Advertência de Mãe Stella aos negros vale para todos os brasileiros
A grandiosa e patriótica campanha contra a ameaça fascista que ronda as eleições de 2018 ganhou um novo ingrediente, o dramático, comovente e poético chamado e desabafo de uma das maiores autoridades religiosas do Brasil, a mais conhecida Yalorixá contemporânea da Bahia, Mãe Stella de Oxóssi.
Por Haroldo Lima*
Publicado 18/10/2018 09:45
A linhagem das grandes líderes religiosas do Candomblé da Bahia, as Yalorixás, é extensa. Algumas tiveram projeção nacional, como Mãe Senhora, Menininha, Cleusa, Olga e Stella. Há as que descendem de famílias reais africanas, como Mãe Senhora e Mãe Olga. E uma foi praticamente imortalizada pela sua presença e pela deslumbrante música de Dorival Caymmi que cantava “a estrela mais linda”, “o sol mais brilhante”, “a beleza do mundo”, “a mão da doçura” e “o consolo da gente” da Mãe Menininha de Gantois.
Desse selecionado grupo, a Mãe Stella de Oxóssi é a única viva. Aluna da afamada professora Anfrísia Santiago, tem curso de Enfermagem, já escreveu diversos livros, é Doutora Honoris-Causa pela Universidade Federal da Bahia e, em 2013, foi eleita por unanimidade para a Academia de Letras da Bahia. É colunista do jornal A Tarde, o mais antigo e tradicional da Bahia. E já está com 93 anos.
Na religião do Candomblé, Oxóssi é um Orixá (divindade) filho de Oxalá, o maior dos Orixás, com Yemanjá, a Rainha das Águas. É o “guardião popular”, guardião dos caçadores, amante das artes e das coisas belas, tem força e garra. No sincretismo com a Igreja Católica ele é S. Sebastião e, especificamente na Bahia, é S. Jorge, um guerreiro.
Pois com toda sua autoridade de venerada sacerdotisa baiana do Candomblé, Mãe Stella acaba de publicar um artigo, sob forma poética, como uma espécie de advertência a todos os negros de seu Terreiro, o Ilê Axé Opó Afonjá, sobre a ameaça de se eleger “o candidato da violência”, “um racista”, Bolsonaro, presidente da República. Sua enérgica advertência aos negros do seu Terreiro serve para todos os negros da Bahia, do Brasil e para todos os brasileiros amantes da paz.
Transcrevo abaixo o chamamento à responsabilidade feito por Mãe Stella de Oxóssi. O Pèrègrún, a que ela se refere, é a folha de uma planta de origem africana, das mais antigas que existem. Diz-se que acompanhou a humanidade.
Se o candidato da violência ganhar,
para mim, nenhum xirê (invocação aos orixás) será mais o mesmo.
Não vai ser possível olhar meu irmão na roda e reconhecer nele, aquele que ajudou a eleger um racista.
Para mim, nenhum ritual será mais o mesmo.
Nem as águas de Oxalá, (considerado o maior dos Orixás, no sincretismo é o Senhor do Bonfim) quando a casa fica em silêncio, os passos quietos, Oxalá no poço, torturado.
Não será possível, sob o alá (pano branco que encobre algumas cerimônias das religiões afro) de um sofredor, olhar minha irmã no rosto e reconhecer nela
aquela que ajudou um torturador chegar ao poder.
Nenhuma fogueira de Xangô (Orixá da Justiça e da Sabedoria, no sincretismo é São Jerônimo) queimará do mesmo modo.
Nas chamas do orixá justiceiro,
será difícil abraçar qualquer irmão que tenha ajudado a injustiça a se espalhar por nosso país.
Nenhum Olubajé (cerimônia onde se repartem comidas) será mais o mesmo.
Quando o banquete for distribuído na folha de mamona, como recebê-lo de quem ajudou
a eleger um homem que ampliará a fome de comida e significados?
Nenhuma celebração das yabás (celebração dos Orixás femininos, como Yemanjá e Oxum) será mais a mesma.
Na comemoração das mulheres ancestrais negras, como ver a casa cheia de mulheres onde muitas ajudaram a eleger um misógino?
Nenhuma festa de Erê (entidade espiritual criança) será a mesma nos terreiros. Como festejar a infância se ali, arrumando as jujubas e os suspiros, verei também os que ajudaram a eleger um homem que faz a mão de uma criança virar arma?
Nenhuma função de caboclos será a mesma nos terreiros, para mim.
Como cantar os pontos mais lindos para Jurema, Tupinambá, Sete Flechas, Pena Verde, Cobra Coral, junto com irmãos e irmãs que ajudaram a eleger um homem que acabará com o pouco que resta das terras indígenas?
Como deitar na esteira ao lado do meu irmão negro que, votando contra si mesmo, ajudou a acabar com a política de cotas sociais no país?
Justo ali, em nossa casa, onde muitas famílias negras se alegravam, dia desses, por terem conseguido que uma filha fosse a primeira da família a concluir o ensino superior graças as cotas?
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Como arrumar o acaçá em paz sabendo que a paz que já nos faz tanta falta desaparecerá para nós?
Como trocar bênçãos com meu irmão ou irmã gay e não me atordoar com seu voto em um homofóbico declarado?
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Como então dançar junto a quem ajudou a eleger aquele que disse que os negros hoje não servem nem para procriar?
As palavras foram espatifadas em cacos finos de vidro. Elas cortam tanto a língua de quem fala como
o inatingível ouvido do outro, da outra.
O sentido de tudo está ferido e sangrando.
Ao menos dentro de mim, mesmo que o nosso candidato ganhe.
Uma vez, meu Pai de Santo, Daniel de Yemanjá, (Orixá que é a Rainha do Mar) perguntou: "você sabe porque um iaô (no candomblé, filha de santo, em umbanda, pai de santo) carrega a folha do Pèrègún na saída de sua iniciação? Você sabe porque na maioria das casas de santo tem um Pèrègún na porta?" Eu respondi que não e ele me disse: "o Pèrègún é o alicerce, a coluna de todo o iniciado. Ela está também nas casas de santo para mostrar o caminho toda vez que você se perder. Não se perca do Pèrègún e não deixe que ele te perca."
Que nunca nos falte então as folhas do Pèrègún e que, ainda que nos percamos, ele sempre nos traga de volta o sentido.
Exu Onan (orixá que guarda as porteiras dos caminhos) também nos abrace, erga e seja caminho todos os dias, porque amanhã: resistiremos!
Fonte: página de Mãe Stella no Faceboock