Losurdo – Na linha de frente da inteligência comunista
Não é preciso ser comunista, nem mesmo socialista, basta alguma firmeza de caráter para compreender a grandeza dos que se mantêm firmes nas horas mais difíceis. Não é mera coincidência que a estrela de Domenico Losurdo tenha começado a brilhar no firmamento das ideias revolucionárias durante o desmantelamento do bloco soviético, que rompeu em favor do bloco capitalista agrupado na aliança bélica da Otan quatro décadas do equilíbrio estratégico EUA/URSS.
Por João Quartim Moraes*
Publicado 04/07/2018 11:37
Na contramão das longas colunas de renegados e desertores que aderiam à “democracy” e à “globalization” made in USA, sob o pretexto de que o fracasso de Gorbachev e o golpe capitalista de Ieltsin comprovaram o “fracasso” do marxismo e que, suprimida a URSS, entraríamos numa era de paz, sem muros, nem fronteiras, Losurdo publicou, já em janeiro de 1991, um artigo em defesa do legado da Revolução de Outubro de 1917. Outros artigos e tomadas de posição vieram em seguida, entre eles o notável estudo histórico-crítico “Da Revolução de Outubro à Nova Ordem Internacional” (novembro de 1993), publicado em versão brasileira na revista Crítica Marxista (1997-1998, nºs. 4-5-6) e reproduzido no Vermelho.
Também em 1993, já autor de considerável produção filosófica no âmbito da teoria política publicada na década anterior, ele lançou Democracia ou bonapartismo: Triunfo e decadência do sufrágio universal, livro que lhe valeu celebridade acadêmica internacional. Ele lá explicou como o tão almejado direito de voto, conquistado com sangue operário, serviu paradoxalmente para levar à presidência da efêmera segunda república francesa o aventureiro golpista Luís Bonaparte, que recebeu 5,5 milhões de votos, contra 1,5 milhão para seu principal oponente, o general Cavaignac, cujo maior trunfo eleitoral era ter dirigido os massacres de 23-26 de junho daquele ano, que esmagaram a revolução proletária. Os paradoxos têm explicação. Num contexto de reação política, os avanços institucionais podem sofrer as piores manipulações. Derrotado e dizimado o movimento operário, a massa camponesa, grande maioria da população votou maciçamente no candidato que prometia garantir a pequena propriedade rural. Conhecemos no Brasil os efeitos perversos da dialética do sufrágio universal: ao voltar a exercer, em 1989, após 29 anos, o direito de eleger o presidente da República, o corpo eleitoral também escolheu um pífio espertalhão, cujo “programa” consistia em saquear os cofres públicos e empreender a destruição dos direitos sociais consignados na então recém-promulgada Constituição de 1988.
No tesouro de ideias que Losurdo nos legou encontramos estudos filosóficos densos e originais sobre Kant, Nietzsche e principalmente Hegel. Mas certamente os escritos que mais forte impacto intelectual exerceram sobre os contemporâneos (e seguramente sobre os que virão depois) foram os que retomaram a teoria revolucionária de Marx, Engels e Lênin na luta pela ultrapassagem revolucionária da dominação do capital sobre a sociedade, bem como das diferentes modalidades de opressão social, nacional étnica, racial, sexual. Ele põe em evidência a colossal estatura teórica e política dos três grandes fundadores do materialismo histórico e do movimento comunista internacional, enfatizando a perspectiva da construção histórica da ideia de uma humanidade efetivamente universal sem, contudo, tratá-los reverencialmente como profetas infalíveis. A tese da extinção do Estado, a ênfase, às vezes unilateral, nos efeitos transformadores do desenvolvimento em escala planetária do modo capitalista de produção exigiam e mereciam uma discussão renovada e aprofundada à luz da experiência histórica do século 20. Nós a encontramos em vários textos de Losurdo, nomeadamente, a propósito do Estado, no artigo que ele consagrou a Sebastiano Timpanaro.
Mas foi sobretudo ao ressaltar que conceitos fundamentais do materialismo histórico são muitas vezes utilizados em sentido indevidamente restrito, que ele contribuiu para lhes conferir seu pleno alcance. Um só exemplo. O conceito de luta de classes é quase sempre referido ao confronto entre operários e capitalistas, o que leva a considerar a opressão da mulher um fato da superestrutura cultural condicionado pela diferença biológica. Losurdo, entretanto, retomando o estudo pioneiro em que Engels pôs em evidência a origem social desta opressão, vinculando-a ao surgimento da propriedade privada e do patriarcado, teve o grande mérito de reiterar convincentemente que a resistência das mulheres à opressão masculina é a mais antiga modalidade da luta de classes.
Sempre na linha de frente da luta ideológica, ele denunciou com rigorosa objetividade, citando muitas vezes as próprias fontes imperialistas para desvelar suas falácias e hipocrisias, os crimes da máquina de guerra da Otan. Reconstituindo, com muitos fatos e poucos adjetivos, as três agressões bélicas com que o governo estadunidense e seus satélites comemoraram o desmonte da URSS, ele publicou, no final do século passado, o artigo “Panamá, Iraque, Iugoslávia: os Estados Unidos e as guerras coloniais do século 21” (tradução brasileira em Crítica Marxista 9, 1999), que anunciava no título o que ocorreria nos anos seguintes. Perante a sequência de invasões que inaugurou o novo milênio (Afeganistão em 2001, uma vez mais Iraque em 2003, Líbia em 2011) e a implacável desestabilização da Síria, a partir de 2011, ele consagrou sua prodigiosa energia intelectual à denúncia dos pretextos cínicos a que recorria o cartel da Otan para eliminar, uns depois dos outros, os governos que se recusavam, na zona do Mediterrâneo e na Ásia ocidental, a aceitar o estatuto colonial. Boa parte dos textos então elaborados recebeu traduções brasileiras; alguns dos mais importantes estão reunidos em Liberalismo – Entre civilização e barbárie (2006) e O pecado original do século 21 (2013), ambos pela Editora Anita Garibaldi.
Juntando a imersão na análise concreta com a perspectiva universalista de sua cultura filosófica, Losurdo discerniu com rara acuidade o enraizamento da luta ideológica no vocabulário político. Exatamente porque as ideias dominantes são as ideias do Império dominante, as palavras-chave que veiculam essas ideias não são semanticamente neutras, mas objeto cultural em constante disputa. Foi o que ele mostrou, em artigo de 2002 (traduzido em Crítica Marxista, nº 17, 2003) a propósito da distorção que a ensaísta liberal Hanna Arendt imprimiu à noção de totalitarismo. Em artigos publicados no imediato pós-guerra, ainda fortemente impregnada da exaltante vitória sobre o nazi-fascismo, da qual a União Soviética fora a grande protagonista, Arendt aplicava aquela noção para criticar os hitlerianos, bem como “os métodos totalitários” do Estado de Israel, que vinha de ser fundado na base do terrorismo contra a população palestina. Entrementes, os Estados Unidos, onde ela se fixara em 1941, haviam desencadeado a Guerra Fria. Em 1951, mesmo ano em que obteve a nacionalidade estadunidense, ela publicou Origens do totalitarismo, obra de grande impacto, mas na qual, como mostrou Losurdo com aguda precisão analítica, encontramos dois tratamentos distintos da noção que dá o título ao livro. Nas duas primeiras partes, redigidas antes de se cristalizar o confronto estratégico EUA/URSS, a autora confere a essa noção-chave o mesmo conteúdo dos escritos em que se identificava com a cultura da esquerda mundial. Mas na terceira parte, a significação do termo vem adaptada, num ambiente de cruzada anticomunista, ao arsenal ideológico da Guerra Fria. Esta operação ideológica de identificação do comunismo ao nazi-fascismo, tratados como espécies do mesmo gênero totalitário, foi eficaz, arraigando-se no senso comum liberal e oferecendo aos “cientistas políticos” do dólar, do Pentágono e da CIA um argumento recorrente na propaganda da “guerra fria”.
Em 2007, Losurdo publicou um estudo em que examina sistematicamente a manipulação semântica sobre a qual repousa esta propaganda: A linguagem do império – Léxico da ideologia estadunidense, traduzido em 2010 pela Editora Boitempo. Foi também essa editora que lançou, em junho de 2018, O marxismo ocidental. Como nasceu, como morreu, como pode renascer. Afirmar-se como “ocidental” é negar o “oriental”. O conteúdo concreto dessa negação é a recusa em admitir que as lutas de libertação nacional impunham aos comunistas “orientais” métodos, alianças e programas muito diferentes daqueles próprios ao combate socialista dos movimentos operários e dos intelectuais europeus. Dando as costas ao Oriente, os marxistas “ocidentais” deixaram na penumbra, quando não as desqualificaram, as mais grandiosas revoluções do século 20, notadamente a chinesa, a cubana e a vietnamita. Losurdo não se contentou em caracterizar essa rejeição eurocêntrica. Empenhou-se em determinar as condições da reativação do marxismo nos países ocidentais, preconizando uma nova síntese programática que ultrapasse a separação entre as lutas diretamente anticapitalistas e as lutas anti-imperialistas e incorpore, em escala internacional, todas as grandes lutas de nosso tempo contra as diferentes modalidades de opressão étnica, racial, sexual.
A morte, que o golpeou na manhã de 28 de junho, abre um imenso claro na inteligência comunista de nosso tempo. Mas a força de seu legado permanecerá entre nós com a mesma intensidade. Perdemos, porém, o privilégio de sua presença. Estamos de luto.