Publicado 13/11/2018 20:19
O cronista Rubem Braga, o “catador de miudezas do cotidiano”, em Lembranças, escreveu que “se o pobre tem aqui uma vida muito dura, e cada dia mais dura, ele sempre encontra um momento de carinho e de prazer na alma desta cidade”. Já o pernambucano Manuel Bandeira, na sua evocação à cidade de Recife, retoma as lembranças de uma cidade “sem mais nada”, mas que era da sua infância, quase um pertencimento. Desde os fogos de Santo Antônio, passando pelas águas do Capibaribe, vendo a primeira mulher nua e chegando ao vendedor dos roletes de cana, Bandeira faz um pequeno retrato não de uma cidade, mas de um garoto inserido nas lembranças desta cidade.
O poeta Mailson Furtado, cearense de Varjota, no seu longo e belo poema às cidades, foi além: esmiuçou com olhar agudo as angústias cotidianas de uma cidade que se mistura e se transforma a cada alarme do tempo. Suas lembranças parecem convergir com a de todos que sob o sol do sertão desembocam na pertinência diária. O presente desta narrativa poética alarma o leitor e a própria cidade: “cidade / em meio a tua carne / te rasgo / e penetro teu âmago / por entre veias / e ruelas”.
A cidade de Mailson pode ser qualquer uma sem nome, miúda, escondida e sofrida, cujas horas se determinam pelos postes de luz que anunciam a noite ou pelo galo que canta às duas, às três e às três e pouquinho anunciando o dia, é certo de que goteja água em direção a um rio que tem poeira. A vinda de outro sol, de outro dia, cansa a cidade, suas ruas, a própria existência, pois os dias vivem e se repetem – “a vida segue / vem vai / passa / para segue / a vida os dias o rio a rua”.
As pequenas memórias do autor estão tecidas em seu poema com traços de bordadeira, tamanha a oportunidade que nos permite de visitar internamente as pequenas brincadeiras (“esconde”, “parede de contar”, “carro-de-rolimã”), as cadeiras na calçada, o caneco de alumínio, o vendedor de leite e por aí vai. Sentimo-nos tão próximos do poeta quanto de sua cidade, cortada por um rio “que lacrimeja / suas últimas gotas”. No pretérito, o Acaraú – o rio, que também é rua – banha o mar, o destila, o engole e rasga o sertão, assim como a estrada de ferro, comum em “lugares sem nome”. Em meio à ânsia de terras, ruas e rio feridos, há sangue, a força da água e o peso do aço a marcar a cidade, que agora, tem a saudade dos que partem em viagem.
O Francês Gaston Bachelard, no livro A poética do devaneio, escreveu que “é pela intencionalidade da imaginação poética que a alma do poeta encontra a abertura consciencial de toda verdadeira poesia”. A imagem de uma cidade que Mailson nos oferece é natural, onde ruas, que nascem, vivem, batizam-se, crescem e inventam-se, não podem ser mais democráticas, tampouco anárquicas, ou mesmo nada podem ser (são mudas / são ouvintes / são oniscientes). E a cidade que cansa em face do cotidiano, também anda, como as pessoas e a rotina, roteirizando o tempo.
"à cidade" é uma obra com relevo acentuado na memória de quem (sobre)vive nas cidades interioranas do Nordeste, em especial. Dividida nos tempos verbais presente, pretérito, pretérito mais-que-perfeito e futuro do pretérito, a cidade segue em transformação, pulsando, enquanto o poeta passeia pelo oceano procurando saber quem é, ao sair de si e de dentro da cidade. Um poema de sessenta páginas que mostra, a partir de alguém que nasceu sem nome no meio de um lugar igualmente sem nome, que “o sertão é um país”.