O cruzado tropical e as origens do liberalismo teocrático
Pela primeira vez desde o Império a mais poderosa e organizada carreira burocrática do Estado brasileiro, a diplomacia, será chancelada por uma doutrina teocrática das Relações Exteriores.
Por André Calixtre, no Le Monde Diplomatique*
Publicado 22/11/2018 20:04
A Razão de Estado enlouqueceu no Brasil? O choque não deveria surpreender mesmo aos que se omitiram nessas eleições de 2018, pois Jair Bolsonaro está fazendo exatamente o que se espera de qualquer governante eleito numa democracia: construir um governo à sua imagem e semelhança. E é essa imagem grotesca de um presidente pós-midiático que ganhou as eleições a partir da exploração do que há de pior nos brasileiros e que vai moldando as decisões ministeriais do novo governo. No entanto, o Brasil sempre foi mais zeloso por sua imagem hacia afuera do que hacia adentro, e a indicação do autodenominado “futuro chanceler” Ernesto Araújo pareceu cruzar alguns limites que ainda restam diante da desorganização institucional delineada para 2019.
Os fortes sinais estavam dados. Durante a campanha, o clã de Bolsonaro manteve estreita relação com o ideólogo da direita neofascista norte-americana Steve Bannon e recebeu amplo apoio do grande guru do pensamento neoconservador brasileiro, o ex-filósofo, ex-astrólogo, ex-muçulmano (!) e cowboy da Virginia, Olavo de Carvalho. O nome do recém-ministro de primeira classe Araújo circulou fortemente nesses meios, em especial por causa do artigo publicado em 2017 no 6º número dos Cadernos de Política Exterior do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), órgão da Fundação Alexandre de Gusmão, ligado ao Itamaraty. Nesse artigo, denominado “Trump e o Ocidente”, Araújo revela com imensa clareza a estrutura de seu pensamento sobre política internacional e como a eleição de Donald Trump representaria um marco na defesa do Ocidente como um modo de vida.
Em um trecho alto do artigo, Araújo pretende traçar uma teleologia do Ocidente, cujo nascimento teria ocorrido com Ésquilo, na historiografia da batalha dos gregos contra os persas em Salamina. Nela, a essência do homem ocidental, seus valores e tradições, ganham representação divina, portanto passível de qualquer pecado, mesmo aqueles imperdoáveis, pela tradição humanística do Ocidente, especialmente o pecado do genocídio e do ódio contra o diferente. No limite, a defesa de uma raça helênica (a raça abraâmica dos politeístas?) escolhida por Deus (deuses) determinaria o conceito ocidental de nação, que a separa de todas as outras. Esse destino manifesto ocidental de Ésquilo é conhecido dos historiadores clássicos, e foi duramente combatida por outro historiador não mais da Grécia antiga, mas da Roma republicana. Sallustio, no monumental Guerra Catilinária, descreve outro caminho para o nacionalismo ocidental, numa Roma nascida da diversidade de culturas e línguas e do encontro entre a razão e a barbárie: a força interna da nação vem da abertura ao diferente. Na insubstituível tradução de Sallustio, feita pelo oitocentista J. V. Barreto Feio, sobre a fundação de Roma: “Juntos dentro dos mesmos muros, diferentes em raça, dessemelhantes em língua, vivendo cada um a seu uso, incrível parece, que tão facilmente convivessem. Mas logo que a cidade, aumentada em população, em costumes, em território, pareceu assaz rica e poderosa, como é usual entre os homens, da opulência nasceu a inveja.” (CATILINA c.7).
No entanto, o crescimento do poder da Roma primordial, dessemelhante e mestiça, incita a inveja dos reis puristas, dos tiranos. As “nações”, no mundo antigo, são muitas e variadas, e o conceito de “Ocidente” pode servir tanto a um discurso segregacionista de “povo originário”, quanto para a defesa da força popular ancorada na diversidade, mais capaz de enfrentar os desafios de sobreviver entre nações do que os povos unitários. Aí talvez esteja a raiz do Ocidente, que Araújo desconhece, mas dele faz parte: o conflito do particular da vida local, homogênea e controlada pela hereditariedade – conservadora e introspectiva, cuja força viria da pureza interna dos grupos –, com o global ambivalente, expansionista e cosmopolita, porém forte por sua diversidade interna. Helenos e Romanos são ambos espectros de um mesmo Ocidente em processo histórico. O risco do argumento de Araújo está em assemelhar o que ele chama de “globalismo” como um antagonismo a um Ocidente teocraticamente definido, esquecendo que a inédita contribuição do Ocidente para a História nunca esteve no teísmo, e sim no seu oposto, na separação entre Estado e religião, no secularismo.
Pela primeira vez desde o Império que a mais poderosa e organizada carreira burocrática do Estado brasileiro, a diplomacia, será chancelada por uma doutrina teocrática das Relações Exteriores. Alguns leitores vão procurar as raízes teóricas desse movimento no clássico dos anos 1990 O choque de civilizações e a mudança da ordem mundial, de Samuel Huntington, a chave para interpretar o movimento conservador da política externa norte-americana e agora no Brasil. Mas o autor que liga profundamente Bannon, Carvalho e Araújo é um russo menos conhecido: trata-se do ideólogo da “Quarta Teoria Política”, o cientista político Aleksandr Dugin. Os fundamentos dessa teoria, deixando de lado a origem filosófica do debate, é o nacionalismo teocrático, em que povos eleitos disputam o poder global com o uso de seus instrumentos soberanos, principalmente o Estado nacional, opondo-se ao “globalismo pós-modernista” das sociedades seculares. Ironicamente, Dugin e Carvalho odeiam-se, pois o primeiro utiliza a teoria para justificar o que chama por “nacionalismo-bolchevique” russo, ou “eurasismo” contra o Ocidente globalista, enquanto o último, e Araújo, defendem as mesmas bases teóricas para a interpretação da superioridade do Ocidente (liderado, evidentemente, pelos Estados Unidos de Donald Trump) sobre os outros modos de vida. Dugin inclusive declarou oposição ao governo Bolsonaro, acusando-o de autoritário e serviçal do projeto norte-americano de poder.
A distinção entre Carvalho e Dugin está nos objetivos conflitantes, e não nas premissas. O liberalismo teocrático, anunciado pelo presidente eleito Bolsonaro é, em grande medida, a síntese da proposta desse Ocidente tradicionalista que está arrastando a direita neoconservadora para o fascismo: defender intensamente os pilares da economia de mercado, a liberdade de escolha e o indivíduo, mas entendendo que estes valores não pertencem à natureza do homem, como no jusnaturalismo liberal clássico, e sim devem ser buscados na cultura judaico-cristã. E somente florescem em sociedades que preservem estes valores. Esse pensamento particularista está em Huntington, mas este seria considerado um globalista à luz do instrumental da Quarta Teoria. Pois, tanto para Dugin quanto para Carvalho, a questão central não é o choque externo (expansionista) de civilizações, e sim a disputa interna (e introspectiva) pelo controle do Estado entre os nacionalistas escolhidos por Deus e os globalistas adoradores do moderno.
É importante conjecturarmos sobre as consequências que a introdução radical dessa perspectiva terá para a política externa brasileira. Há diversas barreiras institucionais, entre a mais forte delas, gravada no Artigo 4º dos Princípios Fundamentais da Constituição de 1988. Trata-se do famoso artigo sobre os princípios que regem as relações internacionais brasileiras, constituindo-se no amálgama de quase 130 anos de triunfo do Ocidente secularista sobre o teocrático. Seu parágrafo único, que estabelece a América Latina como prioridade da política externa do país, já foi aviltado pelo “futuro” ministro da Economia Paulo Guedes, o que se espera de Araújo é o questionamento de cada um dos outros pontos, reinterpretando-os à luz da teocracia liberal defendida pelo “futuro” presidente Bolsonaro. Ademais, a promessa de “libertar” o Itamaraty de ideologias vai se mostrando como mero pretexto para desmontar uma política externa que logrou aproximar o Brasil de seus vizinhos latino-americanos, da África, do Oriente Médio, da potência emergente da Ásia, ao mesmo tempo em que mantinha forte diálogo e cooperação com os Estados Unidos e Europa, e as instituições da ordem internacional estabelecida por essas lideranças.
Araújo não representa, portanto, “libertação do ideológico”, mas, ao contrário, um mergulho em posições ultraidealistas, sem orientação pragmática, que possuem custos claros e elevados, e benefícios desconhecidos e incertos. A agenda de produção de instabilidades no espaço internacional e multilateral, por parte de Trump, poderá redesenhar a hegemonia dos Estados Unidos, mas o apoio do Brasil a essa estratégia diminuirá ainda mais o país ante o mundo. Se resta alguma razão de Estado nesse processo, alguma objetividade que explique a decisão de Bolsonaro por uma virada tão radical na política externa, é que essa novidade antiglobalista não passa de uma cortina de fumaça para a verdadeira missão do Itamaraty: construir o discurso internacional do antipetismo, a disputa pela narrativa internacional sobre o golpe de 2016 e sobre o encarceramento do presidente Lula. Nisso, a nomeação de Araújo serve a uma estratégia de sobrevivência internacional do Estado brasileiro diante da derrota da narrativa golpista para a imagem hacia afuera com outros Estados.