“Mais negros e mulheres é uma decisão política”, diz curadora da Flip
Pela segunda vez a jornalista Joselia Aguiar está na curadoria da Festa Literária Nacional de Paraty (Flip). Sob suas mãos, o evento se repaginou em 2017 a partir da maior presença de autoras mulheres e autores negros em relação as edições passadas. Neste ano não será diferente: a porcentagem se mantém, inclusive nos aspectos da presença de editoras de pequenos portes.
Por Marina Gama Cubas
Publicado 31/07/2018 18:48
As mudanças geraram polêmicas, mas ao final da edição passada foi conclamada pela imprensa, escritores e artistas. "Se você busca mais autores mulheres e mais autores negros você oferece um programa com menos pessoas conhecidas. Porque, em geral, os mais conhecidos são autores brancos", diz Joselia, que concluiu seu doutorado sobre o escritor baiano Jorge Amado.
Levar escritores com esse perfil não era suficiente para a curadora. Mais que ampliar a presença de setores minorizados da sociedade, Joselia conta que a literatura deles é o centro das conversas na mesas. "Os autores tem que ser tratados como autores e não como temas."
Outro ponto que reflete o êxito da curadoria é número de casas parceiras que promoverão encontros e debates com escritores, artistas, além de sociólogos, juristas e economistas: passou de 7 em 2017 para 22 na edição deste ano, que acontece de 25 a 29 de julho. "Alguma coisa mudou na paisagem da Flip", avalia.
Leia a entrevista na íntegra:
Qual foi a sua sensação no encerramento da Flip 2017?
Foi um dos anos em que eu mais aprendi na vida, pelos bastidores, todas as conversas que tive, com muita gente, sobretudo as conversas com interlocutores negros.
Sendo baiana, tendo estudado autores que de alguma maneira trataram de racismo, como o Pierre Verger e o Jorge Amado, e sempre muito interessada nessa questão, eu achava que tinha uma compreensão do problema. Mas essa compreensão passou a ser outra. Passei por uma tomada de consciência em relação a questão racial. Isso foi incrível.
Outro ponto é que terminei com a sensação de ter feito alguma coisa que tinha sido relevante ao aumentar a quantidade de mulheres, de autores negros. E também da maneira como foi feito, a partir da literatura deles. Não eram mesas só sobre a questão negra, a questão feminina… Muita gente já estava fazendo esse tipo de debate.
Eu brincava dizendo que em todos os lugares você via uma mesa sobre empoderamento feminino, que acabava sendo uma espécies de uma “mesa de cota”. Você não via as mulheres distribuídas na programação, conversando sobre todos os assuntos nos eventos.
Na Flip decidi que as autoras iriam pelas obras, protagonistas tanto quanto os homens. Os autores negros e as autoras negras da mesma maneira. Não uma mesa só de um determinado horário, de um determinado dia, como se o autor fosse um tema. O autor não é um tema.
Acredita que a Flip se popularizou?
Acho que popularizou de uma determinada maneira. Temos mais atores de editoras pequenas na programação principal. Isso fez com que várias editoras independentes se interessassem em ir à Flip nas programações paralelas.
E quando se abre essa pauta de mulheres e negros na programação, ela também traz grupos que não estavam tradicionalmente incorporados à Flip. Se pensarmos que vamos ter uma casa parceira chamada “Diálogos Insubmissos”, que é organizada por uma pessoa das Letras da Bahia, uma produtora negra, que vai reunir uma programação toda de autoras negras em torno da Conceição Evaristo, é uma coisa que antes não tinha.
Abrindo para mais mulheres e mais autores negros, você acaba trazendo, incorporando, atraindo setores que antes não se sentiam contemplados e com isso vem os leitores também. Quem está buscando essas pautas também se sente incluído. Alguma coisa mudou na paisagem da Flip.
Hilda Hilst é a homenageada deste ano. Qual sua relação com a literatura dela?
Eu era estudante em Salvador quando saiu O Caderno Rosa do Lori Lamby e tive contato com as primeiras notícias dela. Fiquei curiosa para saber que outros livros eram aqueles que haviam sido publicados e sobre mulher que eu nunca tinha ouvido.
Procurei nas livrarias de Salvador e realmente não encontrei. Então ficou um pensamento de que havia “um mundo que eu não conheço e que não está no meu alcance”.
Anos mais tarde, já em São Paulo e como editora da EntreLivros, a Globo lançou a obra da Hilda organizada por Alcir Pécora e comecei a receber a obra da Hilda. Agora é que a obra dela está circulando.
Como foi o processo de escolha da Hilda como homenageada?
Depois que terminou a Flip do Lima Barreto e a organização me convidou para voltar eu coloquei um ponto meu de que precisava fazer a curadoria de uma autora mulher. E a ideia de ter uma mulher como a Hilda, nesse momento pós Lima Barreto, pareceu boa para os organizadores da festa.
Assim como o Jorge Amado, ela trabalha a dimensão mística e erótica, mas de maneiras totalmente diferentes. Eu gosto muito dessa coisa de eles se recolherem para escrever. Ela tem a Casa do Sol, ele tem a Casa do Rio Vermelho, ambos acordavam cedo para escrever.
Você diz que Flip gira em torno do literário. O que entende sobre o literário?
Alguns programas em festas literárias incorporam debates de política, de economia, internacional. É possível você ver em uma festa literária um debate sobre Oriente Médio, sobre assuntos de sociologia, a superexposição dos indivíduos nas redes sociais… Isso não está errado. É uma escolha, uma opção, uma forma de desenhar o programa.
Tanto ano passado como este ano decidi não fazer desse modo, acho que as pessoas tem receio de colocar literatura em uma festa literária. Elas acham que as pessoas não vão ser atraídas. Quase que como se quanto mais o debate for de atualidades, mais vai ter pauta e audiência.
Eu quis fazer o contrário, quis pegar a literatura que seria uma coisa que está desaparecendo dos cadernos de cultura. O que leva um jornal a acabar com seu suplemento literário e transformá-lo em um caderno de variedades? A ideia de que não ter leitor para isso e que, se colocar outros temas e outras áreas haverá mais.
Para atrair audiências às vezes as pessoas investem em debates de atualidades e o que quis fazer foi justamente reforçar a literatura e as artes. Todas as mesas, com pequenas exceções, são de escritores falando do seus livros. A literatura está no centro por isso. A gente não pode tirar a literatura de uma festa literária.
Por isso optou por não chamar profissionais da economia, política ou judiciário?
Queria colocar a literatura em primeiro lugar. Tem muita gente fazendo debate sobre esse temas e quis resguardar, seria uma resistência mesmo. A Flip do ano passado foi de temperatura altamente política. Todas as mesas têm autores que enfrentam temas extremamente graves.
Este ano temos uma homenageada que fez livro pornográfico e, na obra dela, há o que questionamento dos limites. Vamos mostrar que a arte tem que falar de liberdade, de sexo, de religião.
Temos vários autores que falam de religião quando o que está acontecendo no Brasil é um movimento de impedir as pessoas de terem liberdade religiosa. As religiões afro-brasileiras estão sendo atacadas. Vamos homenagear a editora Corrupio, que publicou um autor que escreveu um livro que chama Orixás, sobre deuses africanos no Brasil.
Temos uma mesa que chama Interdito e trata do momento que estamos asfixiado com a ideia de que não podemos falar de certos temas, um autor que fala o que é ser judeu. Esse mesmo autor escreve sobre homoafeto. Há também uma autora que escreve sobre sexualidade entre mulheres no Oriente Médio. São autores que enfrentam com muita liberdade temas tabus.
Do ponto de vista de composição de autores, o fato de incluir mais negros e mais mulheres é uma decisão política. Só que é mais político ainda que essas pessoas falem de suas literaturas. A crítica de que não há debates sobre a atualidade está muito relacionadas ao pessoal que está na grande imprensa, que funciona às vezes no automático. Que é o mesmo automático que diz que a Flip do ano passado era sobre o racismo.
Tanto nesta edição como na anterior você tem priorizado um programa com mais autores de editoras de pequeno porte. Algum motivo especial?
Existe um conceito já conhecido de bibliodiversidade, você consegue uma multiplicidade de olhares, de abordagens sobre muitas questões conforme você tem um leque maior de editoras participando.
Então essa decisão é para democratizar o acesso de editores de menor porte para o grande palco que é a Flip. Foi um dos gestos que contribuiu para deixar a Flip mais diversa sem, necessariamente, passar pela outra etapa que é de ter mais mulheres e mais autores e autoras negras.
Essa decisão desagradou as grandes editoras?
Não chegou a mim em forma de desagrado. Todos os editores querem, claro, colocar seu autores. E como são, obviamente, apaixonados pelos autores e livros que publicam querem muito, insistem. Isso é bem comum. E editores pequenos também são apaixonados pelos seus livros e querem muito.
Então o esforço para serem representados é grande e infelizmente a gente tem um espaço limitado e não consegue contemplar todas as sugestões. O que sinto também é que há um agrado muito grande de editoras menores que passaram a participar da Flip.
O que você não quis repetir nesta edição da Flip em relação a anterior?
Pelo meu jeito de trabalhar não gosto de fazer nada igual ao que fiz. Eu mantive esse programa plural e a literatura no centro por uma busca de maior complexidade dos debates, sem deixar de fora a questão política e social. Mas nesta edição eu tinha um outro tipo de autor para trabalhar.
Enquanto o Lima Barreto lidava diretamente com as questões sociais e políticas – ele tratou do racismo e do Brasil na Primeira República em sua obra -, a Hilda possibilitou fazer uma Flip com grandes temas: o amor, a morte, o sexo, a transcendência, Deus, a ideia de Deus. Era muito interessante ter esse programa plural com esse tipo de debate. Até para que a gente confirmasse que os autores têm que ser tratados como autores e não como temas.