Taxar mais ricos seria melhor para a economia do Brasil
O pesquisador irlandês Marc Morgan Milá integra o World Inequality Lab [Laboratório das Desigualdades Mundiais, em inglês] da Paris School of Economics (PSE). O grupo é coordenado por Thomas Piketty, renomado economista francês que ficou conhecido pela obra O capital no século do XXI.
Por Rute Pina
Publicado 08/06/2018 11:32
No grupo, Morgan pesquisa a distribuição de renda do ponto de vista histórico e social, e faz uma análise das desigualdades brasileiras.
Ele esteve em São Paulo (SP) no início de junho para participar do Fórum Internacional Tributário (FIT) e concedeu entrevista ao Brasil de Fato. Durante a conversa, o economista afirmou que a distribuição tributária é injusta e ineficiente no Brasil.
No país, a alíquota máxima do imposto sobre herança é de 8% –taxa que pode variar entre 25% e 40% em países como EUA e Japão– e há total isenção de impostos sobre lucros e dividendos.
Morgan diz ainda que governos progressistas na América Latina, mesmo tendo criado programas inovadores como o Bolsa Família, foram pouco ambiciosos nas metas de redução da pobreza; e defende a criação de um sistema tributário progressivo que incentive, por exemplo, as empresas a fazerem investimentos na qualificação dos trabalhadores. O pesquisador ponderou ainda o porquê da concentração de renda ser considerada uma ameaça para a democracia.
Confira a entrevista abaixo.
Brasil de Fato – Em um período de 15 anos no Brasil, houve a criação de políticas públicas como o Bolsa Família, que ajudaram a reduzir a pobreza. Mas, em sua pesquisa, você mostrou que isso não alterou a desigualdade no país. O que aconteceu, já que existe uma relação entre esses dois conceitos?
Marc Morgan Milá – É uma boa pergunta, porque parece que há muitos equívocos entre o que é pobreza e desigualdade. Meu trabalho também olhou para o que aconteceu após programas de transferência de renda, especialmente o Bolsa Família, que teve muita atenção na mídia internacional.
O programa afetou milhões de famílias brasileiras, que têm que seguir condicionantes escolares e de saúde; é muito inovador. Mas, se a gente assume, o que é muito provável, que todos os beneficiários do Bolsa Família estão nos 15% mais pobres da população e adiciona o orçamento do programa à renda deste grupo, existe uma mudança [estrutural] muito pequena.
Mesmo que o programa tenha sido muito bem-sucedido em um país que esteve na pobreza absoluta por anos, acho que é essencial distinguir a pobreza absoluta da pobreza relativa. E esta última tem mais a ver com a desigualdade.
Do modo como é medida a pobreza absoluta, você define uma linha em que todos que estão abaixo dela serão considerados pobres. Essa linha basicamente é definida pelo valor de uma cesta básica, que supre as necessidades nutricionais essenciais. Então, as condições para atingir isso não serão muito custosas.
Nos países em desenvolvimento, essa linha é pouco ambiciosa. O Bolsa Família custou apenas 0,5% do PIB. Então, ele teve êxito porque a linha era tão baixa que o orçamento para trazer as pessoas acima dela também era relativamente pequeno.
Eu acredito que a gente deveria se importar também com a pobreza relativa. Em alguns países europeus, por exemplo, ela é definida pelas pessoas estão vivendo abaixo da renda média do país. E, se você leva isso em conta no Brasil nos últimos 15 anos, isso mudou muito pouco.
Podemos sentir que é um paradoxo: por que a pobreza absoluta caiu tanto enquanto a pobreza relativa permaneceu quase estável? A pobreza relativa reflete as desigualdades, depende das distâncias [de renda] entre diferentes pessoas. Se os pobres estão melhorando, mas, ao mesmo tempo, as pessoas no topo [da pirâmide] também estão crescendo mais, então a pobreza relativa vai continuar estável. Isso eu acho que é crucial.
Você defende que a desigualdade é uma escolha política. Por quê?
Sim, eu acho que é uma escolha política só focar em tirar as pessoas da pobreza extrema e da pobreza absoluta –pode-se ser um pouco mais ambicioso nos objetivos e isso é algo que podemos criticar.
Acho importante ressaltar que os governos [petistas] não foram incoerentes com sua mensagem, porque eles realmente focaram nos mais pobres e tiveram êxito em tirar muitas pessoas da pobreza. Mas, em termos de pobreza relativa, acho que é uma escolha dizer em qual grupo você vai dedicar políticas públicas. Então, é por isso que eu acho que é uma escolha política.
Há uma semana, tivemos uma greve nacional de caminhoneiros e petroleiros. Os trabalhadores queriam que o governo eliminasse os impostos sobre o diesel. E isso trouxe novamente a narrativa de que somos o país que paga os maiores impostos do mundo –argumento que levou a classe média a protestar em 2013. Mas isso é um fato quando comparado a outros países do mundo? Por quê?
A razão para taxar o diesel, em muitos países, é para desencorajar o consumo por razões ambientais. Mas, geralmente, quando se aplica este tipo de impostos, precisa ter muitos investimentos em fontes alternativas de energia.
Eu ouço muito sobre os altos impostos no Brasil, mas há um nível baixo de serviços públicos que tende a atingir muito quem está no meio –que não é necessariamente a classe média, porque a classe média no Brasil está muito distante do topo. Na minha pesquisa, eu mostro que este meio da pirâmide ficou estagnado nos últimos 15 anos.
Isso se transforma em uma interessante questão política e econômica, não somente para o Brasil, mas para muitos países latino-americanos que tiveram governos progressistas que focaram na redução da pobreza.
No Brasil, a distribuição dos impostos não é justa nem eficiente. E a classe média vai às ruas para protestar porque sente que há prioridade para a base e muitos privilégios para o topo. Eu acho que é uma característica de muitos países da América Latina, onde o meio [da pirâmide] se sente esquecido ou isolado.
A reforma fiscal, neste contexto, é crucial para transferir o ônus dos impostos para as pessoas que mais têm condições de pagá-los.
Você poderia dar exemplos do que seriam sistemas justos de tributação?
O imposto sobre a renda da pessoa física até pode ser entendido como um imposto progressivo, porque ele é pago por cerca de 15% das famílias de maior renda. Mas, dentro desses 15%, ele é muito regressivo. A carga tributária média paga pelos muito ricos, na verdade, é menor do que a daqueles mais abaixo na distribuição de renda.
Eu acho que seria necessário ter uma estrutura mais progressiva, o que significa eliminar as isenções regressivas, que existem para muitos tipos de rendimento. Nem todos os rendimentos recebem o mesmo tratamento. Então há o que chamamos de iniquidades horizontais. Tipos diferentes de rendimento recebem tratamentos diferentes, e isso é um problema.
Mas também há iniquidades verticais: quanto maior a sua renda, no sistema brasileiro, menos impostos você paga.
Uma reforma que eu acredito que seria útil de se pensar seria eliminar essas isenções regressivas e incluir todos os rendimentos da pessoa física nessa tabela de imposto progressivo — como já existe com os rendimentos advindos do trabalho. E criar mais algumas faixas para poder aumentar a alíquota superior e torná-la um pouco mais progressiva.
Também seria útil pensar na contribuição para a seguridade social, pois nem isso é muito progressivo. Existe um teto de contribuição para a seguridade social pelos salários mais altos, o que a torna de certa forma regressiva.
Acredito que a questão para se chegar à eficiência e equidade seria criar um imposto de renda amplo, onde se incluem todas as rendas incluídas, respeitando uma tabela progressiva com mais alíquotas, para tornar o sistema mas simples, mais fácil de entender e mais progressivo.
E qual é o panorama da tributação sobre lucro e dividendos?
No momento, dividendos e lucros distribuídos –tudo que é distribuído para as empresas em forma de lucros e dividendos– é isento. Isso é uma isenção regressiva importante. A ideia seria colocar também lucros e dividendos na tabela do imposto sobre a renda da pessoa física, para que haja tributação progressiva para todas as fontes de renda. Isso poderia ser feito imediatamente.
Com relação a outros lucros não distribuídos ou lucros empresariais em geral, pelo IRPJ [Imposto de Renda Pessoa Jurídica] no Brasil, também é possível olhar para isso. Existem especialistas brasileiros que sugerem que ele poderia ser incorporado à estrutura do imposto de renda de pessoa física. Mas é complexo, porque existem três regimes diferentes: Simples, Lucro Presumido e [Lucro] Real, que são diferentes dependendo do tamanho da empresa. Mas isso poderia ser um pouco simplificado, inclusive, incluído em uma tabela progressiva, com alíquotas diferentes dependendo do tamanho do lucro da empresa.
Acredito que um sistema amplo de imposto sobre a renda da pessoa física, que incluiria tudo, até contribuições sociais, é uma ideia interessante de ser explorada.
Austeridade e tributação alta para os mais pobres faz com que eles parem de consumir, o que prejudica a economia. Em contrapartida, qual seria o impacto para a economia da taxação das grandes fortunas?
As pessoas de renda mais baixa pagam muitos impostos, principalmente sobre o consumo, como energia, alimentação. E aí estipulou-se um teto para os gastos [públicos por 20 anos]. No fim das contas, acredito que isso vai piorar a situação.
Eu defendo que a transferência do encargo tributário para pessoas que têm maior renda é essencial, porque, a propensão ao consumo é muito maior para as pessoas de renda mais baixa. Com uma redução dos encargos, eles tendem mais a consumir, e isso seria melhor para a economia do que os ricos, que poupam muito mais.
Se você taxar os ricos, o consumo deles não será tão afetado quanto a da base da pirâmide, se ela for taxada. No fim das contas, acaba sendo mais eficiente do ponto de vista econômico transferir a incidência de impostos para aqueles com renda mais alta, no geral.
E também pensar na criação de um sistema tributário, ao se olhar para corporações e empresas, que incentive o gasto produtivo por elas, em vez de simplesmente pela distribuição de lucros e dividendos. Pensar em um sistema tributário que recompense, possivelmente por meio de créditos tributários, os lucros que são reinvestidos em qualificação dos trabalhadores, na compra de maquinário e tecnologia ou em pesquisa e desenvolvimento, mais do que apenas a distribuição de lucros e dividendos –o que acaba virando uma forma de rentismo.
Então é possível pensar na elaboração de políticas tributárias que incentivem o bom comportamento, digamos, que é o que induz o desenvolvimento, o crescimento e o investimento. É um equilíbrio difícil de conseguir, mas acredito que seja possível.
Como estamos em um ano de eleição presidencial, a última pergunta é: como a concentração da riqueza prejudica a democracia?
Quando a riqueza se concentra na mão de poucos, há dois caminhos diferentes que impactam na qualidade da democracia. Por um lado, se há grande concentração de renda ou riqueza, existe um poder instrumental destas pessoas. É mais fácil elas influenciarem políticos, seja direta ou indiretamente, por meio de diversos tipos de organizações, federações, relações partidárias ou propriedade de mídia.
Existe também outro lado; quando se concentra tanta renda e riqueza e isso se torna tão extremo que, no fim das contas, eles podem decidir o que acontece na economia. Se [essas pessoas que concentram renda] não gostarem de uma decisão do governo, elas podem decidir não investir, ou dependendo do que fizerem com esses recursos, podem destruir completamente a economia ou estagná-la.
Eles têm esse poder de chantagear economicamente o processo político, que pode distorcer completamente o processo econômico e político. Então, a relação entre desigualdade de renda ou concentração de riqueza na democracia, em um sistema parlamentarista e em uma economia de mercado privado, é de extrema importância pelo menos regulá-lo, para que ele não destrua todo o processo democrático.