Não vão nos calar.» Porque não vão nos calar, não vamos nos calar, não aceitamos ser caladas. Não seremos interrompidas.
Enquanto transformamos Virgílio Távora, Dom Luis, Canuto de Aguiar, Desembargador Moreira e outros mais em nossos cúmplices na busca por justiça, as pessoas que passam ao lado olham desconfiadas. Uma integrante do grupo fica nervosa cada vez que alguém se aproxima. Ela foi ameaçada recentemente nessa mesma área por um homem que achava que ela devia morrer por vestir uma camiseta que negava apoio a um candidato à presidência cujo nome, por certo, aparece cada vez mais nas notícias sobre as investigações do assassinato de Marielle. Familiares dela desapareceram durante a ditadura militar. Outros foram presos e torturados. Ela está com medo. Mas está aí, passando com a mão trémula a brocha em cima do papel. Um homem jovem com roupa de academia passa perto da gente e diminui o passo, olhando na nossa direção. Quando está ao nosso lado, faz sinal de polegar pra cima: “Parabéns, meninas!”. Mais tarde uma senhora se detém junto com a gente, lê com cara séria o cartaz que estamos colando no poste na frente da sua casa e assente gravemente com a cabeça. “Obrigada, meninas. Muito importante o que vocês estão fazendo.” Ainda existe empatia e humanidade.
Nem sempre vai dá certo. Ninguém traz de volta um amor que morreu – que foi morto! Mas nosso povo não é calado, nossos muros não são brancos. Eles lembram, denunciam, criticam, questionam. E gritam por justiça.
* Nota da autora: Quero agradecer a todas e todos que participaram dessa ação em Fortaleza e em outros estados.