“Os livros, em si, é que são importantes”, diz Joãozito Guimarães Rosa

Imagine que você é criança e tem o imenso desafio de preparar uma apresentação em grupo sobre um grande escritor brasileiro para apresentar em sala. Trabalho para mais de metro, sabemos bem. A questão é que a criança desta história é prima de Guimarães Rosa, Lenice, que não pensou duas vezes para pedir ajuda ao diplomata considerado um dos maiores escritores do século 20. Quem se importa? É primo, oras!

Sorôco, sua mãe, sua filha, Helena Enne - Ilustração: Helena Enne

Atencioso, Rosa respondeu a cada uma das perguntas da pequena Lenice com cuidado e carinho e, por fim, desejou que ela e as colegas alcançassem boa nota com o trabalho.

Reproduzimos aqui a carta de Rosa à priminha, que é, sem dúvida, uma pequena aula sobre a obra dele.

Leia na íntegra:

Rio de Janeiro, 19 de outubro de 1966

Lenice, querida Prima,

Perdoe-me, muito, a demora; mas só hoje é que estou recebendo sua cartinha, datada de 23 de agôsto! Enny me telefonou a respeito dela, quando aqui estêve, fiquei esperando… e nada. Hoje, como disse, foi que Tia (digo, Vovó) Carlotinha telefonou, também, e me mandou enfim a carta, aqui no Itamarati. Assim, tenho de responder depressa, depressa, para não deixar sem matéria Você e suas Coleguinhas. Não reparem, pois, se os quesitos vão preenchidos de modo curto e fôsco. Mas faço-o com vivo carinho e sincera alegria.

Assim:

I – Desde menino, muito pequeno, eu brincava de imaginar intermináveis estórias, verdadeiros romances; quando comecei a estudar Geografia – matéria de que sempre gostei – colocava as personagens e cenas nas mais variadas cidades e países: um faroleiro, na Grécia, que namorava uma môça no Japão, fugiam para a Noruega, depois iam passear no México… coisas dêsse jeito, quase surrealistas. Mas, escrever, mesmo, só comecei foi em 1929, com alguns contos, que, naturalmente, não valem nada. Até essa ocasião, eu só me interessava, e intensamente, pelo estudo, da Medicina e da Biologia. (Como nasci a 27 de junho de 1908, eu tinha, então, 21 anos, mais ou menos.)

II – Meu primeiro livro publicado foi o Sagarana, em 1946. (O livro tinha sido escrito em 1937.)

III – A sensação que eu tive ao ver o meu primeiro livro sair, foi de deslumbramento, alegria… e susto.

IV – É difícil dizer qual o livro (da gente) preferido. A gente sempre gosta mais de um livro futuro, que se pensa ainda escrever. De qualquer modo, entretanto, posso dizer sinceramente que, de tudo o que escrevi, gosto mais é da estória do Miguilim (o título é “Campo Geral”), do livro Corpo de Baile. Por quê? Porque ela é mais forte que o autor, sempre me emociona; eu choro, cada vez que a releio, mesmo para rever as provas tipográficas. Mas, o porquê, mesmo, a gente não sabe, são mistérios do mundo afetivo.

V – Acho o Sagarana um “filho” igual aos outros, apesar de ser o mais velho.

VI – Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim, e grego (mas com dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. MAS, TUDO MAL. Eu acho que estudar o espírito e o mecanismo das outras línguas ajuda muito a compreensão mais aprofundada do idioma nacional. Principalmente, porém, estudo-as por divertimento, gôsto, distração.

VII – Sagarana e Corpo de Baile já estão editados também em Portugal. Nos Estados Unidos, já saíram Sagarana e Grande Sertão: Veredas (The Devil to Play in the Backlands), e traduzem agora o Primeiras Estórias. Na França, já se publicaram Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas (Diadorim) e está sendo traduzido o Primeiras Estórias. Na Alemanha saíram já o Grande Sertão: Veredas e o Corpo de Baile (Corps de Ballet), a tradução do Primeiras Estórias já está pronta, traduzem agora o Sagarana. Na Itália, saíram o Corpo de Baile (Corpo di Ballo) e o Sagarana, traduzem agora o Grande Sertão: Veredas e a tradução espanhola do Primeiras Estórias já está pronta. No Canadá saíram os mesmos que nos Estados Unidos. O Sagarana está sendo traduzido no Japão. O Grande Sertão: Veredas está sendo traduzido: na Suécia, na Iugoslávia, na Tcheco-Eslováquia; sua publicação está em estudos na Hungria, Romênia, Holanda, etc.

VIII – Seu Colégio é ótimo, e sei que aí procuram sempre melhorar o nível cultural das alunas. Como poderia eu, afastado do vivo dêsses problemas, dar sugestões nesse sentido? Diria apenas a vocês que procurem ler os livros. Vocês mesmas; os livros, em si, é que são importantes. Os autores, não. O autor é uma sombra, a serviço de coisas mais altas, que às vêzes êle nem entende. O autor é sempre “bananeira que já deu cacho”.

IX – A juventude? É uma maravilha. A juventude é quase tudo. É a humanidade e a esperança, recomeçando.

X – A melhor colaboração que a juventude pode dar para melhorar a situação da sociedade? A meu ver, é estudar, aprender, aplicar-se à disciplina e à paciência; e, principalmente, não pensar, por enquanto, em querer melhorar a situação atual da sociedade. Mas procurar, apenas, melhorar a si mesma.

Aqui estão, meu Bem, as respostas – espero que sirvam e que Você e suas Coleguinhas tirem boa nota. Beijo cada uma.

Lembranças afetuosas a Enny e Evaristo.

Com outro beijo, para Você, do

(Joãozito)