De Istambul a Buenos Aires, as moedas derretem
O piso do enorme palco do comércio internacional está cedendo. E as moedas das economias mais frágeis do sistema antecipam o desabamento geral. A Turquia e a Argentina são os casos mais evidentes deste processo
Por Wilton Cardoso Moreira
Publicado 16/08/2018 18:23
A coisa é mais pesada do que imagina a vã economia. Recep Erdogan, presidente da Turquia, declarou na semana passada que o ataque do mercado sobre a moeda do seu país, a lira, é muito mais violento e perigoso que a tentativa de golpe de Estado contra seu governo em 2016. Ele sente que a economia é mais eficiente para derrubar governos que qualquer outra ação dos homens.
No final do pronunciamento procurou se apoiar no patriotismo dos seus cidadãos para pedir que trocassem dólar e outras moedas fortes por liras turcas, voltassem a investir, a produzir, a consumir, etc. O tiro saiu pela culatra. Aumentou ainda mais a troca de liras por dólar. Acelerou o derretimento.
Erdogan culpa os EUA de estar por traz deste derretimento da lira. Do mesmo modo que esteve naquela fracassada tentativa de golpe. Coincidentemente, a gota d’água do derretimento da lira nos últimos dias foi a decisão de Washington de dobrar as tarifas de importação sobre o aço e alumínio da Turquia.
Donald Trump twittou, detalhe importante, que as altas tarifas continuarão sendo aplicadas enquanto Ankara não libertar o pastor evangélico Andrew Brunson. Esta estranha criatura é agente graduado dos órgãos de inteligência dos EUA e participou ativamente naquela tentativa de golpe de 2016. Pelo que se conhece da índole canibalesca de Erdogan o incompetente espião estadunidense continuará enjaulado por muito mais tempo.
Economia e geopolítica entrelaçadas. Em poucos lugares do mundo isso é tão forte quanto na Turquia. A geografia dos mares e dos estreitos fala alto. Clique aqui e veja como o movimento do que chamamos recentemente de pêndulo de Istambul é um dos elementos estratégicos mais importantes da geopolítica e do poder mundial – desde a idade antiga, passando pelo império otomano etc., até o atual realinhamento da velha ordem imperialista dos últimos setenta anos.
A economia turca é a maior e mais industrializada do Oriente Médio. Também aqui o fator geográfico conta favoravelmente. Na fronteira da Europa e do Oriente, a Turquia é também a porta do comércio entre os dois maiores continentes do mundo.
Um Grand Bazaar. Esse dinamismo comercial decorrente da vantagem geográfica da à economia turca um potencial permanente e natural para altas taxas de crescimento da produção interna.
É por isso que, com um crescimento do PIB de 7,4% no ano de 2007, a economia da Turquia figura entre as que crescem mais aceleradamente no mundo. Supera até as “campeãs” China e Índia.
Faz tempo que a Turquia não para de crescer. No período de 2003-2007, o percentual médio de crescimento anual da economia turca foi de 7,0%, enquanto que no período 2010-2017, o crescimento médio foi de 6.8%. Alcançava-se o auge de um “milagre econômico”!
No primeiro semestre deste ano, ainda mantinha a assombrosa taxa de crescimento 7,4% com o valor adicionado do setor industrial aumentando 8.8% em termos anuais; investimentos em equipamentos e máquinas aumentando 7,0%; 6.9% na construção civil e 4,6% na produção agrícola.
Em termos qualitativos, a economia turca registra também a maior produtividade dentre todas as economias dominadas da periferia do sistema global. Seu PIB per capita (por habitante) anual de 15.000 dólares supera o da Rússia (11.400); Brasil (10.800); Argentina (10.400); México (9.900); África do Sul (7.500); China (7.300) e Índia (1963).
Os problemas estritamente econômicos que levaram à presente crise cambial na Turquia não foram eventuais “desequilíbrios macroeconômicos”. Não existem graves problemas fiscais, monetários e outras variáveis do setor público turco, como procuram demonstrar, neste momento, as cabeças protocolares dos economistas do mercado.
Todos esses economistas, sejam liberais, keynesianos, marxistas universitários, sindicalistas, etc., seguem mais ou menos o protocolo do FMI e grandes bancos para tentar explicar esta crise que, para eles, não é mais do que uma repetição de antigas e modorrentas crises cambiais na periferia do sistema.
E acabam culpando as próprias virtudes da economia turca – elevada expansão dos investimentos, da produtividade, da produção, do emprego, do crédito, do comércio, etc. – como as grandes culpadas pela crise cambial que tritura sua fraquíssima e inconversível moeda nacional.
Toda superprodução será castigada. Sabemos que esse é o destino de qualquer economia capitalista nacional, dominante ou dominada. Uma contradição material inescapável sempre mistificada pela condenação moral dos economistas.
Sempre os repetitivos economistas com aquela monótona ladainha ideológica de não condenar os capitalistas privados industriais e outros parasitas sociais subalternos – que, como sabem todos os bons cidadãos, são os verdadeiros mandantes e beneficiários deste sanguinário enredo histórico – mas deslocar a culpa pela crise para entidades abstratas e políticas, para a irresponsabilidade fiscal e monetária dos governos e outros álibis forjados apenas para isentar o sistema imperialista e aquelas classes dominantes nacionais da sua responsabilidade.
Não poderia ser diferente na atual crise cambial da Turquia. Mais uma vez condena-se apenas o governo turco (o demonizado Erdogan, para ser mais exato) por ter incentivado uma “desenfreada expansão econômica”. É o caso do economista Peter S. Goodman, um exemplo menos sofrível no meio daquela malta acima citada, que escreve sugestiva matéria para o The New York Times (12/Julho/2018) sobre o que se poderia chamar de infortúnios da virtude de uma economia dominada e sem moeda da periferia capitalista. O melhor desta matéria é que Goodman prenuncia o grande derretimento da lira que aconteceu nos dias seguintes:
“o temor de um desastre pode parecer impróprio em uma economia que permanece uma das com maior crescimento no planeta, expandindo 7,4% no ano passado. Mas esse crescimento é alimentado por tomada de empréstimo potencialmente insustentável, tanto pública quanto privada. Muitas empresas tomaram em moeda estrangeira, o que significa que suas dívidas aumentaram com a desvalorização da lira. Grandes empresas turcas agora estão tentando persuadir os bancos e outros credores a prolongar os prazos e outras formas de ajuda, talvez prenunciando uma onda de falências que pode vir a deixar instituições financeiras e contribuintes diante de perdas gigantescas. Até o final de abril, as empresas do setor privado turco deviam mais de US$ 245 bilhões no exterior, ou quase um terço do tamanho total da economia do país”.
O título surpreendentemente dialético da matéria – “Crescimento econômico desenfreado pode levar a economia da Turquia a um colapso” – entretanto não ajuda o autor da matéria a responder à própria contradição que ele observa de maneira ingênua na atual situação econômica turca: o fato de que as modernas crises periódicas de superprodução global de capital são sempre anunciadas por uma forma aparentemente antiga de mera crise de crédito.
Marx observava que Smith só enxergava a crise do capital como uma crise monetária, ou de crédito, por que essa ainda era a forma de crise que predominava em sua época. A predominância da moderna crise de superprodução de capital, característica do novo regime social de produção, só poderá ser testemunhada por Ricardo, Malthus, Say, etc., a partir do início do século 19.
Neste sentido, pode-se observar algumas coisas importantes na atual crise cambial turca. Em primeiro lugar, não é uma crise gerada geneticamente pela política econômica (monetária ou fiscal) do governo, mas pelas decisões de produzir em busca de uma máxima taxa de lucro, tomadas pelos capitalistas e outros rentistas privados no interior da economia e, no exterior, pelos “investidores” e grandes bancos globais da Europa e EUA.
Quase 40% do total de empréstimos na economia turca são denominados em dólar e, muito importante, quase 90% deste total estão concentrados diretamente nos balanços das empresas privadas da economia. Dívida privada, não do governo. E o volume dessa dívida bancária pode realmente causar grandes estragos em alguns bancos da Espanha, França e Itália – mas nem é relativamente tão grande se comparada com o monumental crescimento da produção de capital que ela financiou.
Está claro, portanto, que não é o setor público turco que está endividado e, portanto, inadimplente. É a “iniciativa privada” tão zelosamente blindada pelas ladainhas ideológicas dos seus economistas e sua mídia imperialista global.
De todo modo, o importante a salientar é que, independente dos falsos diagnósticos dos economistas, fica difícil imaginar agora a repetição daquelas providências protocolares de crises cambiais passadas para um eventual resgate da economia turca pelo FMI, Banco Mundial, Tesouro dos EUA, Alemanha, etc.
A crise turca atual é fundamentalmente diferente, por exemplo, da crise grega de cinco anos atrás. Ou, principalmente, da crise do início dos anos 2000, quando tanto a Turquia quanto a Argentina compartilhavam grandes déficits públicos, grandes déficits em conta corrente, fuga de capitais e, finalmente, depreciações cambiais.
Esses grandes desequilíbrios do setor público (macroeconômicos) em economias isoladas não são mais o determinante do risco capitalista nestas grandes economias dominadas da periferia, como Turquia, Argentina, Brasil, China, etc.
O determinante não é mais do antigo capital mercantil (comercial e bancário), mas a força da produção e da superprodução globalizada, que, enquanto processo de valorização em expansão, substitui e condiciona dramaticamente a ação política dos governos nacionais, quer dizer, a implantação e administração da política econômica em seu sentido mais tradicional.
Trata-se agora, de maneira mais intensa do que se conhecia pela primeira no pós-guerra (1945), da determinação de um risco geral. Ele afeta mais as economias nacionais do que indicadores macroeconômicos individuais chaves, como balanço de conta corrente, inflação, reservas internacionais, dívida pública, déficit fiscal, etc.
No encerramento de mais um período de superprodução, o risco geral atinge primeiramente as grandes economias dominadas da periferia do sistema imperial. É por isso que se pode observar também, nesta semana, que o espaço para cair da Argentina ainda é muito grande, imprevisível, mesmo depois do grande pacote de resgate do FMI, como há pouco menos de dois meses atrás.
Mesmo com a blindagem do FMI e toda a boa vontade de Washington em apoiar o atual governo ultraliberal argentino, nesta segunda-feira (13/08) o dólar superou os 30 pesos, em Buenos Aires. Para conter o derretimento da moeda, o governo Macri elevou a taxa básica em cinco pontos porcentuais, para 45% – a maior taxa do mundo.
Outro fenômeno importante que se observa com esta crise na Turquia é que o “contágio” de crises cambiais não se origina mais de riscos gerados por economias isoladas como as da Turquia, Rússia, Argentina, etc., mas do risco geral de um evidente enfraquecimento sistêmico da totalidade do comércio internacional.
Na raiz deste enfraquecimento do moderno comércio internacional encontra-se uma crônica deflação global dos preços das mercadorias-capital (superprodução global) que leva a uma luta por mercados, guerras tarifárias, protecionismo, rompimentos de acordos internacionais, Donald Trump, Erdogan e outras miudezas do processo.
Nunca é demais repetir, até mesmo ruminar, que o aumento da vulnerabilidade e dos riscos cambiais em todo o mercado mundial aparece primeiramente nas economias dominadas e sem moedas conversíveis.
Essa regra geral não impede, entretanto, que mesmo entre as economias dominantes do G-7 (sete maiores economias do mundo) os efeitos do risco geral já se apresentem antecipadamente. Em nobres economias como a Itália, por exemplo. Mas o derretimento de moedas conversíveis, que nunca ocorreu nos últimos setenta anos, deve ser tratado em futuro boletim.
O importante agora é nunca se esquecer deste importante detalhe que, diferentemente da Itália e de outras economias dominantes, tanto o Brasil, quanto China, Índia, Rússia, Argentina, México, etc. não têm moeda conversível, “moeda forte”. É por isso que – levando-se em conta apenas a realidade dos mercados monetários e de divisas internacionais – são essas desclassificadas economias do sistema imperialista as primeiras a sofrer esses abalos de um risco geral, como se observou nesta semana e com maior clareza na Turquia e Argentina.
Para concluir esse já longo boletim, uma última observação dos fatos desta semana. Em perspectiva, as economias dominadas com maior volume de produção e flagrante superprodução de capital são as mais vulneráveis a esse risco geral do mercado cambial internacional.
Devido ao estreitamento relativo do mercado internacional essas grandes economias da periferia (principalmente as que ainda ostentam taxas elevadas de expansão do produto interno bruto) estão mais expostas a fulminantes ataques especulativos do mercado cambial internacional nos próximos meses ou trimestres.
É neste sentido que, depois da Turquia, pode-se listar o yuan chinês e a rúpia indiana como fortíssimas candidatas a serem proximamente derretidas no alto forno crematório de moedas frágeis da ordem imperialista global.