O voo sem volta da Embraer
Os principais feitos do governo Temer em política externa não estão no esvaziamento da Unasul, na mitigação do Mercosul ou no papel acentuadamente irrelevante que o Brasil assume nos BRICS. Os pontos de destaque estão na desnacionalização da produção energética, através do desmonte da área de refino da Petrobras e do fim do regime de partilha, e na desnacionalização da Embraer.
Por Gilberto Maringoni*
Publicado 19/12/2018 02:02
O impacto desses dois eventos se dará não apenas na indústria e na economia (a Petrobrás chegou a representar 14% do PIB e a Embraer é nossa principal exportadora de tecnologia). O baque maior está na sinalização de que desenvolvimento e projeto nacional saem de cena e que nosso destino é a periferia do mundo.
A venda da Embraer à Boeing representa um passo decisivo no desmonte produtivo/tecnológico do país. O negócio coloca em tela a sequência do processo de privatizações iniciado nos anos 1990, durante os governos tucanos. Assim como a Vale privatizada deixou de ser uma empresa de ponta em 27 áreas diferentes para se tornar uma mineradora, a Embraer pode virar apenas uma montadora de projetos vindos de fora.
A empresa apresenta pelo menos três jóias que a tornam atraente ao capital externo: a expertise na fabricação de jatos regionais, de caças turbohélices e – agora – de cargueiros aéreos.
A Boeing se interessa especialmente pelo primeiro filão, visando exibir um portfólio completo de aviões de passageiros. Absorvendo a empresa brasileira, ela disputará de igual para igual com a Airbus (consórcio alemão, britânico e francês) os mercados de jatos de longo e curto alcance, podendo obter ganhos de escala em todas as modalidades da aviação comercial.
O mercado mundial dessa modalidade é extremamente competitivo e concentrado em poucas empresas. Ele é dominado por quatro corporações, Boeing, Airbus, Bombardier (Canadá) e Embraer. As duas primeiras dividem cerca de 60% do mercado planetário, a Embraer é líder mundial em jatos de até 150 lugares, seguida pela Bombardier. O restante é disputado pelo consórcio entre as russas Irkut e Yakovlev (United Aircraft Corporation), pela Mitsubishi japonesa, pela Comac (Commercial Aircraft Corporation of China).
Embora a Irkut (1932) e a Yakovlev (1934) tenham longa tradição no setor, a fusão entre as duas data de 2004 e seu nicho de mercado ainda é restrito à Rússia e a alguns países do leste europeu. A chinesa foi fundada em 2008 e somente agora passa a disputar espaços além fronteiras. A Mitsubishi fabricou um dos caças-ícones da II Guerra Mundial (o A6M5 Zero), mas seu avião comercial, o Mitsubishi Regional Jet (MRJ) fez seu primeiro voo apenas em 2015.
Assim, a única possibilidade para a Boeing enfrentar a concorrência da Airbus é algum tipo de associação com a Embraer. Isso faz com que o poder de barganha dos acionistas da brasileira seja altíssimo.
É bem possível que a Embraer não seja viável no médio prazo, caso se mantenha como está, ou seja, disputando apenas os nichos de aviação comercial e militar (que fica fora da negociação), sem oferecer em sua carteira aeronaves maiores.
Há infinitas possibilidades de associação com a gigante estadunidense, além de sua venda pura e simples. Essa opção aliena um conhecimento acumulado ao longo de meio século, implica que dentro de alguns anos suas linhas de produção sejam transferidas para os EUA. Além disso, torna-se questão de tempo a quebra de dezenas de empresas nacionais de componentes aeronáuticos e o desaparecimento de milhares de postos de trabalho. As carreiras de engenharia aeronáutica e aeroespacial perderão muito de seu sentido , passando a atender empresas de aeronaves de pequeno porte. Ou seja, o abalo interno será pesado.
Por fim, um comentário lateral. A Boeing irá adquirir 80% da divisão de aviação comercial da Embraer por US$ 4,2 bilhões.
Para efeito de comparação, o desenvolvimento e fabricação do Embraer KC-390, o maior e melhor cargueiro militar aéreo do mundo, é resultado de uma soma de investimentos públicos (BNDES, PAC e FAB) que atingem US$ 3,9 bilhões. Seu mercado potencial alcança US$ 60 bilhões para a próxima década. Este setor faz também parte da negociação e mostra a magnitude das cifras do setor. Em 2016, a receita líquida da empresa foi de US$ 6,1 bilhões.
A venda da Embraer representa a alienação de um patrimônio e de investimentos públicos de décadas, a quebra de um setor industrial de ponta e a conformação de um projeto que implica empurrar cada vez mais o Brasil para a periferia. Não é à toa que conta com o apoio entusiasmado de Jair Bolsonaro e de alguns militares marcados por um patriotismo de fachada e um entreguismo de alma.
Embraer foi vítima de lawfare
Em 2016, empresas brasileiras como a Embraer sofreram atos de persecução do Departamento de Justiça norte-americano e acabaram por firmar acordos com aquele órgão estrangeiro, em sintonia com as autoridades locais. Tais acordos estabeleceram obrigações pecuniárias e de outras naturezas, tais como o monitoramento interno da companhia. Dois anos depois, foi anunciada uma operação da Embraer com a Boeing, uma estratégica empresa norte-americana. Difícil crer que apenas uma afinidade comercial tenha orientado esse resultado.