Na Espanha bons ventos, na Itália mau casamento
Em um momento em que se fala muito da crise da social-democracia, é bizarro que não se fale que a crise é mais ampla, e inclui também a outra grande família política europeia do pós-guerra: a democracia-cristã
Por Rui Tavares *
Publicado 07/06/2018 16:31
Eis algo de que pouca gente fala: passados dez anos desde o início da crise, a maior família política do continente europeu — o Partido Popular Europeu, tem apenas um governo no sul da União Europeia, o Chipre. Em todos os outros países que regularmente comparecem nas reuniões no Sul da UE, incluindo a França, governam partidos ou coligações que não pertencem ao PPE. Na semana passada o Partido dos Socialistas Europeus perdeu o governo da Itália mas ganhou o governo da Espanha, além de manter Portugal e Malta: continua com três de sete. Na Itália passou a governar uma coligação de dois grupos eurocéticos. Na França governa o partido La République en Marche, de Emmanuel Macron, pró-europeu que ainda não tem família política europeia. E na Grécia governa o Syriza, de Alexis Tsipras, que pertence ao Partido da Esquerda Europeia.
Em um momento em que se fala muito da crise da social-democracia, é bizarro que não se diga que a crise é mais ampla, e inclui também a outra grande família política europeia do pós-guerra: a democracia-cristã, que o PPE ainda diz representar. Quem quiser entender o populismo na Europa tem que começar olhando para os erros cometidos pelos partidos dessas duas famílias políticas. A extrema-direita europeia não cresce sozinha: para isso precisou da conivência por ação ou omissão de partidos do centro-direita e da direita, desde o FIDESZ húngaro que foi do centro liberal para a extrema-direita nacionalista, até aos Republicanos franceses que desde Sarkozy copiam as obsessões da Frente Nacional (até que hoje se tornaram praticamente indistinguíveis e irrelevantes), passando pelo Forza Italia de Berlusconi, que tendo sido precursor de toda essa lista, acabou sendo comido pela Liga de Matteo Salvini.
No meio disso tudo, as notícias que vêm da Espanha são boas para os nossos vizinhos e boas também para Portugal e para a Europa. O Partido Popular espanhol converteu-se desde há mais de uma década em uma máquina de dilacerar o seu próprio país, conquistando os votos anti-catalães no resto da Espanha com uma retórica (e uma prática) que inflama o independentismo catalão e impossibilita o encontro de uma solução federalista para a Espanha ou gradualista para a auto-determinação das suas nações históricas. A chegada do PSOE ao poder, com o apoio do Podemos, pode não chegar a tempo de resolver estas tensões; mas pelo menos talvez haja uma hipótese de diálogo que com Rajoy não havia. Para Portugal, a “geringonça” espanhola chega com dois anos de atraso, mas mesmo assim vai ser importante contar com mais um governo que apoie posições anti-austeridade no próximo Conselho Europeu no final de junho.
Na Itália será preciso procurar a solução para a subida ao poder da extrema-direita da Liga e dos populistas do Movimento 5 Estrelas nos erros que cometeu Matteo Renzi, ex-líder do Partido Democrático que continua com influência nos bastidores. Não há dúvida de que o 5 Estrelas é um partido bizarro onde há de tudo, desde acadêmicos de qualidade que quiseram ter atividade política fora dos partidos tradicionais até excêntricos de todas as espécies (a nova ministra da saúde, Giulia Grillo — sem parentesco com Beppe Grillo — vem do movimento anti-vacinas, o que, em uma altura em que há uma epidemia de sarampo no país, é pura insanidade). O caráter errante do 5 Estrelas está claro em suas alianças europeias, que oscilam da eurofobia ao federalismo europeu: no Parlamento Europeu fazem parte do mesmo grupo de Nigel Farage, mas há pouco tempo Beppe Grillo forçou com sucesso uma votação para pedir a adesão (que foi depois recusada) ao grupo liberal de Guy Verhofstadt.
Foi a recusa de Matteo Renzi em negociar com o 5 Estrelas que os atirou para os braços da Liga xenófoba e pró-Putin [apesar de não terem saído da OTAN], em um casamento que é sobretudo ruim para a Itália. Há quem espere, como há sempre quem espere, que o novo governo italiano seja o toque de finados do euro. Mas mais de 75% dos italianos são a favor da continuidade do seu país na moeda da UE, número que é até menos interessante do que os dois terços ou mais que são a favor da entrada no euro (leram bem, da entrada) em países como a Bulgária, a Romênia e, mais surpreendente ainda, a Hungria. Com as guerras comerciais que aí vêm, não se admirem se as notícias sobre o euro na próxima década vierem a ser mais sobre quem quer entrar do que sobre quem quer sair. Leram aqui primeiro.