Publicado 19/12/2018 01:35
As nossas elites não suportam governos que se atrevam a promover políticas públicas para reduzir desigualdades sociais e queiram um país democrático e soberano, permitindo aos que vem de baixo galgar alguns poucos degraus e desenvolvimento independente do Brasil. Odeiam os pobres e já teriam se mudado para os Estados Unidos se pudessem sonegar impostos lá como fazem aqui.
As elites dominantes se articulam com as forças armadas para perpetrar golpes de estado contra a democracia: foi assim com Getúlio (1954); Jango (1964); Dilma (2016) e com a prisão de Lula (2017), líder de todas as pesquisas eleitorais. A desculpa é sempre a mesma: ameaça do fantasma do “comunismo” e o combate à corrupção, mesmo que os golpistas sejam corruptos confessos.
No caso do golpe civil e militar de primeiro de abril de 1964, como houve resistência da sociedade contra o arbítrio, recrudesceram ainda mais a ditadura, institucionalizando a tortura através do Ato Institucional nº 5 (AI 5), baixado em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Costa e Silva, e que vigorou por dez anos, até dezembro de 1978.
O ano de 1968 foi emblemático, varreu o mundo com movimentos pelas liberdades civis e contra a política e os costumes tradicionais. Infelizmente, os limites destas mal traçadas linhas não permitem discutir com maior profundidade o que estava ocorrendo no cenário internacional. Mas foi uma época de grandes protestos na Europa, sobretudo da juventude e de trabalhadores na França, e nos Estados Unidos, quando Martin Luther King foi assassinado.
Por aqui, o objetivo era calar os artistas, intelectuais, estudantes, brasileiros (as) que lutavam pela democracia e pela soberania do país. Embora a ditadura controlasse os meios de comunicação, particularmente a televisão, era no cinema, no teatro e na música que se proliferavam diversas formas de protesto, além das ruas, é claro. Em 1968, a consciência dos trabalhadores, da juventude e de setores da classe média foi embalada pela estreia da peça “Roda Viva”, de Chico Buarque, pelo lema “É proibido proibir”, da música de Caetano Veloso, e “Pra não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré.
O movimento estudantil, especialmente nas universidades, participou mais ativamente dos protestos contra o regime militar depois do assassinato do estudante Edson Luís, quando da realização de um ato pacífico. Posteriormente, durante uma manifestação de estudantes na frente da embaixada dos EUA, em um ataque violento ao extremo, 28 pessoas foram mortas, provavelmente para dar uma demonstração de força contra a juventude brasileira e de subserviência aos interesses norte americanos.
Os metalúrgicos de Osasco fizeram a primeira grande greve depois de 1964, e instituições que haviam apoiado o golpe, como a Igreja e a OAB, em defesa dos direitos humanos, começam a criticar a ditadura.
Essas manifestações desembocam na “Passeata dos Cem Mil”, na Cinelândia. As pichações “Abaixo a ditadura” se espalham pelo país. As manifestações de rua tem forte presença de lideranças de esquerda, pertencentes a Ação Popular, ao PCdoB, entre outros.
Os militares que assumiram o poder em 1964 garantiam que as eleições presidenciais, de 1965, iriam ocorrer, no entanto não foi isso que aconteceu. Antigas lideranças e adversários políticos, marginalizados, como Juscelino Kubitschek (PSD), João Goulart (PTB) e Carlos Lacerda (UDN) constituíram uma “Frente Ampla” em defesa da democracia e contra a ditadura.
Um pronunciamento do deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, foi a gota d’água para a outorga do AI-5, quando conclamou o povo a não participar dos desfiles militares do 7 de Setembro. A Câmara recusou o pedido do governo de licença para processar Alves, inclusive com votos da ARENA.
No dia seguinte dessa votação foi baixado o AI-5, que autorizava o regime de exceção a: decretar o recesso do Congresso Nacional; intervir nos estados e municípios; cassar mandatos parlamentares; suspender, por dez anos, os direitos políticos de qualquer cidadão; decretar o confisco de bens considerados ilícitos; suspender a garantia do habeas-corpus; censura prévia à imprensa e às atividades culturais. No seu preâmbulo afirmava que o objetivo foi “encontrar os meios indispensáveis para a obra de reconstrução econômica, financeira e moral do país”.
O Congresso Nacional foi fechado por tempo indeterminado, só voltando a se reunir em outubro de 1969, para referendar a escolha do general Médici, como novo ditador. A lista de cassações não atingiu só parlamentares, como Márcio Moreira Alves, mas até ministros do Supremo Tribunal Federal. No total foram cassados 113 deputados federais e senadores, 190 deputados estaduais, 30 prefeitos e 38 vereadores. Mais de 200 livros, 450 peças teatrais e 500 filmes foram censurados.
A história deveria ser um instrumento para não repetirmos os erros pretéritos, pois sua principal função é o conhecimento do passado para que possamos compreender o presente. No entanto, esse processo é muito mais complexo e não ocorre automaticamente, por osmose, cada sociedade precisa viver sua própria experiência e superar os seus desafios e contradições. Nesse contexto, para o historiador francês Lucien Febvre:
“Passado não quer dizer ‘morte’ para o historiador […]. Ele encontra a vida e não impõe aos vivos as leis deixadas pelos mortos […]. O passado não obriga […]. É através do presente que se reconhece e se interpreta o passado. O historiador faz a História que o presente tem necessidade […]. Organizar o passado em função do presente: é o que se poderia chamar a função social da História”.
A história precisa sempre lembrar o que alguns querem que muitos esqueçam, como afirmava o historiador inglês Eric Hobsbawm. Nesse sentido, a Comissão da Verdade, após dois anos e sete meses de trabalho, informou que foram 434 mortos e desaparecidos políticos, presos arbitrariamente e torturados barbaramente, durante a ditadura militar.
No entanto, apesar de toda essa brutalidade, essas atitudes voltaram à cena política no processo eleitoral deste ano, sendo consideradas como atitudes não condenáveis, como práticas “comuns”, “normais”, tanto pela mídia “oficial” quanto pelo STF. Por esta razão, tomamos emprestado de Zuenir Ventura o título deste ensaio.
O candidato que venceu a eleição defende abertamente a ditadura, a tortura e a memória de um dos mais sanguinários torturadores do regime militar. Na eleição presidencial de 2018, 50 anos depois do famigerado AI 5, todas as forças políticas que ajudaram a sociedade brasileira a derrotar a ditadura militar, na redemocratização de 1985 e com a conquista da Constituição cidadã de 1988, foram derrotadas pelos senhores de 1964.
Felizmente, os historiadores também nos ajudam a compreender que a história não é uma estrada retilínea que caminha inevitavelmente para frente, mas é feita de avanços e retrocessos, de vitórias e derrotas. Segundo o filósofo alemão Karl Marx, em sua concepção dialética:
“A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa […]. Os homens fazem a sua própria história, mas não o fazem como querem […], a tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”.
Diante dessa nova realidade, é imperativo a união de todos aqueles que defendem uma sociedade justa, a paz e as liberdade civis para a formação de uma nova Frente Ampla, que reúna intelectuais, artistas, lideranças empresariais e de trabalhadores, a juventude, personalidades políticas em geral na defesa da Constituição, da democracia e da soberania do Brasil.
* Dalton Macambira é professor do Departamento de História da Universidade Federal do Piauí – UFPI
Sugestões de leitura
Zuenir Ventura. “1968: O ano que não terminou”. São Paulo, Planeta do Brasil, 2008.
Beatriz Kushnir. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo, Boitempo, 2012.
Jorge Ferreira e Ângela Gomes. 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2014.