Como previsto, intervenção no RJ chega ao fim com péssimos resultados
Foram 1.444 falecimentos até novembro deste ano, segundo dados oficiais. Já a plataforma Fogo Cruzado registrou mais de 8.000 ocorrências desde o decreto do presidente Michel Temer. Intervenção deve ser encerrada no próximo dia 31 de dezembro.
Publicado 19/12/2018 09:33
Em uma audiência na Câmara dos Deputados, em julho do ano passado, o Comandante do Exército Brasileiro, General Villas Bôas, criticou a participação de soldados do Exército em ações de segurança pública nas favelas do Rio de Janeiro porque, segundo ele, “esse tipo de emprego das Forças Armadas é inócuo e, para nós, é constrangedor.”
O próprio Alto Comando das Forças Armadas reforçou esta opinião quando, em 16 de fevereiro de 2018 o presidente Michel Temer, buscando desesperadamente barrar a escalada de críticas ao seu governo, decretou a intervenção federal na área de segurança do estado do Rio de Janeiro. Em uma matéria da Piauí intitulada “Mal-estar na caserna”, o jornalista Fabio Victor detalha alguns bastidores dos dias seguintes ao decreto: “o tom entre […] o Alto Comando foi de reprovação à intervenção em si e ao modo apressado e atabalhoado com que a medida acabou sendo imposta. O plano lhes parecia um festival de improvisos.” A isso se soma a indisposição em geral dos militares em lidar com esse tipo de ação, por motivo simples: ela é inócua, porque o crime no Rio de Janeiro opera sob a lógica da guerra irregular, enquanto o Exército é, por definição, uma entidade regular. Assim, a inevitável falha do Exército, a longo prazo, se torna uma mancha em sua reputação. Ainda assim, o Comando requisitou a Temer mais recursos para a intervenção, e medidas adicionais ao decreto: mandados coletivos de busca e apreensão e regras mais flexíveis para a tropa, entre as quais a permissão para atirar em civis com “intenção hostil.”
O decreto da intervenção foi aprovado com facilidade no Congresso Nacional, mas houve alertas importantes sobre os riscos da medida. Na ocasião, a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) cobrou respostas do ministro da Defesa, Raul Jungmann: “A gente conhece bem a lógica da cidade do Rio quanto à violência, mas até onde as intervenções por força militar tiveram resultado na diminuição da criminalidade? A Rocinha foi ocupada durante o Rock in Rio, mas até hoje tiroteios com vítimas fatais ocorrem na comunidade. As linhas Amarela e Vermelha, além da Avenida Brasil, viraram cruzamentos de risco por conta dos tiroteios. Que legado realmente é esse?”, questionou Jandira.
Para a parlamentar, o uso do decreto nº 9288 de intervenção militar foi feito de forma imediatista por Michel Temer, junto da falta de planejamento, estratégia ou orçamento especificado: “O presidente baixa um decreto na madrugada da semana de Carnaval sem saber como as Forças vão trabalhar efetivamente no Rio. O papel de polícia não é do exército e as Forças Armadas podem ter sua imagem desmoralizada pelo uso político e populista deste Governo”, avaliou a parlamentar logo na primeira semana de intervenção.
Desde então, foram destinados 1,2 bilhão de reais para a inglória tarefa, mobilizados milhares de soldados e oficiais das Forças Armadas e os resultados apresentados até aqui são desastrosos.
Mais mortes, mais roubos, mais tiroteios
Com seu encerramento marcado para o próximo dia 31 de dezembro, a intervenção, ao invés de “deter a escalada de crimes” — como prometeu Temer –, acabou aumentando a sensação de violência no Estado, sobretudo para a população mais pobre. 2018 foi o ano com o maior número de mortes causadas por policiais fluminenses desde que se iniciou a série histórica, em 2003. Foram 1.444 mortes até novembro, segundo os dados divulgados nesta terça-feira do Instituto de Segurança Pública (ISP), autarquia vinculada a Secretária de Segurança Pública. Isso significa, até o momento, 4,3 mortes por dia. Com os dados de dezembro, ainda não computados, a cifra deve ultrapassar as 1.500 mortes.
Os dados também significam um aumento de 39% em relação ao mesmo período, janeiro a novembro, do ano passado, quando foram registradas 1.042 ocorrências. O recorde anterior era de 2007, ano anterior à implantação das Unidades de Polícia Pacificadora, quando o ISP contabilizou 1.330 homicídios decorrentes de intervenção policial. A partir de então os números começaram a cair e atingiram um mínimo de 416 mortes em 2013. A partir do ano seguinte as ocorrências voltaram a subir.
O recorde vem acompanhado do aumento do número de tiroteios durante o período da intervenção, que foi decretada em 16 de fevereiro deste ano, quando o general quatro estrelas Walter Braga Netto foi designado pelo presidente Michel Temer como interventor federal, uma espécie de governador da área de segurança pública.
A intervenção federal explica que as corporações policiais recuperaram sua capacidade operativa, sucateada ao longo dos anos. Isso significa mais policiais e viaturas nas ruas e, consequentemente, mais operações e mais criminosos mortos. "Mas se isso é assim, se o confronto ficou mais violento e por isso há mais vitimização, por que não aumentou o número de policiais mortos em confronto?", questiona Pablo Nunes, cientista político e coordenador de pesquisa do Observatório da Intervenção, vinculado ao Centro de Estudos e Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Cândido Mendes. Um total de 31 policiais militares e civis foram mortos em serviço de janeiro a novembro de 2018, exatamente o mesmo número desse mesmo período no ano passado. Esse aumento de mortes poderia significar um melhor treinamento dos policiais na hora dos confrontos, assim como um aumento de execuções fora do contexto de legítima defesa — ou seja, casos de violência policial, algo recorrente na história do Rio.
"É muito difícil fazer essa análise [sobre os dados de 2018] porque depende de uma análise qualitativa [dos detalhes do crime] dos registros de ocorrência, algo que não temos acesso. Além disso, esses registros são pobres com relação ao estudo dessas dinâmicas", pondera Nunes. Seja como for, o Observatório considera que os índices são resultado de uma "reafirmação da estratégia de confrontos armados, gastos concentrados em grandes operações e a ausência de uma reforma estrutural da política de segurança".
A socióloga Maria Isabel Couto, do laboratório de dados sobre violência urbana Fogo Cruzado, concorda com o colega.
"Consistentemente, todos os relatórios que lançamos mostram um aumento da violência armada durante a intervenção", afirma. "Isso significa que a própria política de segurança tem um impacto grande na violência armada. É um efeito claro do aumento das operações grandes e com muitos agentes."
Segundo Maria Isabel, eventualmente, pode haver a redução de alguns índices. Mas o impacto sobre o dia a dia da população – sobretudo de áreas mais carentes – é cada vez maior.
Impacto negativo para a população
"A violência por arma de fogo afeta a população de forma muito ampla: é o trem que fica sem circular, a escola que é fechada, o posto de saúde que não abre. São várias pessoas que não conseguem sair de casa para ir trabalhar, outras que são baleadas dentro do transporte público, por exemplo", explica Maria Isabel. "Começamos a medir os tiroteios contínuos, aqueles que duram mais de duas horas. No total, durante a intervenção, foram mais de 260 horas de tiros; teve tiroteio contínuo que durou mais de 24 horas."
A plataforma registrou 8.237 ocorrências desde o início da intervenção até às 9h da manhã do último 15 de dezembro. Nos mesmos 10 meses do ano anterior foram 5.238 tiroteios. Além disso, analisando os 10 meses anteriores a intervenção, entre os dias 16 de abril de 2017 até 15 de fevereiro deste ano, foram 5.669 tiroteios.
Outros índices confirmam os maus resultados da Intervenção. De janeiro a novembro deste ano, o ISP contabilizou 4.595 homicídios dolosos, enquanto no mesmo período do ano passado foram 4.901 (queda de 6%). Já o indicador de letalidade violenta (homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e morte por intervenção de agente do Estado) subiu 1% no último ano, de 6.201 para 6.248 ocorrências.
Apesar de uma maior mobilização de efetivos policiais e do Exército, através de um decreto de Garantia da Lei e da Ordem, os roubos de rua aumentaram 4% no último ano. Por sua vez, os roubos de carga caíram 11% de 2017 para 2018 — embora tenham voltado a aumentar desde setembro deste ano, coincidindo com uma queda no número de operações policiais. "Houve uma aposta novamente em operações policiais, que é um tipo de estratégia que pode sim dar resultado no curto prazo, mas que se não for acompanhado de investigação para tentar entender a cadeia completa do crime, passados alguns meses esses crimes voltam a crescer. É o que acontece com os roubos de carga", explica Nunes.
Em nota oficial, o Gabinete da Intervenção Federal (GIF) afirmou que os empenhos financeiros para a área de segurança pública alcançam 62,9% dos recursos de R$ 1,2 bilhão destinados pelo governo federal. Ainda segundo a nota, o valor comprometido com compras já chega a R$ 755 milhões.
Da redação, com informações do El País e revista Ópera