Publicado 10/08/2018 14:44
Neste ano comemora-se os 130 anos da Abolição no Brasil, assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888. E, no entanto, são vivas e profundas as marcas da escravidão no País. Diariamente somos confrontados com as provas concretas da desigualdade racial, seja por meio de aterradores dados estatísticos ou através de dramas reais, como o assassinato de Marielle Franco, que relembram quão profundo e arraigado é o racismo no país. Apesar da sensação de que pouco avançamos para combater tal situação, a denúncia dessa segregação persistente parece pouco a pouco esgarçar o manto da invisibilidade que recobre a questão.
Nesse processo de denúncia, reflexão e combate, a arte desempenha um papel fundamental e amplificador, apesar de insuficiente para reverter um quadro de exploração que se perpetua há séculos. Se até há pouco eram raras as exposições de artistas afro-brasileiros e africanos, ou em torno de questões vinculadas ao passado escravista e ao presente racista – e o Museu Afro Brasil (ver ao lado) parecia ser um foco essencial, mas isolado, de resistência –, vimos nos últimos tempos um florescimento de manifestações neste sentido. Somam-se a mostras históricas realizadas nos últimos anos, como Histórias Mestiças, no Instituto Tomie Ohtake (2014); Territórios: Artistas Afrodescendentes no Acervo da Pinacoteca (2015/2016); Diálogos Ausentes, no Itaú Cultural, e SomxsTodxsNegrxs, no Videobrasil (ambas em 2017), uma quantidade considerável de exposições, eventos e reflexões poéticas sobre a situação do negro no Brasil e do mundo.
Neste momento, estão em cartaz simultaneamente na cidade de São Paulo as exposições Ex-África (CCBB), que traz a obra de 18 artistas contemporâneos africanos e de dois brasileiros, e a mostra de longa duração É Coisa de Preto, organizada pelo Museu Afro Brasil, que contempla um amplo número de núcleos expositivos.
No próximo dia 29 de junho, começa uma grande exposição, intitulada Histórias Afro-atlânticas, concebida por uma parceria entre o Masp e o Instituto Tomie Ohtake, que reunirá aproximadamente 400 obras realizadas por mais de 200 artistas da África, do Caribe e das Américas. Além dessa mostra gigantesca, que ocupa todos os espaços expositivos temporários do museu, o Masp tem dedicado toda sua programação de 2018 à discussão de questões relativas à arte africana e afro-brasileira. Além de um conjunto alentado de mostras de autores negros, como as atuais exposições de Aleijadinho, Emanoel Araújo e Ayrson Heráclito, uma pequena, mas significativa mudança foi feita em sua exposição permanente, colocando nessa coleção fortemente eurocêntrica uma nova tônica e dando destaque – a partir do segmento dedicado à arte moderna – à representação dos negros e à produção de artistas afro-brasileiros.
Histórias Afro-atlânticas terá oito diferentes núcleos. O primeiro deles, Mapas e Margens já sinaliza, segundo a curadora Lilia Schwartz, a perspectiva múltipla, plural, adotada pela equipe curatorial. “Nesse rio chamado Atlântico circularam símbolos, religiões, formas de produzir e sobretudo pessoas”, destaca ela, relembrando a importância de autores como Pierre Verger e Alberto da Costa e Silva (autor da metáfora do Atlântico como um rio) para o desenvolvimento deste projeto, que envolveu três anos de pesquisa e dois seminários internacionais.
mostra combina em seus diferentes núcleos abordagens históricas e contemporâneas, antropológicas e estéticas, aspectos que serão aprofundados tanto no catálogo como no livro de ensaios que serão lançados simultaneamente. Em termos internacionais, a produção africana, muito pouco conhecida por aqui, ganha destaque, bem como uma ampla produção de afrodescendentes do lado de cá do Atlântico (com uma forte presença da atual produção norte-americana). A seleção brasileira – ou produzida no Brasil – também é ampla, indo desde marcos históricos como as telas Negro Woman with Child e Negro Man, de Albert Eckhout, a uma série de trabalhos comissionados especialmente para a exposição.
Desde o final da década de 1980, com as celebrações em torno do centenário da abolição e a promulgação da Constituição cidadã, nota-se um crescente interesse por parte dos artistas brasileiros afrodescendentes de refletir sobre um passado que não acabou, substituindo pouco a pouco o modelo anterior que associava a arte brasileira de matriz africana essencialmente a um universo vinculado aos motivos religiosos e a arte popular.
Histórias Afro-atlânticas não apenas dá espaço para os artistas responsáveis por essa virada, dentre os quais se destacam nomes incontornáveis como os de Rosana Paulino, Eustáquio Neves, Sidney Amaral e Dalton Paula, que estiveram presentes em praticamente todas as mostras anteriores já citadas. A mostra procura também abrir espaço para identificar novos atores neste segmento. Apesar do lastro histórico importante, há também uma aposta em novos nomes dessa produção, tanto no Brasil (No Martins, Rafael RG…) como no exterior (TitusKaphar, Nina Chanel Abney…), afirma Hélio Menezes, um dos curadores da exposição ao lado de Lilia Schwartz, Tomás Toledo, Adriano Pedrosa e Ayrson Heráclito.
Estudioso da produção afro-brasileira contemporânea, Menezes diz não se iludir com o atual interesse que o mercado de arte vem dedicando a essa produção, que durante anos ficou ignorada. Mas, segundo ele, não há dúvida de que esses artistas vieram para ficar: “Estão se tornando incontornáveis ao debate”. Outro aspecto interessante que ele destaca na pesquisa é a diversidade. Apesar da ênfase em poéticas mais vinculadas à luta política, é preciso contemplar a ampla gama de linguagens e temas trabalhados por esses artistas. O curador exemplifica que o núcleo Modernismos Afro-atlânticos concentra-se na produção de artistas negros da África e da diáspora africana, cujos trabalhos são mais voltados para diálogos internos da história da arte.
Como diz Menezes, “cada exposição é um mundo”. O interessante é que, tanto pela dimensão grandiosa como pela fricção que promove entre a produção internacional e a cena nacional, Histórias Afro-atlânticas promete ampliar o conhecimento e o debate em torno da produção africana num país contraditório como o Brasil que, apesar – ou talvez por isso – de ter sido o primeiro país a trazer escravos, ter recebido a larga maioria da população africana escravizada ao longo de mais três séculos (calcula-se que 40% dos negros vendidos como escravos tenham aportado por aqui) e de ter sido a última nação ocidental a abolir tal prática, ainda desconhece enormemente sua história e os laços que o une à cultura negra.