Publicado 05/07/2018 19:03
Embora já com 54 anos de vida em 2007, tenho apenas dois filhos muito jovens e indefesos ainda: Diogo com 17 anos e Fabio com 16. Lembrando meus tempos de adolescente, fico a refletir como era possível conceber que tal juventude pudesse representar, naqueles anos do final da década de 60, há 40 anos, tanta ameaça para os donos do poder, a ponto de serem reprimidos e perseguidos como nos casos que passo a relatar.
E que não se diga que aquilo foi obra apenas da cabeça de militares. Não, a repressão que se abateu, especialmente voltada contra a juventude, foi obra também de civis, no caso até de juristas e educadores. São casos verdadeiramente inacreditáveis, se vistos sob a ótica desses novos tempos de Estatuto da Criança e do Adolescente, mas que servem para descrever o ambiente carregado que se vivia já desde antes do ano de 1968. Uma situação insólita que fatalmente não poderia deixar de levar a uma radicalização das lideranças estudantis com a adesão, nos anos seguintes, à tese de que só mesmo a luta armada derrubaria a ditadura.
Vamos aos fatos. No final do ano de 1967, próximo a completar meus 15 anos, talvez por conta de já haver trocado a coleção infantil de Monteiro Lobato pela leitura de sua obra para adultos intitulada O Escândalo do Petróleo e do Ferro, eu deixei meus pais de cabelo em pé quando meu nome apareceu em uma relação nominal de 47 “alunos prejudiciais” ao Colégio Estadual de Pernambuco, o antigo Ginásio Pernambucano da Rua da Aurora.
Lá, olhando para o Capibaribe, estudavam-se os cursos ginasial (1º grau maior), clássico e científico (2º grau). Quem quisesse aprender as lições alegres do gramático ranzinza Adauto Pontes, fosse para o CEP, o colégio de ensino público mais tradicional da capital pernambucana. Aprendia-se português sorvendo a brisa do rio que inspirara João Cabral. Os rapazes, ali, – não havia moças – viveram o maior foco do movimento estudantil de secundaristas. Secundaristas… Ofendiam-se quando eram chamados de secundários. Da agitação promovida pelas lideranças das correntes Opinião (dos rapazes do PCBR) e Vanguarda (apoiada pela AP) eu tomava parte apenas como massa, conforme o jargão de então.
Gritávamos contra o menor arranhão sofrido pelos estudantes. Manifestação de rua já resultara, no início do ano, nas primeiras prisões dos estudantes secundaristas Fernando Santa Cruz e Ramirez Maranhão do Vale, ambos, mais tarde, assassinados pela ditadura no Rio de Janeiro. Um dos líderes do colégio, José Eudes de Freitas, tornou-se tão conhecido da polícia que teve que fugir para o Rio de Janeiro. Na década de 80, virou deputado federal, um dos três expulsos do PT por ter votado em Tancredo Neves no Colégio Eleitoral de 1985.
Após juntar declarações de alguns professores catedráticos atestando minha boa conduta e bom desempenho escolar, inclusive do vice-diretor, o conceituado professor Manoel Heleno, meu pai protocolou carta ao Secretário de Educação questionando os motivos da recusa à renovação da minha matrícula. Mas tive, mesmo, que estudar em outro colégio.
Em 1969, quando cursava o 2º ano científico no Colégio Estadual Historiador Pereira da Costa, colégio fundado por pressão do movimento estudantil devido à falta de vagas no Colégio Oliveira Lima, a história se repetiu de forma ainda mais grave. Logo no primeiro semestre, em 26 de maio, ocorrera o assassinato, pelos órgãos de repressão, do Padre Antônio Henrique Pereira Neto, responsável pelo trabalho pastoral da Igreja com estudantes e diretamente ligado ao arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara. Grupos de estudantes secundaristas, organizados na ARES (Associação Recifense dos Estudantes Secundaristas) e na UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas) participavam ativamente da denúncia do assassinato e da mobilização para a passeata de protesto, a ocorrer no funeral.
Íamos de sala em sala, com licença dos professores, fazer a denúncia e chamar os estudantes para o cortejo fúnebre que acabou se tornando um grande ato de protesto contra a ditadura militar. Diante da fúria da repressão, a solução era a organização de comícios-relâmpagos, como o realizado no centro da cidade por ocasião da visita ao Recife da diretora da UNE, Doralina Rodrigues. Lembro da minha participação naquele dia. Curiosamente, me puseram de segurança, com a missão de, apenas com os atributos de um magricela de parcos 53 quilos, acompanhá-la e evitar a qualquer custo sua prisão. Boa tática essa, vejo agora. Repressão nenhuma acreditaria que uma pessoa importante se acompanhasse de um segurança como eu.
O fato é que certo senhor Gentil Tiago de Moura, diretor do colégio onde eu estudava, explicou a meus pais, perplexos, que em razão do meu subversivo voluntarismo, agravado pela agitação que eu e companheiros fizéramos em sala de aula também ao denunciar o atentado em 28 de abril contra o então presidente da UEP (União dos Estudantes de Pernambuco), estudante de engenharia Cândido Pinto de Melo, que o deixara paraplégico aos 21 anos, que eu, em razão desses gravíssimos atos, estava sendo expulso do colégio, com apenas 16 anos, juntamente com outros sete colegas, na metade do ano letivo.
O ódio a tais jovens era tamanho que, para impedir nossa transferência para outro estabelecimento de ensino, o então Diretor de Ensino Médio, Edson Rodrigues de Lima, sigilosamente, enviou a toda a rede estadual de ensino médio, textualmente, a mando do então secretário de Educação, Roberto Magalhães (posteriormente governador de Pernambuco), o ofício-circular 20/69, de 22 de julho. Esse ofício proibia nova matrícula dos oito alunos: Ramires Maranhão do Valle, Alfredo Lopes Ferreira Filho, Genezil Aguiar Coelho Moura, Geraldo Sobreira Liberalquino, José Sebastião Lins, Judas Tadeu de Lira Gabriel, Lília Maria Pinto Gondim e Paulo Fernando Magalhães Santos. Este último, ainda mais jovem que eu, com apenas 14 anos. Até hoje, Paulo Fernando não conseguiu concluir o ensino médio. Uma matéria de memória política do Jornal do Commercio ilustra os fatos com este título – "477: É proibido estudar".
Estávamos, sem direito a defesa, até por desconhecermos o secreto ato oficial, a mando de um jurista, cassados por um expediente ilegal, mesmo sob a ótica das leis de exceção vigentes. O decreto 477, que cassava com rito sumário estudantes, professores e funcionários, era geralmente aplicado apenas aos universitários. Fora criado em fevereiro de 1969. Quase o inauguramos…
Não foi à toa que a escolha de Roberto Magalhães (que apoiara tão ativamente a repressão do regime de 64) como vice na chapa de Mario Covas para a Presidência da República, em 1989, não foi bem recebida pelos correligionários do próprio PSDB pernambucano. Na ocasião, a deputada Cristina Tavares (PSDB-PE) chegou a renunciar à vice-liderança na Câmara Federal e manifestou apoio ao candidato Leonel Brizola, junto com outros peessedebistas dissidentes. Magalhães acabou tendo que renunciar à sua candidatura.
Aquele decreto 477 que inspirou a punição aos oito jovens secundaristas, nesse ponto, era maquiavélico. Ao proibir as lideranças estudantis de continuar os estudos, os militares, ao tempo em que diminuíam a mobilização contra a ditadura nas escolas, propositalmente empurravam os líderes para a radicalização da luta armada, para depois caçá-los e assassiná-los nos porões do regime ou nas florestas do Araguaia. A título de exercício de combate ao comunismo, era preciso fabricar inimigos com o intuito de pôr em prática o que eles haviam aprendido nas escolas militares americanas.
Para Ramires Maranhão do Valle, o afastamento da escola levou à radicalização de sua participação na luta contra a ditadura. Considerado um dos líderes da agitação que havia tomado conta do colégio e orador de um comício-relâmpago que a UBES organizou na ocasião, Ramirez foi também denunciado à polícia. Caçado, passou aos 18 anos para a clandestinidade. Mais tarde, em 1973, recebemos a notícia chocante do seu “desaparecimento”.
Além de Fernando e Ramirez, outros líderes secundaristas pernambucanos também tombaram na luta contra a ditadura, como Almir Custódio de Lima (da Escola Técnica Federal de Pernambuco) e Lourdes Maria Wanderley Pontes, esposa do líder estudantil no Pernambucano, Paulo Pontes. A vida na clandestinidade, quase sempre fora de seu estado natal, elevava muito o risco de esses estudantes serem mortos de forma cruel pela repressão, uma vez que se encontravam longe da presença da família e dos colegas de escola. Roberto Franca Filho, secundarista preso em 69 aos 18 anos, posteriormente Secretário de Justiça durante o governo Arraes, avaliando um período quando a tortura nas prisões ainda não havia se disseminado totalmente, chegou a afirmar em depoimento:
– Minha prisão em 69 me salvou da clandestinidade. Porque muitos assumiram essa condição, por imposição do sistema. O sistema não dava mais retorno, como nos caso de Ramirez, Paulo Pontes e outros. Pessoas que não podiam mais ter uma vida normal, porque a ditadura não permitia isso. A alternativa era a clandestinidade e a luta armada. O sistema impôs essa ida sem retorno e precisava dos “subversivos” para se justificar.
Ele, Eridan Moreira Guimarães e minha colega expulsa do Pereira da Costa, Lília Maria Pinto Gondim, haviam sido presos em julho de 69 com outras duas secundaristas, as menores Inês e Carol, em uma ação de pichamento de ônibus nas ruas do Recife contra a vinda de Rockfeller ao Brasil. Todos eram tão jovens que quando apareceu um policial, na fuga, as garotas não desgrudaram do rapaz. Correram e entraram em um ônibus. O policial entrou e gritou para o motorista não abrir a porta. O motorista desobedeceu. Os cinco desceram correndo, seguidos pelo policial. Entraram em uma casa, saíram, entraram em outra, depois, sempre juntos, apanharam um táxi, o policial tomou outro táxi e continuou a perseguição. Quando, obedecendo a um sinal de trânsito, o táxi parou, o único policial prendeu os cinco. Os maiores foram julgados e condenados a um ano sob a ridícula acusação de “agressão a uma nação amiga”. Depois de 10 meses de prisão, foram absolvidos como resultado da apelação ao Supremo. Hoje essa história é motivo de riso. Seus filhos e sobrinhos não imaginam como alguém podia ser enquadrado na Lei de Segurança Nacional simplesmente por pichar.
Como disse no começo, olho hoje para meus dois filhos e não consigo imaginá-los tão perigosos, tão terroristas, como disseram de mim quando eu tinha a idade deles. Uma possível explicação é que era muito perigoso, em 1967, ler Monteiro Lobato. Hoje, assistindo ao emocionante filme Zuzu Angel, fico relembrando o esforço que a minha mãe também teve que fazer, até me escoltando na fuga, para tentar evitar que eu, seu filho, caísse na arapuca e tivesse o mesmo triste fim do filho da Zuzu, Stuart.
*Texto publicado no livro 68 – a geração que queria mudar o mundo: relatos, editado em Brasília pelo Ministério da Justiça, Projeto Marcas da Memória, ISBN 978-85-85820-06-0, http://www.justica.gov.br/central-de-conteudo/anistia/anexos/livro_68-relatos.pdf