O Roda Viva que Bolsonaro sonhava
Coube não a um jornalista, mas a um representante do Instituto Ayrton Senna, fazer as perguntas mais embaraçosas ao presidenciável Jair Bolsonaro durante o Roda Viva, programa de entrevistas da TV Cultura. Embaraçosas por obrigarem o candidato a entrar em uma seara que ele evita a todo custo: o debate de ideias e propostas.
Por Sérgio Lírio para Carta Capital
Publicado 01/08/2018 14:39
Bolsonaro, o “mito”, não soube responder sobre seu programa para a educação, assim como escapou de falar sobre economia. Em um raro momento no qual foi convidado a expor sua visão a respeito da situação econômica do País, saiu-se com uma piada: “Paulo Guedes é meu posto Ipiranga”. Guedes, sócio de butiques financeiras no Rio de Janeiro, é apresentado como o ministro da Fazenda de um governo Bolsonaro. Sua principal proposta é uma privatização radical, da Petrobras ao Banco do Brasil.
Na maioria do tempo, a bancada tentou forçar o candidato a cair em contradição. Boa parte do programa foi dedicada a um debate sobre a ditadura, o discurso da violência e do “bandido bom, é bandido morto”, a interpretação do presidenciável a respeito da escravidão e outras polêmicas.
Bolsonaro agradece. Ao exibir mais uma vez um total descompromisso com a história e com os fatos, o deputado atribuiu a escravidão à ação de negros na África, negou a existência de um golpe militar em 1964 no Brasil e disse que 30% dos nascimentos de prematuro guarda relação com a falta de higiene bucal das mães.
Sobre a sugestão de “metralhar a Rocinha”, ideia efusivamente aplaudida durante um evento empresarial, insinuou que a declaração foi retirada do contexto e concluiu com uma frase de efeito, para delírio de seus fãs: “Se ele atirar, dê uma flor”.
Ansiosos por expor as “polêmicas” do presidenciável, a bancada do Roda Viva acabou por produzir o resultado inverso: reforçou a sensação de que Bolsonaro é “autêntico” e “fala o que pensa”. Permitiu ainda ao deputado apontar uma suposta perseguição da “mídia comunista” (segundo seus seguidores, 100% das empresas de comunicação do Brasil, Globo incluída, são de esquerda).
O Roda Viva da segunda-feira 30 registrou a maior audiência do programa nos últimos tempos e liderou os trending topics do Twitter. Bolsonaro aproveitou a oportunidade para disparar frases a esmo. Confira algumas:
“O português nem pisava na África. Foram os próprios negros que entregavam os escravos.”
Assim Bolsonaro define o processo de escravidão, como obra dos próprios africanos. Entre os séculos XVI e XIX, quase 5 milhões de negros foram trazidos à força ao Brasil para serem escravos. Portugal manteve colônias na África entre 1415 e 1975.
“Que dívida? Eu nunca escravizei ninguém.”
A respeito do encargo histórico com os negros, decorrente da escravidão, e que os coloca no sopé da escala social.
“Não houve golpe militar em 1964. Golpe é quando mete o pé na porta e tira o cidadão de lá”
Sugerindo que João Goulart teria abandonado o governo, quando na verdade se encontrava no Rio Grande do Sul em busca de apoio. E estabelecendo um nova definição para as quarteladas.
“Esquece isso aí”
Sobre a tortura, assassinatos e desaparecimentos durante a ditadura.
“Mandela não é tudo isso que se pinta aí, não.”
A respeito do vencedor do Nobel da Paz de 1993, considerado a maior liderança negra da história do continente africano, presidente da África do Sul entre 1994 e 1999 e uma das maiores personalidades do século XX.
“A questão bucal é responsável por 30% dos prematuros.”
É o que garantiu o “especialista”, ao ligar problemas dentários ao nascimento de bebês antes do tempo. Nenhum estudo ou estatística na área de saúde avaliza essa afirmação
“Tenho 500 projetos apresentados.”
Confrontado por jornalistas da bancada com os dados reais (176 projetos, dois deles aprovado) deu por menos e não se retratou. Deixou por isso mesmo
“Paulo Guedes é o meu Posto Ipiranga.”
O que pensa o candidato sobre Economia (ou sobre qualquer outro tema da agenda nacional)? Pergunta no Posto Ipiranga.
“Gostaria de ter estado mais vezes ao lado de (Eduardo) Cunha.”
O candidato responde a processos por incitação ao estupro. Uma eventual condenação poderia aproximá-lo do ex-deputado, hoje na cadeia.
“Sou contra privilégios. Por exemplo, eu posso gastar por ano 400 mil como parlamentar e gastei só 200 mil. Economizei.”
Neste valor não se incluem os salários de quem só aprovou dois projetos ao longo dos vários mandatos parlamentares. A baixa produtividade faz dele um deputado caro
* Colaborou Fred Melo Paiva