A polissemia política do “colete amarelo”
Os movimentos de protesto que agora eclodem em França (e já expandem para a Bélgica) sob o espectro dos 'coletes amarelos' prestam-se ao aproveitamento político pelas forças que se revelem mais estruturadas e, nesse âmbito, jogando sobretudo no terreno das redes sociais, a direita tem revelado maior proficiência. Deflagrando na antecâmara do fim-de-ano e das festas natalícias, apresenta significados diversos, contraditórios e concomitantes: é politicamente polissémico*
Alexandre Weffort, para O Lado Oculto**
Publicado 17/12/2018 17:50
Nas entrelinhas da pouca informação
Para procurar compreender o significado do movimento dos 'coletes amarelos' e a forma como estes se articulam temos de, necessariamente, recorrer ao manancial noticioso que nos chega pelos 'media' instituídos (jornais e revistas com sistemas de produção informativa profissionalizados) e os 'media' apelidados de 'alternativos' (que circulam pela internet, através de 'blogs' e 'sites' de cariz informal). Alguns deste sites dedicam-se sistematicamente à difusão de 'fake news' e, num deles, à promoção de uma réplica dos 'coletes amarelos' em Portugal, em evento a ocorrer no próximo dia 21 de dezembro, promovido pela ultra-direita lusitana.
Voltando ao tema dos 'coletes amarelos' franceses e ao movimento de protesto que simbolizam, notamos a forma como os meios noticiosos (institucionais ou alternativos) pouco esclarecem sobre o que efectivamente representa o movimento em termos políticos. Sublinha-se a ausência de uma liderança explicitada, o que dá ao movimento um ar de espontaneidade, legitimada por um sentido moral admissível: a indignação. E, a indignação irá servir para justificar os actos de vandalismo quase aleatório que tem acompanhado os eventos últimos, nomeadamente, em Paris.
Em contraponto a esta visão, trazida pelos media, uma reportagem videográfica do eventos de sábado 8/12 (Serge Faubert / Du Media) apresenta a natureza popular e pacífica que nutre parte substancial das manifestações e denuncia o envolvimento das forças policiais nas acções violentas (como infiltrados) e o uso desmedido da repressão.
Desde o eclodir dos protestos (ou da sua forma mais visível, chegando ao centro urbano de Paris) foi notória a tentativa de colagem da ultra-direita francesa, com Marine Le Pen a endereçar críticas ao governo de centro-direita de Emmanuel Macron.
Por outro lado, a esquerda também procura aproximar-se do movimento, por via de um enquadramento sindical dos actos reivindicativos e, também, pela concomitância de protestos de diversas áreas sócio-profissionais e estudantis – 50 anos passados sobre Maio de 68, a França volta a ser o palco de convulsões políticas violentas.
O pedreiro lusitano
Os protestos dos 'coletes amarelos' inserem-se na lógica global. Iniciam-se (na vertente cibernética) pela mão de um português (ou antes, de um cidadão francês, luso-descendente) noticiado como pedreiro de profissão, que em janeiro de 2018 lança no 'facebook' um grupo intitulado «Colère 2.4». Nas notícias, além de algumas informações de carácter geral, entre elas enfatizando a profissão de pedreiro (o que nos remete para uma circunstância de classe), sobressai a fotografia em que o cidadão surge frente ao seu veículo (recente, de marca BMW).
Os protestos dos 'coletes amarelos' não são os únicos nem os primeiros que sacodem a França nestas primeiras décadas do século 21. Em 2005, protestos envolvendo a questão da integração de comunidades emigrantes (tendo como motivo a morte de dois jovens tunisinos numa perseguição policial) assumiram também formas massivas e violentas.
A imagem clássica do 'pedreiro' – na tipologia do indivíduo pertencente à classe operária – entra assim contradição com a da posse do veículo de custo (muito) elevado, e que é também símbolo de poder económico. A contradição, aqui apontada no plano simbólico, não nega a veracidade da informação, mas salienta algo a reter quando se procura o significado concreto dos protestos.
O 'facebook' e a simbologia 'anonymous'
O grupo de 'facebook' «Colère 2.4» apresenta outros condimentos interessantes: um número elevado de seguidores – mais de 90 mil, segundo uma notícia publicada (15 mil, segundo o 'facebook') sendo 2400 apenas na última semana – e uma intensa actividade – mais de 3600 publicações no último mês. Entre os administradores do grupo surge uma imagem frequente nos protestos dos últimos anos, da máscara 'anonymous', símbolo associado à actividade de protesto no âmbito das redes sociais virtuais (e também em protestos reais). Uma máscara "anonymous" pode ser vista a ser utilizada por um dos infiltrados (que a reportagem de Faubert indica serem agentes das forças policiais).
O 'facebook' surge, novamente, como veículo e ferramenta de mobilização privilegiadas destes movimentos de protesto – uma matéria noticiosa (publicada pela 'Paste Media Group') assinala o papel político desta rede social («Facebook is Helping to Fuel the Riots in France»).
Assim aconteceu no Brasil, em 2013, em movimento de desagregação das instituições políticas que conduziram às eleições presidenciais deste ano, com a clamorosa derrota da social-democracia (com o PSDB, partido de Fernando Henrique Cardoso, a ser virtualmente engolido pela ultra-direita de Jair Bolsonaro).
Argumentos que colhem óbvia adesão, também em Portugal
O contexto em que eclodem os protestos – com foco na questão climática e nos impostos sobre os combustíveis – colocam de forma incontornável o problema da mobilidade e do papel essencial do veículo pessoal face à concentração de recursos nos grandes centros urbanos (e à rarefacção destes nos espaços rurais), como acontece em Portugal, com o sistema de saúde e de ensino (com o encerramento de centenas serviços locais, escolas, centros de saúde, agências de correios, agências bancárias, etc.), concentração que, aliada à deficiente rede de transportes públicos, impele à aquisição de viatura própria como recurso indispensável à vida familiar (em Portugal o preço dos combustíveis é já agravado por uma carga de impostos que superam os 50% do custo do produto, imposto que se irá refletir no custo de todas as mercadorias transportadas, já oneradas pelas taxas de imposto comercial).
No entanto, se o contexto económico torna as razões do protesto evidentes, não deixa de haver também agendas menos expostas e que podem ajudar a compreender porquê esta vaga de protestos: as políticas económicas seguidas na Comunidade Europeia têm penalizado fortemente as populações com impostos, ao mesmo tempo que desculpam o sistema bancário da má gestão que conduz à falência de instituições financeiras que acabam intervencionadas (ou seja, sustentadas pelos impostos de todos). Nesse processo, salvam-se as fortunas dos banqueiros e afins, perdoam-se dívidas e impostos aos detentores do grande capital, evita-se taxar as grandes fortunas (como fez agora Macron, dando origem à crise francesa).
O dedo da geo-política
No âmbito das agendas ocultas, o site noticioso russo 'Sputnik' sugere haver uma correlação entre o eclodir dos protestos e o desentendimento político de Macron com Trump, relacionado com a ideia de criação de um exército europeu, ideia que Trump considera "insultuosa".
Por outro lado, enquanto surgem acusações de Londres à Rússia, de ingerência nos assuntos internos franceses (instigando os protestos, o que foi prontamente negado por Moscovo), o governo francês reclama directamente da ingerência dos EUA, reagindo a mensagens de Trump, emanadas via 'Twitter'.
Na matéria publicada pela Sputnik é ainda referida a viragem à direita em curso na Europa (vimos recentemente o crescimento da 'Vox' na Catalunha), caminho pretendido por Steve Banon (ideólogo de Trump e, também, de Bolsonaro), que recentemente anunciou a criação de uma instituição com vista à promoção do populismo de direita na Europa (instalando uma Universidade para essa finalidade num famoso mosteiro medieval italiano) e, também, a abertura de um escritório do seu movimento político em Bruxelas.
A crise global da social-democracia
Tanto no caso brasileiro como no que agora se observa em França, o modelo social democrata, que serve de ideário à própria Comunidade Europeia, é directamente colocado em causa pela ascensão da ultra-direita. A campanha ideológica contra o chamado "Estado social" leva à terciarização dos serviços sociais do Estado. Em Portugal, isso torna-se cada vez mais nítido, com a política de destruição do SNS – Serviço Nacional de Saúde, pelos constantes ataques ao ensino público e à continuada degradação das condições laborais na administração pública, com carreiras congeladas há quase uma década.
Até à década de 1990, a partição geo-política bipolar (entre a ex-URSS e os EUA), sendo dominante, criava espaços de realização de projectos políticos ideologicamente não-alinhados (havia, inclusivamente, uma presença assídua nos meios de comunicação de matérias relativas ao movimento dos países não-alinhados, com forte expressão na arena mundial) e a coabitação ideológica entre um sistema económico de base capitalista e uma política de Estado social (o que será uma forma simplificada de definir a social-democracia).
O automóvel, símbolo de uma época
A 'desideologização' do discurso político acompanha o surgimento de novas simbologias, onde os 'coletes amarelos' são portadores de um traço contraditório: criam uma identidade ocasional (protestos de fim-de-semana) onde se diluem as limitações individuais (dando azo a actos de aparente bravura – a cólera manifesta-se no espaço público); no entanto, o símbolo acarreta outra dimensão – a do automóvel (onde o condutor adquire um poder individual reforçado pela máquina).
O desenvolvimento tecnológico hodierno aponta para que a energia da combustão utilizada na circulação humana seja definitivamente substituída pela energia eléctrica, mudança de paradigma que ocorreu já no âmbito das comunicações, a industria do automóvel com motor de combustão entrou no seu ocaso. E, naturalmente, as primeiras vítimas dessa mudança de paradigma serão os felizes proprietários de dispendiosas viaturas (dramaticamente tipificadas na figura do pedreiro luso-descendente e seu BMW).
Os 'coletes amarelos' são, assim, portadores de simbologias várias. A da mobilidade não dispensa a da propriedade, da posse particular do meio de transporte, sendo a máquina concebida um acrescento indispensável ao corpo e à mente moderna (basta ver como o uso de um veículo em pequenas deslocações se tornou coisa rotineira).
O carro simboliza também o poder económico que caracteriza a classe média (mesmo que depauperada) e, ao decidir um aumento do imposto sobre o gasóleo, Macron entrou em colisão com aquele valor simbólico, o qual foi claramente subestimado na sua relevância política.
Identidades de resistência em busca de projectos de futuro
Na retórica política de hoje, o debate continua a situar-se entre as posições de direita e de esquerda. No entanto, no plano eleitoral, o que se observa é a absorção do espaço do centro-direita (antes ocupado pela social-democracia) pela direita radical.
Com o fim da URSS, a hegemonia dos EUA acentuou as clivagens ideológicas. Todavia, os eleitorados, fatigados em relação às formas institucionais de existência política, foram sendo cativados por novas formas de expressão política onde a 'identidade de resistência' (para recorrer a conceitos propostos pelo sociólogo Manuel Castells) se constituía sem uma suficiente clarificação dos posicionamentos em relação ao futuro.
O passo seguinte, na teoria de Castells, é o da transformação da 'identidade de resistência' em 'identidade de projecto'. A transformação de um movimento de protesto em algo construtivo é, todavia, bastante mais exigente e não se processa sob o anonimato: para ocorrer, os actores sociais têm de assumir, de facto, os papéis políticos a que se propõem.
Na altura em que interrompemos a redação deste texto, o presidente francês Emmanuel Macron irá dirigir-se à nação, em discurso anunciado como a busca de uma pacificação interna da sociedade francesa (rezam os meios noticiosos, com cedências várias mas infrutíferas), perante um conflito que Jean-Luc Mélenchon (líder da 'França Insubmissa') qualificou como sendo o "do povo que entra na História da França".
Mas a noção de "povo" pode confundir-se com a de multidão – onde uma parcela arrisca ser tomada pelo todo – e onde um movimento epidérmico da sociedade pode também ser confundido com uma revolução.
Uma transformação social que assuma coerentemente a contradição existente entre o capitalismo como sistema económico e o Estado social como projecto requer a afirmação de uma identidade revolucionária também a nível institucional, dos movimentos políticos. Tal ainda não aconteceu em relação a este movimento, mesmo quando vemos Jean-Luc Mélenchon a conclamar o apoio aos 'coletes amarelos', nem quando encontramos Catarina Martins (líder do BE), Pablo Iglesias (do 'Podemos') e Jean-Luc Mélenchon em Lisboa, empenhados na gestação de mais um movimento político internacional, desta feita, em busca de "uma revolução cidadã na Europa".
Mas, vendo a colagem dos partidos institucionais a movimentos de protesto aparentemente 'apolíticos', como o dos 'coletes amarelos' franceses, assumimos a priori: o pedreiro luso-descendente não tomará parte de qualquer revolução ao volante do seu BMW.
Que fazer?