Publicado 26/12/2018 10:04
por Alline Magalhães para a Folha de S. Paulo
Um documento encontrado por um pesquisador na cidade de Santos (SP) evidencia que o Estado-Maior do Exército distribuiu material com orientações para que autoridades militares perseguissem pessoas consideradas comunistas durante a ditadura militar (1964-1985).
Trata-se do “Manual de Campanha C 100-20 – Guerra Revolucionária”, um livro de 266 páginas que indica ter sido impresso em 1969 pelo Estabelecimento General Gustavo Cordeiro de Farias (EGGCF), a gráfica do Exército.
Segundo quatro especialistas no período de ditadura militar consultados pela reportagem da Folha, trata-se de uma publicação rara.
De circulação interna e tiragem de 5.000 exemplares, o manual registra ter sido aprovado e colocado em prática pelo então general do Exército e chefe do Estado-Maior do Exército, Adalberto Pereira dos Santos (1905-1984).
Vice-presidente no governo de Ernesto Geisel (1907-1996), Santos foi membro do Conselho de Segurança Nacional, que, em 13 de dezembro de 1968, aprovou o Ato Institucional número 5.
O decreto permitiu o fechamento do Congresso Nacional, cassação de mandatos políticos e suspensão do direito de habeas corpus pelo governo de Costa e Silva (1899-1969).
O manual do Exército contextualiza a Guerra Fria como sendo o período em que a humanidade se defrontou com duas grandes correntes ideológicas, o comunismo e a democracia.
“Às Forças Armadas, parte integrante da nação e, como ela, democráticas por convicção, cabe indiscutivelmente papel essencial nessa vigilância”, diz um dos trechos do manual, que argumenta ter havido um contragolpe para evitar uma revolução comunista em março de 1964.
Embora também discuta a questão das guerrilhas, o foco da publicação do Exército é a “arma psicológica” que seria utilizada por subversivos por meio de propagandas, livros e encontros em associações civis, estudantis, sindicais e até mesmo no âmbito do Ministério da Educação —que estaria sofrendo uma sistemática doutrinação “marxista-leninista”.
Em certos pontos, o documento apresenta uma perspectiva dos dissidentes que beira a paranoia.
“Pela lavagem cerebral, destrói-se a personalidade dos indivíduos”, diz o manual.
Em outros, descreve os aspectos brutais da repressão. Um dos capítulos, por exemplo, narra as “ações destrutivas” dos supostos agentes da revolução comunista com o fim de desmoralizar o governo e atingir a ordem social.
Algumas dessas ações seriam as greves de operários, as passeatas e os comícios considerados ilegais pelo regime militar.
Ao descrever o comportamento dos rebeldes, o manual menciona que eles desafiam as autoridades para provocar o “derramamento de sangue” e criar os “mártires da revolução”.
“A massa é levada a considerar a ‘missão sagrada de não trair a fé dos mártires mortos’. E o sangue derramado pode transformar o mais banal dos acontecimentos em um fato de grande repercussão, por sua exploração emocional”, diz o texto.
No entanto, o conceito de “guerra revolucionária” nele abordado já foi encontrado em outras publicações militares, como no “Mensário de Cultura Militar” e no “Boletim de Cultura Militar”.
Para João Roberto Martins, professor de ciências políticas da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), a publicação tem importância histórica.
“A leitura desse documento parece comprovar que a repressão e a tortura tinham um sólido fundamento ideológico”, diz Martins.
O professor explica que a doutrina da “guerra revolucionária”, definida como guerra interna com viés ideológico, fora importada pelos militares latino-americanos do Exército francês, que a empregava junto a práticas violentas nos conflitos na Indochina (Sudeste Asiático) e na Argélia.
Eduardo Heleno de Santos, professor do Instituto de Estudos Estratégicos da UFF (Universidade Federal Fluminense), que tem convênio com órgãos militares, também avalia a influência da doutrina no aparato repressivo.
“Um dos aspectos mais importantes é que ela assume a ideia de um inimigo interno”, diz.
Fonte: Folha de S. Paulo