Dermeval Saviani: Brasil 2018, uma democracia suicida?
A destituição da presidenta Dilma Rousseff foi um golpe? A caracterização como golpe decorre do não cumprimento da exigência constitucional de existência de crime de responsabilidade. Obviamente, os autores do impeachment sempre negaram a existência do golpe argumentando que seguiram todo o ritual previsto, inclusive com a chancela do Supremo Tribunal Federal.
Publicado 25/10/2018 10:41
Ocorre que o STF lavou as mãos sugerindo que a decisão cabe ao Senado, órgão do Poder Legislativo que é autônomo e independente. Mas a pergunta inevitável é: se a decisão compete ao Poder Legislativo não cabendo ao Judiciário interferir, por que, então, a Constituição determinou que a Sessão do Senado fosse presidida pelo Presidente do STF? Em se tratando de competência exclusiva do Poder Legislativo caberia, simplesmente, ao Presidente do Senado presidir a sessão assegurando, na forma do Regimento da Casa, a decisão dos senadores. Sendo o Presidente do STF a presidir a sessão, isso indica, obviamente, que, ao enfeixar nas mãos do dirigente máximo do Poder Judiciário a condução da sessão, o que se pretendia era assegurar que a decisão se desse rigorosamente dentro do disposto na Constituição. E o papel do Presidente do órgão guardião da Constituição investido da função de presidir a sessão não tinha outro sentido senão garantir que a decisão não se desvirtuasse em razão dos interesses político-partidários que se fazem presentes no Parlamento. Assim, com a conivência do Judiciário, o golpe se consumou.
Mas se ainda houvesse alguma dúvida quanto à existência do golpe, ela foi inteiramente dissipada com a entrevista ao Jornal “O Estado de São Paulo” de Tasso Jereissati que, além de expresidente do PSDB é presidente do Instituto Teotônio Vilela, o órgão de formação política do partido. Ele confessou que o PSDB “cometeu um conjunto de erros memoráveis”. O primeiro foi, já no dia seguinte à eleição, contestar o resultado eleitoral, atentando contra a democracia. O segundo erro foi votar contra os princípios do próprio partido só para ser contra o PT. Reconheceu, assim, o boicote ferrenho que os parlamentares fizeram ao governo Dilma com as pautas bomba inviabilizando o governo para provocar sua queda. E o terceiro, foi entrar no governo Temer. Fica, pois, caracterizado o golpe na avaliação de um dos principais dirigentes do principal partido de sustentação do governo ilegítimo instalado com o afastamento da presidenta reeleita.
E não foi apenas um golpe episódico, ou seja, um ato anticonstitucional que provocou a troca
do governante que, a partir daí, passou a governar conforme as regras democráticas. Não. Com o
afastamento de Dilma quebrou-se a institucionalidade democrática abrindo margem a uma verdadeira escalada do arbítrio, num estado de golpe contínuo constituído por atos que se sucedem eivados de ilegalidade. É uma situação similar à vivida pela Alemanha nas décadas de 1920 e 1930 com a ascensão de Hitler, quando a Justiça se revelou draconiana com as ações da esquerda e complacente com a truculência da direita.
Dando sequência a essa escalada do arbítrio o juiz de primeira instância, Sérgio Moro, liberou,
há apenas seis dias das eleições em primeiro turno, denúncias da delação premiada de Antonio Palocci com o claro intuito de interferir nas eleições. Com efeito, a referida delação havia sido rejeitada pelo Ministério Público e o próprio juiz Moro reconheceu que não poderá levar tal dep
2 consideração no julgamento da ação penal. Mas liberou parte da delação, exatamente aquela em que aparece denúncia, sem qualquer prova, contra Lula e Dilma, evidentemente para interferir nas eleições prejudicando a candidatura do PT. E, de fato, analistas atribuem em parte a essa liberação, amplamente difundida pela mídia e largamente utilizada na propaganda dos adversários, a onda pró Bolsonaro revelada pelas urnas na apuração do primeiro turno. E em plena campanha do segundo turno surge a notícia de que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região marcou para a quarta-feira 24 de outubro, quatro dias antes do segundo turno das eleições presidenciais, o julgamento do recurso do ex-ministro Antonio Palocci, condenado em 2017 por Sergio Moro a 12 anos e dois meses de prisão. É mais uma interferência indevida e ilegal do judiciário nas eleições visando a prejudicar a candidatura do PT. Ao favorecer a eleição de Bolsonaro a Justiça estará apostando na barbárie contra a civilização?
Em consequência do golpe nós voltamos a uma situação politicamente equivalente à ditadura
que se abateu sobre nosso país entre 1964 e 1985. Naquele momento o golpe militar instalou um Estado de exceção governado pelos militares por 21 anos configurando uma situação que vitimou também outros países da América Latina. Esses foram golpes de força que recorreram às Forças Armadas com o apoio da CIA, a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos.
Agora a estratégia mudou na direção da desestabilização seguida de destituição, por via
parlamentar, de governos populares. Essa iniciativa vem sendo posta em prática em diferentes países, especialmente onde os Estados Unidos têm interesses econômicos ou politicamente estratégicos. Daí as mobilizações ocorridas em países como a Tunísia, Egito, Líbia (a chamada “primavera árabe”), assim como na Síria, Rússia e Ucrânia. Na América do Sul, após o Paraguai, os alvos imediatos são o Brasil e a Venezuela, não por acaso dotados de grandes reservas de petróleo, esboçando-se movimento semelhante na Bolívia e no Equador, sendo que na Argentina a vitória da direita nas eleições tornou desnecessário o recurso ao golpe jurídico-parlamentar.
Em entrevista recente à TV 247 Pepe Escobar2 , um dos principais estudiosos de geopolítica e
correspondente internacional que vive entre Paris, Londres, Bruxelas, Rússia, Irã e China, traçou
interessante análise do tabuleiro geopolítico atual.
Segundo sua análise a atual tragédia brasileira pode ser explicada pelo declínio do império americano: "o Brasil foi alvo de uma guerra não convencional, a chamada guerra híbrida3
, que prescinde de tanques e canhões, mas conta com o apoio de elementos internos, estrategicamente colocados no Poder Judiciário, para realizar o trabalho que antes era feito pelos militares", cujo resultado não foi somente a derrubada do governo, mas a desestruturação completa do país.
Escobar considera que o Brasil alcançou protagonismo internacional tendo atingido o auge com o
chanceler Celso Amorim no governo do ex-presidente Lula. Eis a razão da expressão de Obama “você é o cara” dirigindo-se a Lula. Esse protagonismo que, pela articulação dos chamados BRICS, a aliança dos cinco grandes países emergentes Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, romperia o domínio unipolar americano, pôs em movimento a estratégia da “guerra híbrida”, conceito criado por think tanks (grupos de reflexão geopolítica) americanos. Segundo Escobar, na guerra híbrida “o fator militar não é o mais importante, mas a junção de fatores judiciários, midiáticos, parlamentares, políticos e 3 empresariais” seguidos de longa investigação criminal, tarefa que, no caso do Brasil, vem sendo cumprida pela Lava Jato.
Considerando a possibilidade de que, com governos populares, o Brasil viesse a se elevar à condição de potência internacional, os Estados Unidos decidiram mover a “guerra híbrida” para desestabilizar o governo brasileiro. Assim, o golpe começou a ser construído, segundo Pepe Escobar, a partir da espionagem realizada pela NSA, a Agência de Segurança Americana, contra Dilma e a Petrobrás.
Aliás, a ação contra Dilma foi revelada pelos documentos secretos americanos divulgados pela
WikiLeaks. Consumado o golpe, o Brasil voltou à condição de subserviência aos Estados Unidos
entregando nossas riquezas à potência imperial sem qualquer contrapartida. Na vigência do atual
governo nosso país vem se desmoralizando perante o mundo e perdendo totalmente o protagonismo internacional que vinha exercendo ao longo dos governos Lula e Dilma.
Como se vê, os processos contra Lula e a condenação sem provas se inserem “numa estratégia
complexa de desestruturar o Brasil por dentro”. Portanto, trata-se, sim, de perseguição política e não, como se quer fazer crer, de uma iniciativa de combate à corrupção.
Estamos, pois, vivendo um enorme retrocesso político que arrisca ser legitimado pelas urnas
com a eleição de Bolsonaro num processo marcado por uma dupla fraude. A primeira foi a prisão de Lula numa condenação sem provas, impedindo sua candidatura quando as pesquisas eleitorais o colocavam em primeiro lugar na preferência dos eleitores. A segunda fraude foi a estratégia da
campanha do ex-capitão planejada com a assessoria do marqueteiro de Trump, Steve Bannon, que espalhou largamente notícias mentirosas pelos diferentes dispositivos das redes sociais, entre os quais se destacou o WhatsApp. Conforme reportagem do Jornal Folha de S. Paulo de 18 de outubro de 2018, a campanha de Bolsonaro contratou empresas de disparos de mensagens em massa que, pelo aplicativo de mensagens instantâneas WhatsApp, espalharam notícias falsas contra a candidatura do PT em flagrante violação do artigo 222 do Código Eleitoral Brasileiro que define como “anulável a votação, quando viciada de falsidade, fraude, coação…”.
Hoje, no Brasil, estamos diante de uma verdadeira “democracia suicida”, ou seja, as próprias
instituições ditas democráticas golpeiam o Estado Democrático de Direito pela ação articulada da
grande mídia, do parlamento e do judiciário. E esse suicídio estará consumado se Bolsonaro for eleito. Aí, legitimado o golpe pelas urnas, a democracia terá se matado a si mesma, pois o atual Estado de exceção continuará vigorando pela ação de agentes que irão se vangloriar de terem sido eleitos democraticamente. Cabe, porém, contrapor-lhes que se trata de uma democracia mutilada por regras do jogo espúrias excluindo da disputa por meio de condenação sem provas o candidato que tinha a preferência majoritária da população. Assim, já tivemos uma democracia ultra restrita na República Velha com as eleições a bico de pena substituindo o voto censitário do Império; a democracia restrita da República populista que, quando ameaçava ampliar-se, foi vitimada por um golpe militar que instituiu uma democracia excludente; e agora busca-se impor ao povo brasileiro uma democracia suicida.
É a esse estado de coisas que precisamos resistir. E o primeiro ato de resistência será impedir
a eleição do ex-capitão votando em Haddad que representa a democracia contra o autoritarismo.
Impediremos, assim, o suicídio de nossa jovem e ainda frágil democracia.