Laqueadura forçada retoma higienização contra negras e pobres

A laqueadura forçada de Janaína Aparecida Quirino, mulher em situação de rua do município de Mococa (SP) de apenas 36 anos, foi recebida com indignação entre profissionais de saúde pública. Ela passou pelo procedimento cirúrgico após um pedido assinado pelo promotor Frederico Liserre Barruffini. O procedimento foi feito contra a vontade da Janaína.

cena do filme renascimento do parto

Por meio de uma ação civil pública, Barruffini argumentou que a mulher, mãe de cinco filhos, apresentava "grave quadro de dependência química, sendo usuária contumaz de álcool e outras substâncias entorpecentes”.

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) anulou a decisão sobre a esterilização coercitiva de Janaína no dia 23 de maio. No entanto, ela já havia passado pelo procedimento três meses antes, no dia 14 de fevereiro, depois de uma decisão liminar proferida pelo juiz Djalma Moreira Gomes Júnior, da comarca de Mococa. A laqueadura é irreversível.

Violação de direitos

A médica de família Thais Machado Dias, do Coletivo Feminista de Saúde e Sexualidade, classificou o ato como uma mutilação que abre precedente para eugenia — teoria de "higienização" por meio do controle da reprodução usada, por exemplo, pelo regime da Alemanha nazista.

"Fazer com que as pessoas que não se adequam, as pessoas que não cabem numa dita norma social, não se reproduzam é um processo eugênico que se repetiu em vários momentos da história. Se a gente trabalha com laqueadura involuntária para pobres, para mulheres negras e usuários de substâncias, vamos retroceder anos de história e de direitos humanos", criticou a médica.

O caso veio à tona após a publicação de uma coluna de Oscar Vilhena Vieira na Folha de S.Paulo no último sábado (9).

"Estamos diante de uma aberração teratológica inusitada", lê-se no voto do desembargador Leonel Costa, do TJSP.

Outros métodos

Thaís Machado Dias pesquisou as condutas de pré-natal em mulheres usuárias de substância psicoativa em seu mestrado pela Universidade Estadual de Campinas. Ela defende políticas públicas de acesso a métodos contraceptivos para populações em vulnerabilidade, inclusive à laqueadura, desde que com o total consentimento da paciente.

A médica criticou o procedimento da esterilização permanente com base em uma condição pessoal transitória, ou seja, o uso de drogas ou a situação de rua.

O pedido do MP afirma que Janaína aparentou "desejo espontâneo e convicto" em realizar a cirurgia "como forma de evitar outra gravidez". No entanto, o Laudo de Psicologia também apontou manifestações contrárias dela à realização da cirurgia.

Janaína não queria a laqueadura e isso é evidenciado no ofício da Assistência Social de Mococa que indicou "desinteresse em passar pelo procedimento".

Como ela não compareceu voluntariamente à consulta ginecológica agendada, a sentença do juiz intimou a Prefeitura de Mococa a cumprir a liminar, sob pena de multa diária de até R$ 100 mil. Janaina não foi consultada pessoalmente nem pelo procurador, nem pelo juiz responsáveis pela ordem de realização da cirurgia.

"A ambivalência em relação ao planejamento reprodutivo é comum a todas as mulheres. Quantas de nós temos o desejo de ter filhos, depois a gente fala 'ah, seria melhor não ter', 'quero ter mais um', 'quero ser mãe' ou 'não quero ser mãe'. Eu acho que a ambivalência em relação à maternidade é própria do nosso momento histórico, inclusive. Antigamente, as mulheres não tinham essa escolha", afirmou Dias.

O Programa De Braços Abertos da Prefeitura de São Paulo, por exemplo, passou a oferecer o implanon (implante contraceptivo subdérmico) para as mulheres que frequentavam a chamada Cracolândia, cena pública de uso do crack. A médica de família reitera que, mesmo os procedimentos reversíveis — como o DIU e anticoncepcionais injetáveis — devem ser realizados sem nenhuma dúvida por parte da mulher.

Ato ilegal

A médica sanitarista Karina Calife, professora da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, ressaltou que nenhum médico pode fazer qualquer procedimento sem a concordância da paciente, a não ser que em risco de vida e que ela estivesse sem condições de opinar — o que, para ela, não foi o caso de Janaína.

Ela lembrou que o procedimento feriu a Lei nº 9.263/96, sobre planejamento familiar, que reitera que todos os casos de laqueadura devem ser feitos voluntariamente.

"A lei interferindo no corpo, na saúde e na decisão das mulheres e ainda dizendo que é em nome da saúde dessa pessoa, isso não é verdadeiro. Primeiro, porque não há nenhum estudo que mostre que uma esterilização ou uma laqueadura vai melhorar a saúde da mulher, pelo contrário. Isso é um movimento quase policialesco, fascista", disse.

Calife comparou o repúdio à laqueadura forçada com a necessidade de descriminalização do aborto: em ambos os casos, o argumento é a autonomia da mulher e o direito de decisão sobre seus corpos.

Já Thais Machado Dias afirmou que o ato arbitrário do Poder Judiciário reforçou a esterilização compulsória como um mecanismo de controle da pobreza, utilizado largamente no país até os anos 1990.

"É muito perverso relacionar a maternidade com a pobreza. A maternidade que empobrece [economicamente] é a maternidade desamparada, com uma família ou um companheiro que não ampara, o Estado que não oferece creches. Uma mulher que precisa parar trabalhar para cuidar de uma criança porque não consegue vaga na creche, essa mulher que empobrece na maternidade. Mas aí é uma violência patrimonial do Estado", afirma.

Dias afirmou ainda que "não tem cabimento" qualquer pesquisa que relacione direitos reprodutivos e diminuição da pobreza e criminalidade.

Denúncia

A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), em nota, afirmou que a história de Janaína não é atípica e condenou a atuação "arbitrária e ilegal" do representante do Ministério Público.

Segundo a ABJD, o promotor "utilizou-se de um instrumento jurídico previsto para a defesa de interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos, para submeter uma mulher à esterilização contra a sua vontade, por motivos eugênicos, enunciados desde a petição inicial".

"O quadro se agrava quando, ao analisar a ação judicial, constata-se que à Janaína, referida desde a petição inicial como uma pessoa sem condições de discernimento, possivelmente incapaz, não foi garantido o mínimo direito à defesa, nem sequer a ser ouvida nos autos. Em suma, foi tratada como um objeto, uma coisa sobre a qual recaiu a tutela jurisdicional", afirma a entidade no texto.

A associação informou que vai entrar com representações no Conselho Nacional de Justiça e no Conselho Nacional do Ministério Público para as responsabilidades neste caso sejam apuradas.