Por que Bolsonaro vê a Igreja e o Papa Francisco como inimigos
Fã de transmissões na internet, Jair Bolsonaro despontou em um vídeo em 17 de outubro, eleição a mil, com palavras surpreendentes para o dono do lema “Deus acima de todos”. A Igreja Católica, disse, possui uma “parte podre”, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Por André Barrocal, na CartaCapital
Publicado 22/02/2019 04:58
Dois anos antes, bolsonaristas pichavam a sede da CNBB em Brasília e gritavam impropérios públicos, como aconteceu na Cúria Metropolitana de Brasília, contra o presidente da entidade, dom Sérgio da Rocha, nomeado cardeal pelo papa Francisco. O “filósofo” Olavo de Carvalho, guru bolsonarista, já pregou tirar o argentino “do trono de Pedro a pontapés”.
Claro. Jorge Bergoglio é pelos pobres, vide ter escolhido como nome papal o do santo do voto de pobreza, e o governo Bolsonaro mostra-se, decididamente, pelos ricos: fazendeiros, banqueiros. Surpreende que no governo queiram tratar a Igreja Católica como inimiga?
O ministro da Inteligência, o general de pijama Augusto Heleno, resolveu implicar com padres e bispos católicos. Seus arapongas da Abin, a Agência Brasileira de Inteligência, os têm monitorado, conforme o Estadão do dia 10. Uma volta à ditadura que Bolsonaro e Heleno veneram, espionadora e perseguidora dos clérigos desafiadores. Como são ecos daquele tempo, quando era comum usar o aparato estatal contra “inimigos”, a tentativa de governistas no Senado de criar uma CPI do Judiciário e uma investigação fiscal do juiz-empresário Gilmar Mendes e sua esposa.
A “preocupação” de momento de Heleno é um encontro marcado para outubro, no Vaticano. Uma assembleia de bispos com o papa para discutir a Amazônia, o chamado Sínodo da Amazônia. Serão 23 dias de conversas sobre como melhorar a ação católica na região (necessidade de mais padres e missas) e a defesa da floresta e dos povos dali, como indígenas, ribeirinhos e quilombolas.
Haverá bispos de nove países, pois dois terços da Amazônia pertencem ao Brasil, mas outras nações contam com partes da floresta também. O Sínodo, palavra de origem grega que significa algo como “caminho comum”, foi convocado pelo papa em outubro de 2017, bem antes da chegada de Bolsonaro ao poder.
Objetivo: “Identificar novos caminhos para a evangelização daquela porção do Povo de Deus, especialmente dos indígenas, frequentemente esquecidos e sem perspectivas de um futuro sereno, também por causa da crise da Floresta Amazônica, pulmão de capital importância para o nosso planeta”, disse Francisco em um comunicado.
O sumo pontífice interessa-se pela Amazônia desde o início de seu papado, em fevereiro de 2013. Na Marcha Mundial da Juventude que aconteceu naquele ano no Rio, tratou da Amazônia em conversas reservadas. Em sua encíclica (uma espécie de circular) Laudato Sí, de maio de 2015, dizia que a Amazônia e a Bacia do Rio Congo são “pulmões” do mundo e que “a importância desses lugares para o conjunto do planeta e para o futuro da humanidade não se pode ignorar.
Na sequência, o documento mostra que Heleno vê fantasmas. “Ao falar sobre estes lugares, impõe-se um delicado equilíbrio, porque não é possível ignorar também os enormes interesses econômicos internacionais que, a pretexto de cuidar deles, podem atentar contra as soberanias nacionais. Com efeito, há propostas de internacionalização da Amazônia que só servem aos interesses econômicos das corporações internacionais.”
O general diz-se preocupado com o Sínodo, devido à soberania nacional. “O Brasil não dá palpite no Deserto do Saara, no Alasca. Estou preocupado com entidades e ONGs estrangeiras, e às vezes chefes de Estado por trás dessas entidades, querendo dar palpite em como deve ser tratada a Amazônia brasileira.” Não há registro de que ele tenha visto ameaça à soberania quando o Brasil abriu as portas da Amazônia aos Estados Unidos pela primeira vez na vida.
Foi em novembro de 2017, durante uma manobra militar conjunta do Brasil com tropas de Colômbia e Peru na cidade amazonense de Tabatinga. A convite nosso, Tio Sam acompanhou tudo. CartaCapital contou que havia temores na Venezuela de o treinamento permitir aos EUA conhecer in loco o terreno e, quem sabe, usar isso para derrubar Nicolás Maduro. Celso Amorim, ex-ministro da Defesa, apontava risco de um novo Vietnã. Algo que Maduro acaba de dizer ao jornal La Jornada, do México. “A Venezuela se tornaria um Vietnã se um dia Donald Trump mandasse o exército dos Estados Unidos nos atacar”, disse ele, a apontar 2 milhões de venezuelanos armados.
A propósito: este ano, um general brasileiro, Alcides Valeriano de Faria Júnior, hoje a servir em Ponta Grossa, no Paraná, será vice-comandante da divisão fardada dos EUA para o Caribe e América do Sul, o Comando Militar do Sul. A revelação foi feita pelo chefe do Comando, o almirante Craig Faller, em documento enviado ao Senado americano no dia 7.
Na segunda-feira 11, Faller esteve com o chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, tiete de Trump. O pai de Araújo foi PGR do ditador Ernesto Geisel e, no cargo, dificultou o quanto pôde, entre 1978 e 1979, a extradição de um criminoso de guerra nazista, Gustav Franz Wagner, morto por aqui em 1980. Como noticiou a Folha dia 12, Wagner era caçado por quatro países, entre eles a Polônia e a Áustria, berço do bispo emérito do Xingu, dom Erwin Krautler, há 54 anos no Brasil.
Krautler é coordenador-geral da Repam, a Rede Eclesial Pan-Amazônica. A entidade foi criada, em 2014, sob os auspícios do papa Francisco e hoje ajuda a preparar o Sínodo da Amazônia. “A Igreja não está confinada nas sacristias, nós vamos aos mais necessitados. Na Amazônia, os indígenas e os quilombolas são marginalizados, e a Igreja assume a esperança desses povos”, diz o bispo de 79 anos. “Ninguém defende mais a Amazônia do que essas comunidades.”
Ele conta que Francisco recebeu um empurrãozinho para convocar o Sínodo. Em novembro de 2016, aconteceu em Belém o II Encontro da Igreja Católica na Amazônia Legal. Uns 50 bispos discutiram a realidade social, política e religiosa da região. Ao final, produziram um documento com a sugestão do Sínodo.
Heleno tenta enfiar um representante do governo na assembleia bispal. Fez tal pedido à CNBB, que o direcionou à Repam e esta o mandou procurar a embaixada do Brasil junto ao Vaticano. Para “neutralizar os impactos do encontro” – palavras do general –, o governo tentará ainda a ajuda do governo italiano, com quem o Planalto acredita ter crédito após a extradição de Cesare Battisti, feita pela Bolívia, diga-se de passagem.
“Só uma absoluta falta de noção sobre como funcionam as estruturas, instituições e processos da Igreja Católica e sobre as relações do Vaticano com as igrejas locais, para o governo achar uma coisa dessas”, diz Paulo Maldos, ex-assessor da Presidência que, nos governos do PT, lidava com a Igreja. “Essa possibilidade de incidência externa não existe. Sua tentativa é um tiro de bazuca no pé.”
A Itália tem um governo de extrema direita, mas nem sempre posições iguais às de Bolsonaro. O Brasil quer derrubar Maduro e já chama o opositor Juan Guaidó de presidente legítimo? Pois no início de fevereiro a Itália bloqueou uma decisão da União Europeia que iria nessa direção. “A Itália não reconhece Guaidó porque somos totalmente contra o fato de que um país ou um grupo de países terceiros pode determinar as políticas internas de outro país”, afirmou, em 31 de janeiro, a uma TV italiana, o subsecretário de Relações Exteriores, Manlio Di Stefano.
Em maio próximo, haverá uma reunião preparatória do Sínodo da Amazônia para fechar um documento-síntese a ser levado ao Vaticano em outubro, com as inquietações colhidas pelos bispos junto ao rebanho. Medos conhecidos: obras, fazendeiros, mineradoras. “Provavelmente, os povos amazônicos originários nunca estiveram tão ameaçados em seus territórios como agora”, disse o papa ao lançar simbolicamente o Sínodo, em janeiro de 2018, na cidade de Puerto Maldonado, no Peru.
Para ele, os povos tradicionais correm risco tanto com políticas promotoras da conservação da natureza, que ignoram o sustento das pessoas, quanto o “neoextratitivismo e a forte pressão por grandes interesses econômicos ávidos por petróleo, gás, madeira, ouro, monocultivos agroindustriais”.
“É um equívoco o governo tratar a Igreja Católica como inimiga”, diz dom Erwin. O choque, porém, é inevitável. “A Igreja assume o social e a opção intransigente pelos mais pobres, os excluídos. E o governo tem essa visão de abrir a Amazônia à exploração dos recursos naturais.”
Visão resumida pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, no Roda Viva na segunda-feira 11. Ele negou-se a comentar a importância de Chico Mendes, o maior líder ambientalista da história brasileira, por achar “irrelevante”. “Que diferença faz quem é Chico Mendes neste momento?” O seringueiro foi assassinado em 1988 a mando de fazendeiros do Acre. Às vésperas da morte, tinha sido premiado pela ONU com o Global 500, homenagem na área ambiental. Único brasileiro agraciado até hoje.
Mortes por conflitos agrários e ambientais, como a de Mendes, são comuns na Amazônia. A Igreja não escapa. No dia 12, completaram-se 14 anos da execução da freira Dorothy Stang, baleada aos 73 anos em Anapu, município no norte do Pará. Ela defendia assentamentos rurais em terras públicas cobiçadas por fazendeiros, e alguns destes ofereceram uma recompensa de R$ 50 mil pela cabeça dela.
Bolsonaro acaba de indicar um general de pijama, Jesus Correa, para comandar o Incra, o órgão da reforma agrária. E o general avisou em uma entrevista: não reconhece o MST como interlocutor, pois o movimento não tem CNPJ e está à margem da lei. Mais conflitos à vista. Herdeiro da luta de Dorothy em Anapu, o padre José Amaro Lopes de Souza sofre. Teve a prisão preventiva decretada em março de 2018, mas em junho conseguiu um habeas corpus no STJ.
Na Amazônia, ninguém tomba mais que os indígenas. Estes foram vítimas especiais da ditadura. O número de mortos entre eles por culpa do regime militar foi 20 vezes maior do que o de pessoas sacrificadas por combater o arbítrio: 8.350 e 434, respectivamente. O primeiro número está provavelmente subestimado, conforme o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), de 2014. O documento dedica um capítulo às “violações de direitos humanos dos povos indígenas”. Estes morreram executados, torturados, infectados. Causas muito parecidas com as que provocaram um verdadeiro genocídio deles antes da chegada dos generais ao poder em 1964.
O genocídio é descrito em uma preciosidade sumida por 45 anos e achada pela CNV, em 2013, no Museu do Índio, no Rio, o Relatório Figueiredo. Em 1967, os generais decidiram acabar com o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e botar no lugar a Fundação Nacional do Índio (Funai). O então ministro do Interior, Albuquerque Lima, pediu uma espécie de inventário sobre o SPI, criado em 1910.
A missão coube ao procurador Jader Figueiredo Correia. Suas conclusões são de 1968, mais de 7 mil páginas, a cobrar punição a 50 servidores do SPI. Segundo o procurador, latifundiários e funcionários do SPI caçaram indígenas com metralhadoras, dinamite jogada de aviões, inoculação proposital de varíola, açúcar envenenado e por aí vai. Tudo para tomar as terras.
A cobiça fundiária explica os históricos conflitos na Amazônia entre povos tradicionais, o poder, fazendeiros e garimpeiros, categoria à qual Bolsonaro pertenceu nos anos 1980, em busca de ouro. “O garimpo, de vez em quando, eu pratico ainda. Não causo nenhum crime ao meio ambiente. O garimpo é um negócio que está no sangue das pessoas”, disse em 2017.
Dá para imaginar que tipo de pressão o Planalto, aquele do “Brasil acima de tudo”, da soberania na Amazônia, fará no Ibama no caso da firma canadense Belo Sun, dona da autodeclarada maior mina de ouro do mundo, na região do Rio Xingu. A empresa espera uma autorização do órgão ambiental para começar a explorar.
No relatório da CNV, vê-se que quase todos os indígenas mortos por culpa da ditadura estavam na Amazônia. Entre as etnias massacradas, de 2,5 mil a 3 mil Waimiri Atroari. Estes foram vítimas de uma obra de infraestrutura da ditadura, a Usina Hidrelétrica de Balbina, situada na cidade de Presidente Figueiredo, a 130 quilômetros ao norte de Manaus. “A pior usina brasileira”, conforme uma antiga definição do físico Luiz Pinguelli Rosa, presidente da Eletrobras no governo Lula.
A Eletrobras construiu-a nos anos 1980, quando havia uns 300 Waimiri Atroari na região, mas seus estudos vinham de duas décadas antes, quando havia dez vezes mais indígenas. A ditadura concebeu um reservatório de água que inundaria árvores de pé, em vez de cortá-las. A decomposição dos troncos produziria mais efeito estufa do que uma usina a gás. Sem contar que a capacidade de produção é baixa. “Um dos maiores crimes ambientais que a engenharia já cometeu neste país”, disse, em 2016, o então ministro de Minas e Energia e ex-governador do Amazonas Eduardo Braga, atual senador pelo MDB.
Vem desse tempo, em que índios eram caçados e hidrelétricas desastrosas eram planejadas, o “equívoco” citado por dom Erwin de o governo tratar a Igreja Católica como “inimiga”. “A visão de que a Igreja é socializante é muito disseminada nas Forças Armadas”, diz o padre Virgílio Uchoa, de 81 anos, 32 dos quais passados na CNBB, onde sua última tarefa, de 1996 a 2001, foi fazer análises políticas. “A CNBB foi muito espionada na ditadura.”
Sobram casos de perseguição da farda à batina. Dom Helder Câmara, um dos fundadores da CNBB em 1952, arcebispo emérito de Olinda e Recife, era proibido de ser citado na mídia. Padre Antônio Henrique Pereira Neto, seu amigo e assessor, foi sequestrado, torturado e morto em 1969 por agentes da ditadura, como forma de intimidar dom Helder. Dom Adriano Hipólito, bispo em Nova Iguaçu, no Rio, foi sequestrado em 1976 pela tigrada da ditadura, torturado e largado numa estrada nu e pintado de vermelho.
Dom Vicente Távora, arcebispo de Aracaju, criador e principal dirigente do Movimento de Educação de Base, vivia com o telefone grampeado, recebia visitas constantes de um coronel e enfrentou prisão domiciliar nos anos 1960. Dom Antonio Fragoso, bispo de Crateús (CE), era seguido e tinha as ligações gravadas. Dom Waldyr Calheiros, bispo de Barra do Piraí e Volta Redonda (RJ), entregou-se em um quartel, em 1967, ao lado de quatro ajudantes que tinham sido presos por panfletar a favor dos pobres e dos trabalhadores.
A atuação social da Igreja no Brasil, a partir dos anos 1960, veio no embalo do Concílio Vaticano II, realizado de 1962 a 1965, por iniciativa do papa João 23, um progressista que queria uma Igreja não confinada às questões espirituais nas sacristias, mas influente nas questões terrenas e históricas. No Brasil, a aproximação com o povo levou à criação das chamadas pastorais, ações temáticas da Igreja, como a Pastoral da Terra.
Essas pastorais são “coladas” na base, há padres que moram em regiões distantes, próximos de indígenas, sem-terra, quilombolas. Foram especialmente atuantes no Brasil nos anos 1970 e delas saíram militantes políticos, como Gilberto Carvalho, do PT, chefe de gabinete de Lula por oito anos, egresso da Pastoral Operária.
O papa Francisco segue a linhagem do Concilio Vaticano II. Em 2014, criou o Encontro Mundial dos Movimentos Populares. Em 2017, o Dia Mundial dos Pobres e, na edição de 2018, comentou: “A pobreza não é procurada, mas é criada pelo egoísmo, pela soberba, pela avidez e pela injustiça. Males tão antigos como o homem, mas mesmo assim continuam a ser pecados que implicam tantos inocentes, conduzindo a consequências sociais dramáticas”. O Brasil tem 55 milhões de pobres e, segundo a OCDE, é um dos campeões em falta de mobilidade social.
Em julho de 2015, foi à Bolívia, pediu “terra, teto e trabalho” para todos e exortou: “São direitos sagrados. É preciso lutar por eles”. Em fevereiro de 2017, reuniu-se no Vaticano com empresários e criticou o capitalismo por produzir “gente descartável”. Na mensagem de Natal de 2017, apontou que “um modelo de desenvolvimento caduco continua a produzir degradação humana, social e ambiental”.
Explicado por que ele é tachado por alguns, aqui e no exterior, de “comunista”. Críticas alimentadas no Brasil por ele dar-se bem com João Pedro Stedile, do MST, e receber emissários de Lula, como Chico Buarque e Celso Amorim. Em uma missa em maio de 2018, ele comentou o selo de “comunista”. De vez em quando, disse, “aparece nos jornais: ‘Aquele padre é comunista!’ Mas a pobreza está no centro do Evangelho. A pregação sobre a pobreza está no centro da pregação de Jesus: ‘Bem-aventurados os pobres’ é a primeira das Bem-aventuranças!” Mais: “Sempre tivemos na história essa fraqueza de tentar deixar de lado esta pregação sobre a pobreza, acreditando que se trata de algo social, político. Não! É Evangelho puro, é Evangelho puro”.
Francisco enfrenta uma “guerra civil declarada pela ala conservadora da Igreja”, na definição do professor Alexander Stille, da Universidade Colúmbia, em um artigo de novembro. Mas “adota política muito sábia”, diz o padre Uchoa. Tem no meado para o colégio de cardeais bispos jovens e progressistas, ao mesmo tempo que condena firmemente a pedofilia, um pepino para os padres mais velhos. “Ele criou novos bispos na Ásia, na África… O colégio eleitoral que vai eleger o futuro papa é muito aberto, sintonizado com essa visão que ele (Francisco) tem da Igreja”, afirma Uchoa. Dos 123 cardeais de hoje, 58 (47%) foram nomeados por Francisco. Há quatro brasileiros. Dois são da era Francisco. Entre eles, dom Sérgio, presidente da CNBB.
Dom Sérgio tem a confiança papal. Em 2018, foi relator-geral do Sínodo dos Bispos. Afinado com a visão de Francisco de uma Igreja atuante fora da sacristia, sofre o mesmo bullying que o papa. De vez em quando, é tachado de “petista” por fundamentalistas, rótulo nascido da convergência de pontos de vistas, não de ação partidária. Ele se esforça para fugir de elos partidários. Diz e repete que a CNBB não se manifesta sobre pessoas ou governantes, mas sobre ideias.
Na eleição, a entidade pisou em ovos, mas ficou claro que era anti-Bolsonaro. Em um documento redigido, em abril, em sua Assembleia-Geral anual, em um programa de tevê no início da campanha e em uma reunião às vésperas do segundo turno, pregou voto em quem defendia a democracia e direitos sociais.
O mandato de Dom Sérgio termina este ano e talvez seja por isso que a CNBB tenha reagido de forma tímida à notícia de espionagem do governo. Em um vídeo, disse que o Sínodo da Amazônia é um evento da Igreja para a Igreja. E ficou por aí. A sucessão na entidade será complicada. “Os progressistas hoje são mais minoria ainda do que eram na ditadura, apesar de a Igreja no Brasil ter sido sempre muito papista”, diz padre Uchoa.
Segundo CartaCapital apurou, dom Sérgio resiste à ideia da reeleição. O principal cotado para candidato conservador é dom Orani Tempesta, arcebispo do Rio. Por acaso, foi outro brasileiro feito cardeal pelo papa Francisco, em 2014. Na eleição, posou para foto com Bolsonaro.
O futuro da CNBB e do Vaticano é politicamente importante para o Brasil, pois Bolsonaro fez da religião um assunto político-eleitoral. O voto evangélico foi decisivo no sucesso eleitoral dele. Esse grupo não para de avançar no Brasil. De 1991 a 2010, último dado oficial disponível nos censos do IBGE, o número de católicos caiu de 83% para 64%, enquanto o de evangélicos subiu de 9% para 21%.
Em 2014, havia 61% de católicos e 26% de protestantes, segundo uma pesquisa do instituto americano Pew Research. Em 2016, eram 50% a 29%, diz o Datafolha. Nesse ritmo, os evangélicos serão maioria “possivelmente” em 10, 15 anos, estima o geógrafo José Eustáquio Diniz Alves, do IBGE.
Uma das razões para os evangélicos terem abraçado Bolsonaro foi a posição dele sobre Israel. O ex-capitão prometia que, se eleito, o Brasil mudaria sua embaixada para Jerusalém. “Nosso apoio a Bolsonaro é resultado de ele apoiar Israel”, disse o “pastor” Silas Malafaia, da Assembleia de Deus, após participar, em 30 de dezembro, no Rio, de uma reunião com o premier israelense, Benjamin Netanyahu, que viera ao Brasil para a posse do ex-capitão.
Nos últimos tempos, os evangélicos e os judeus convergiram pelas mãos do Velho Testamento. Os primeiros acreditam que o Messias voltará, se os segundos unificarem as terras prometidas em Israel. A maior igreja do “bispo” Edir Macedo foi inaugurada em 2014 com o nome de Templo de Salomão.
Os apoiadores evangélicos de Bolsonaro não têm simpatia pelo vice-presidente, Hamilton Mourão, por causa de Israel. Ele recebeu o embaixador da Palestina, Ibrahim Alzeben, no fim de janeiro e em seguida disse que não há nenhuma decisão do governo de mudar a embaixada para Jerusalém. Mais: o general de pijama agora diz também que aborto é uma questão de saúde pública e que a mulher deveria ter o direito de decidir.
Malafaia ficou indignado. Tem dito que Mourão deveria ter deixado clara sua posição sobre os dois assuntos há mais tempo, na campanha. O deputado Sóstenes Cavalcante, do DEM do Rio, um dos líderes da Bancada da Bíblia, ameaça retaliar o governo em votações no Congresso. “Mourão é um poeta calado”, diz. “O Chico Mendes faz parte da história do Brasil na defesa do meio ambiente.” Outra do poeta que não se cala, desta vez em resposta ao ministro do Meio Ambiente.
A vigilância das batinas pelas fardas não é o único caso de uso do poder estatal contra os “inimigos” no atual governo. A toga entrou na mira. Ou será apenas coincidência que um senador governista tenta criar uma CPI do Judiciário, ao mesmo tempo que a Receita Federal investiga um juiz do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, e a esposa dele, Guiomar?
No dia 7, Mendes mandou uma carta ao presidente do STF, Dias Toffoli, a se queixar da investigação do Leão. Dizia ter sabido disso naquele dia, ao receber uns papéis através de canais “extraoficiais”. Na papelada há uma análise fiscal da Receita sobre “possíveis fraudes de corrupção, lavagem de dinheiro, ocultação de patrimônio ou tráfico de influência” por parte do casal.
A suspeita do auditor fiscal, um desconhecido até aqui, é que Guiomar recebe grana em sua banca advocatícia de gente favorecida por Mendes no Judiciário. De 2014 a 2016, ela embolsou R$ 8,6 milhões sem pagar impostos, na forma de lucros e dividendos. Para Mendes, a investigação é “abuso de poder” e “um ataque reputacional a alvos predeterminados”. E pedia providências a Toffoli. Que as tomou. Cobrou do chefe da Receita, Marcos Cintra, que apurasse eventuais ilícitos na investigação a respeito do casal Mendes.
Não é de hoje que os negócios do “juiz-empresário” chamam atenção. A dúvida é: por que investigá-lo agora? Teria a turma do Ministério Público Federal na Operação Lava Jato tentado reunir munição contra alguém que considera inimigo no governo Bolsonaro? O chefe da força-tarefa de Curitiba, o evangélico Deltan Dallagnol, cotado para ser indicado PGR, defendeu publicamente a mira em Mendes.
“Pode o investigado determinar investigação dos investigadores? Era essa inversão de papéis que o projeto de abuso de autoridade proposto contra a Lava Jato fazia, defendido adivinhem por quem (Gilmar Mendes)… MP e Executivo devem garantir independência da atuação dos auditores contra quem for.” Em um comunicado público no dia 11, a Receita disse que a corregedoria interna vai atrás do vazador, trata como “dossiê” a papelada que chegou a Mendes e disse não existir nada em curso contra ele (houve algo preliminar e só).
No Senado, o Judiciário também está nas cordas. O novato Alessandro Vieira, de Sergipe, de 43 anos, delegado da policial civil de origem e Jair Bolsonaro de coração, tenta criar uma CPI batizada de “Lava Toga”. Expôs seu plano da tribuna do Senado no mesmo dia que Mendes contou a Toffoli ter virado alvo do Fisco. Ele quer saber por que juízes dão liminares e depois guardam os processos na gaveta sem levar aos colegas de tribunal para uma decisão final, como foi o caso do auxílio-moradia autoconcedido, por que pedem vistas e impedem julgamentos, por que um decide uma coisa num caso, outro decide outra em caso similar.
“E, por último, a participação de ministros em atividades remuneradas que são incompatíveis com a Lei Orgânica da Magistratura”, afirmou. Será que Gilmar Mendes vestiu a carapuça? Major Olímpio, líder do PSL, o partido bolsonarista, tem dito que “o Senado não pode ficar de joelhos diante do Judiciário”. E prega ressuscitar a CPI.