Carolina Ruy: O metalúrgico assassinado pelo advogado da fábrica
Na década de 1970, período mais duro e sanguinário da ditadura militar, o ambiente de trabalho na Metalúrgica Alfa era dos piores. Não havia Cipa (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes), não havia taxa de insalubridade, a empresa não depositava o FGTS dos seus funcionários e não pagava corretamente as horas extras.
Por Carolina Maria Ruy*, no site da Força Sindical
Publicado 21/02/2019 13:49
Naquele contexto, os operários, em busca de melhores condições, ensaiaram paralisar as atividades em junho de 1978, mas foram reprimidos e humilhados pelos patrões. O presidente da empresa, com revólver em punho, chegou a agredir os empregados com coronhadas, ferindo ao menos oito pessoas.
Operários que não se identificaram por medo de represálias disseram que era comum ver o presidente e o advogado da empresa andarem armados pela fábrica. A tensão instalada entre patrões e operários foi grande e se estendeu por meses.
No dia 10 de outubro de 1978, Nelson Pereira de Jesus saiu para trabalhar e não voltou. Mineiro de Janaúba Nelson, então com 22 anos, migrou para São Paulo atrás de emprego. Conseguiu ser registrado como ajudante-geral de tapeçaria no turno da noite da Metalúrgica Alfa. Ganhava um salário mínimo.
Rômulo Magalhães Costa, colega da fábrica que estava com Nelson, contou ao Jornal da Tarde, à época, o que aconteceu naquele dia. Ao constatar que 600 cruzeiros de horas extras não estavam incluídos nos pagamentos ambos ficaram revoltados. Tentaram reclamar na diretoria e, sem sucesso, não voltaram ao trabalho.
Um guarda da fábrica, ao vê-los parados, avisou o Departamento Pessoal que demitiu Nelson e Rômulo sem nenhum direito. Eles ainda permaneceram algum tempo na rua da fábrica “batendo papo com outro guarda, quando chegou o advogado da empresa”.
Nelson fez uma brincadeira com o advogado, perguntando se ele iria pagá-los naquele momento. O advogado, entretanto, puxou o revólver e Nelson, nervoso, pulou e deu um tapa no advogado. “O doutor começou a atirar. Descarregou o revólver todinho acertando quatro tiros em Nelson, que saiu correndo pela rua”. Ele foi levado ao hospital, mas morreu logo depois, afirmou Rômulo.
O funeral do jovem foi simples. O corpo foi levado ao Sindicato, na Rua do Carmo, onde foi feito o velório. Nelson foi enterrado no Cemitério da Quarta Parada.
Depois da tragédia os operários iniciaram uma grande paralisação na Metalúrgica. Vale ressaltar que um dos companheiros de Nelson na Alfa era o metalúrgico Santo Dias, ativista sindical que também morreria tragicamente, um ano depois, baleado pela polícia em frente à fábrica Sylvania, em greve da categoria em 1979.
Contratado pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo para apurar o caso, o advogado Márcio Thomaz Bastos foi taxativo: disse tratar-se de um homicídio qualificado, com pena de 12 a 30 anos. O acusado, por sua vez, alegou “legítima defesa”. “Defesa que o fez descarregar um revólver contra uma pessoa desarmada”, assinalou o jornal “O Metalúrgico” de novembro de 1978.
O histórico de violência do acusado já acumulava episódios grotescos como a prática de atos terroristas no Comando de Caça aos Comunistas em 1968, quando era estudante da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, apontada pelo Jornal da Tarde, e a participação no espancamento dos atores da peça Roda Viva.
Depois um longo processo, no dia 7 de novembro de 1986, o advogado da empresa foi julgado e condenado a 13 anos de prisão. Em 25 de novembro de 1987, apenas um ano depois, o Tribunal de Justiça de São Paulo anulou o julgamento.
Atualmente ele trabalha como assessor jurídico no Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo e como diretor jurídico da Federação Interestadual União das Tradições e Cultura Afro-Brasileira (Fiutcab).
Já Nelson Pereira de Jesus poderia ter encontrado outro trabalho, poderia ter se tornado sindicalista, poderia ter estudado e mudado de profissão, poderia ter tido filhos, família, poderia ter 63 anos em 2019, poderia estar próximo da aposentadoria – mas teve sua vida interrompida por reivindicar seus direitos, aos 22 anos de idade, 40 anos atrás.
* Carolina Maria Ruy, jornalista, coordenadora do Centro de Memória Sindical