Publicado 23/08/2018 17:04
É dever dos cientistas zelar pela correção de afirmações públicas sobre seus objetos de investigação. O jornalismo também deve zelar pela checagem de informações e pelo cuidado com a “verdade factual”, como gosta de afirmar o grande jornalista Mino Carta.
É interessante quando ambas as culturas se confrontam, como acontece quando jornalistas entrevistam, interpelam e debatem opiniões com cientistas. Isso ocorreu na segunda-feira, quando o economista Guilherme Mello, representante do programa econômico do PT, foi “sabatinado” pelos jornalistas na Globo News. Participaram Miriam Leitão (mediadora), João Borges, Valdo Cruz, Juliana Dualibi e Carlos Alberto Sardenberg.
É claro que, como economista partidário, Mello não estava em um evento científico, mas defendia o programa da candidatura preferida pelo povo brasileiro, ou seja, a do ex-presidente Lula.
Todo cientista tem, no entanto, o dever do rigor ao elaborar ideias e expor informações, podendo e devendo ser cobrado por jornalistas e outros cientistas ao apresentar-se no espaço público.
Dito isto, o que era para ser uma sabatina rapidamente se transformou em um debate. Os jornalistas não procuraram apenas conhecer e abrir espaço para que o público conhecesse as opiniões de Mello. Procuraram defender seu próprio ponto de vista sobre as questões sobre as quais perguntavam o economista.
Isto é interessante por dois motivos: 1) cria a oportunidade para a checagem de dados e fatos que sustentam as diferentes opiniões; 2) abre uma janela para avaliar o possível viés ideológico de jornalistas e cientistas cuja credibilidade reside em uma autodeclarada preocupação com a verdade dos fatos.
Quem mostrou mais rigor na apresentação dos fatos? Sem dúvida, o cientista. Os jornalistas basearam suas opiniões em narrativas construídas para justificar a continuidade da política econômica baseada na austeridade fiscal (pró-cíclica) e na agenda de reformas neoliberais (fiscal, trabalhista e previdenciária) implementadas pelo governo Michel Temer.
Nesta construção discursiva, a austeridade e as reformas não teriam responsabilidade pela crise que vivemos e seriam até mesmo a única alternativa factível para sair dela.
O primeiro ponto necessário para sustentar tal programa econômico contra o programa defendido por Mello é inocentar de responsabilidade pela recessão o projeto de austeridade fiscal e de reajuste brusco de preços relativos (taxa de câmbio, salários reais e tarifas públicas) representado inicialmente por Joaquim Levy.
Para isto, é fundamental vender para o público a narrativa que a recessão começou em 2014, ou seja, antes da nomeação do ministro da Fazenda.
Miriam Leitão pergunta inicialmente a Mello quem é o pai da crise, defendendo imediatamente a sua própria opinião com um gráfico mal feito e enganoso.
Mal feito, pois é impossível entender quando termina o ano de 2014 e onde começa o ano de 2015.
Enganoso, porque apresenta a média móvel trimestral, o que suaviza as quebras e desrespeita o critério tradicional e consagrado para sinalizar a ocorrência de uma recessão: dois trimestres seguidos de queda do PIB.
O ano de 2014 não teve dois trimestres consecutivos de queda do PIB. Ponto. Como se isso não fosse mais do que suficiente para rejeitar a existência de uma recessão em 2014 (ao contrário de uma forte desaceleração), os dados do PIB anual também refutam a hipótese de recessão em 2014.
Com efeito, de acordo com o critério também tradicional e consagrado de medição do PIB anual que é seguido pelo IBGE, 2014 apresentou crescimento de +0,5% em relação a 2013.
A partir de 2015, ao contrário, a economia brasileira teve oito trimestres consecutivos de queda do PIB. Ao desrespeitarem sem justificativa teórica séria os métodos tradicionais e consagrados de datação de ciclos econômicos, os jornalistas da Rede Globo não estão apenas eximindo o programa iniciado com Joaquim Levy de qualquer responsabilidade pela recessão.
Eles estão isentando a si mesmos. Cada um defendia que, ao restaurar a credibilidade da política econômica no mercado financeiro, a austeridade se mostraria expansionista em breve.
Nenhuma autocrítica se fez a respeito da frustração das expectativas com Joaquim Levy ou com o “dream team” (!?) de Henrique Meirelles entre 2015 e 2018, culpando ao contrário decisões cada vez mais recuadas no passado ou o cenário político.
Para desespero de cientistas que respeitam os dados e conhecem a bibliografia internacional, a hipótese de confiança na política fiscal como explicativa da crise e da recuperação voltou à tona em outros momentos do debate, como veremos no próximo artigo da série.
*É professor visitante na UC Berkeley e professor licenciado da Unicamp