Para além da “boa vizinhança”, Stan Lee, o amigo da vizinhança
O epitáfio de Ésquilo, um dos pais da tragédia grega, ignora o dramaturgo e celebra sua participação militar na Batalha de Maratona. Stan Lee, falecido aos 95 anos nesse 2018, se orgulhava por ao se alistar voluntariamente na 2º Guerra Mundial ter sido classificado pelo exército americano como “dramaturgo”.
Publicado 13/11/2018 19:01
Jovem, Stan Lee não teve uma participação tão substancial na maior de todas as guerras como a do diretor ítalo-americano Frank Capra, também escalado na função de “dramaturgo de guerra” e que pelo sucesso de seus documentários chegou a ser condecorado pelas mãos do general Marshall. No entanto, poucas figuras no século XX tiveram tanta influência na cultura de massa do pós-guerra, como Stan Lee, dramaturgo.
Para além de vencer guerras no campo de batalha ou superar o trauma de guerras perdidas, segundo o escritor David Mamet, uma das maiores autoridades em dramaturgia ainda vivas, o drama se presta acima de tudo ao “entretenimento”. Drama nada mais é do que repetir o ritual que a humanidade pratica há milênios contando estórias em volta da fogueira após um dia cansativo de trabalho. E Stan Lee, para diversas gerações, foi um mestre que através de suas criações, a cada virada de página, fazia essa fogueira ancestral brilhar com mais intensidade diante dos nossos olhos, amenizando o fardo de nossa existência em um mundo selvagem e violento.
Stan Lee que antes de servir ao exército americano começou sua carreira combatendo Hitler através de textos em prosa que traziam aventuras do Capitão América, foi o grande responsável por reduzir no pós-guerra a missão “patriótica” dos super-heróis dos quadrinhos que já eram febre nas décadas de 1940 e 1950, acrescentando uma dimensão social e psicológica a esse tipo de personagem. Houve percalços nessa trajetória. Stan Lee e seus parceiros sofreram censura governamental por diversas vezes, teve seu negócio praticamente fechado sendo obrigado a demitir parceiros, viu o público de quadrinho minguar ao adequar suas histórias aos padrões morais exigidos pelas autoridades americanas. Quando tudo parecia perdido, usou seu repertório de dramas pessoais e sua experiência como membro de família pobre no bairro do Bronx durante a Grande Depressão de 1929 para criar na década de 1960 os personagens que fariam a Marvel se tornar um fenômeno cultural.
O Quarteto-Fantástico que vivia problemas conhecidos como ir à falência após investir em ações no mercado financeiro. O Homem-Aranha, alter ego de Peter Parker que poderia escalar paredes, mas tinha problemas para pagar o aluguel e não sabia como se declarar para a garota pretendida. São alguns dos personagens criados por Stan Lee e seus parceiros que ao viverem dramas das pessoas comuns em cidades comuns despertaram a empatia do público. Se os gregos através do mito elevavam às paixões humanas ao nível do divino, Stan Lee reduzia os mitos à miséria humana. Se a propaganda nazista duas décadas antes desumanizava judeus como Stan Lee os comparando a “ratos”, ele transformava agora aranhas e formigas na fonte de poder de seus personagens “supra-humanos”.
A abordagem humanista de suas estórias permitiu que ele, criador de uma empresa de comunicação no centro do imperialismo que pertence hoje a um grande conglomerado de mídia que movimenta bilhões de dólares, despertasse a simpatia de pessoas no mundo todo que encontram em suas criações valores universais que se sobrepõem a indústria cultural.
Análises dogmáticas à esquerda como o fizeram Ariel Borfman e Manuel Jofre no início dos anos 1970 acerca dos quadrinhos americanos teriam dificuldade em enquadrar um “herói do proletariado” como o Homem-Aranha, o “Pantera Negra” – no tempo em que o uso do termo era criminalizado no âmbito da luta pelos direitos civis dos negros – os X-Man e sua associação direta à luta das minorias segregadas e tantos outros aspectos que associaram a obra de Stan Lee a valores progressistas de qualquer sociedade.
Mas, como todo humanista e artista inconformado, Stan Lee não buscava o discurso fácil e diretamente palatável ao gosto ideológico do público, seja ele qual fosse. Somou o Frankenstein de Mary Shelley ao Mr. Hyde de Stevenson ao dar origem ao “Incrível Hulk” que denunciava os riscos da tentativa de controlar as forças da natureza com fins políticos na era atômica. No momento em que o complexo industrial militar americano sofre seus maiores questionamentos, Stan Lee cria o “Homem de Ferro” e o humaniza acrescentando o drama do alcoolismo ao personagem. Stan Lee era um criador de mundos atento aos movimentos da sociedade e preocupado em fazer seus leitores encontrarem por de trás de máscaras, monstros, insetos, armaduras de ferro e qualquer outro elemento de estranhamento, o humano.
Stan Lee viveu o suficiente para ver sua obra migrar com sucesso dos quadrinhos para a linguagem cinematográfica após muitos fracassos nessa tentativa. Suas aparições atuando brevemente nos filmes excitam os fãs e deixam a marca do criador na sua obra como jamais foi feito em nenhum cinema de autor.
Stan Lee marca a história da literatura e do cinema a contragosto de todos os que consideram o popular multiplicado ao extremo como um ‘genocídio cultural’. Mas o tamanho da comoção espontânea em torno da morte de um homem que dedicou sua vida a uma forma de drama investida das fantasias mais infantis possíveis, mostra que a capacidade de sonhar e imaginar mundos onde qualquer forma de injustiça possa ser superada pela força daqueles que são tidos como os mais fracos, ainda é algo que une a humanidade.
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Junho de 2008, Aeroporto de Fiumicino, após 12 horas de voo cansativo saído de São Paulo, eu e minha esposa Marcela, roteirista de quadrinhos e escritora, chegamos em Roma. Resfriado e puxando a bagagem na saída semi-deserta do aeroporto rumo ao táxi, avisto dois homens idosos conversando. Aviso minha esposa fanática por quadrinhos: “Olha o Stan Lee”. No tempo em que smartphones ainda não eram populares, ela pede que abra a mala e busque no fundo a pequena máquina fotográfica de 4.2 megapixels. Eu olho para o meu ídolo de infância e vejo que ele notou que nós o notamos. Percebo seu desconforto. Ninguém vai a Roma pra ser importunado por fãs. Me recuso a pegar a máquina fotográfica. Passamos diretamente por ele. Sem pedir autógrafo ou foto. Ela nunca me perdoou por isso. Mas eu me orgulho por retribuir todos os momentos agradáveis de leitura dos meus gibis na infância deixando Stan Lee em paz.