Racismo no futebol: quais são as soluções?
O racismo, o preconceito e a homofobia ainda são alguns dos problemas mais graves da nossa sociedade. E esses problemas também se fazem presentes no esporte. É sobre esse e outros assuntos que Luiz Ferreira conversou com o diretor executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Marcelo Carvalho. Confira a entrevista.
Publicado 04/06/2018 12:25
Brasil de Fato: Marcelo Carvalho, nós temos acompanhado o aumento do número de cacos de racismo, principalmente nos jogos da Copa da Libertadores da América, você pode fazer um panorama para a gente?
Marcelo Carvalho: Os casos de racismo na Libertadores vêm aumentando significativamente. Por exemplo, nos nossos números, nós temos monitorado 22 casos de racismo em torneios da CONMEBOL (Confederação Sul-Americana de Futebol) desde 2014 e 8 desses casos aconteceram em 2018. Já são 8 denúncias de racismo em competições da CONMEBOL só neste ano.
Na sua opinião, por que isso acontece? Por que as pessoas ainda são racistas?
Sem falar na questão do racismo no futebol, no Brasil, a gente ainda trata a questão do racismo de uma forma "não-concreta". A gente fala de racismo, mas não vemos campanhas, ações por parte do governo de combate ao racismo e de penalização. Muitos casos que a gente têm no Brasil caem como injúria racial que é um crime que, diferente do racismo que é inafiançável, a injúria não é. A maioria dos casos caem nessa esfera e acaba que não temos ninguém preso por racismo.Temos acompanhando um pouco os casos da América do Sul, a questão do racismo não é tratada da maneira devida. A gente não tem, falando de futebol agora, punições para atos racistas no continente. Dos 22 casos, tivemos punição em apenas 3 deles. É muito pouco. E nós tivemos diversos países sul-americanos punidos pela FIFA (Federação Internacional de Futebol) por gritos homofóbicos e nenhuma ação de combate ou prevenção por parte da CONMEBOL . Ao contrário, ela foi à FIFA pedir para que as confederações não fossem punidas por que a homofobia é uma questão cultural de cada país. O que eu vejo é que não existe uma vontade política das entidades de combater o racismo no futebol.
Qual seria a solução para acabar ou diminuir o racismo dentro dos estádios e das arenas? Tem que punir o clube? Tem que proibir a torcida de entrar no estádio? O que fazer?
Já temos algumas punições já aplicadas. Elas equivalem a uma multa que não passa de R$ 20 mil aos clubes punidos. É o mesmo que cobrar da gente R$ 20. Punições desse tipo não funcionaram. A CONMENBOL precisa ter atitudes mais fortes. Ela pode, por exemplo, fechar uma parte do estádio de onde veio o canto ou o grito para punir o clube de uma forma maior. Pode-se pensar em jogos com portões fechados, perda de mando de campo ou até exclusão do torneio. Mas tem que ser algo pesado para que os clubes comecem a pensar em formas de combate e prevenção. Desta forma, cada clube começa a trabalhar com seu torcedor para que isso não se repita. Talvez assim as coisas melhorem. Enquanto as multas forem aplicadas com valores pequenos, os cânticos vão continuar existindo.
Sabemos que o trabalho do Observatório está mais pautado naquilo que acontece aqui no Brasil, mas é impossível não pensar na Copa do Mundo. O que é que podemos esperar do mundial da Rússia, do país, que é conhecido pelos atos e cânticos racistas da sua torcida e vai receber países como Brasil, Uruguai, Arábia Saudita, Egito, França e todos as nações africanas?
Aproveitando o gancho, no último amistoso da França contra a Rússia nós tivemos cantos racistas contra o Pogba (volante da Seleção Francesa) e que levou a FIFA a punir a Federação Russa nesse caso, mas num valor pequeno. Diversas entidades que monitoram o racismo na Europa por causa da Copa já apontaram para o grande número de casos de racismo na Rússia. Já se falou muito nessa questão e todas as pessoas que estão ligadas à organização da Copa do Mundo na Rússia disseram que o país iria tomar atitudes de prevenção antes do Mundial. Só que os casos continuam se repetindo. E a gente ouve das pessoas do Comitê Organizador da Copa que são "casos isolados". Não são casos isolados. Não podemos dizer isso. A gente tem um grande temor de que os casos de racismo na Rússia possam aumentar. E muitos desses casos podem nem vir ao nosso conhecimento envolvendo torcedores nas arquibancadas e fora dos estádios. Mas eles também podem atingir os atletas dentro de campo. A gente monitora os atletas brasileiros que jogam na Rússia. E o número de casos de racismo contra jogadores brasileiros no exterior é muito grande. Principalmente no Leste Europeu.
O próprio site do Itamaraty recomenda às pessoas que vão viajar para a Rússia que tomem cuidado com a xenofobia, a homofobia e o racismo do país. E a partida de abertura do mundial será disputada entre Rússia e Arábia Saudita…
A FIFA não combate o problema como deveria. Ela tinha criado um comitê de combate ao racismo. E esse comitê foi desfeito às vésperas da Copa do Mundo porque a entidade disse que os casos de racismo tinham diminuído e não havia mais necessidade da manutenção desse comitê. Diversos jogadores como o Yaya Touré se manifestaram contra a atitude da FIFA. A preocupação maior é essa. As entidades que deveriam combater o problema não trabalham da maneira que deveriam trabalhar. A gente também deve lembrar que a FIFA trabalhou com monitores em jogos das Eliminatórias da Copa do Mundo que enviavam relatórios sobre casos de racismo e homofobia durante as partidas. E as Confederações eram punidas. A FIFA até trabalhou nesse sentido, mas não surtiu o efeito desejado. Não tivemos uma diminuição dos casos de racismo. Eles se repetem todo dia.
Toda questão envolvendo todos os tipos de preconceito são classificados como "mimimi" nas redes sociais. O que podemos falar pras pessoas que pensam desse jeito?
É muito difícil. A gente trabalha no Observatório e vê comentários dizendo "pô, lá vem vocês de novo falar de coisas que não existem mais", ou "lá vem vocês de novo com esse 'mimimi', com esse vitimismo". Num país que mata na sua grande maioria jovens negros, que tem uma desigualdade social muito grande e que a grande maioria das pessoas que estão na parte de baixo da pirâmide são negras, você não pode dizer que é vitimismo. Desde a época da escravidão, o dia 14 de maio permanece. Por que o dia 14 de maio? Porque no dia 13 de maio de 1888 foi assinada a Abolição da Escravatura, mas nada foi feito para que os negros libertos pudessem se inserir na sociedade. Eles não podiam ter terra, não podiam estudar e acabaram ficando à margem da sociedade. E logo depois disso você teve o processo de "branqueamento" da população negra brasileira. Os portos foram abertos para os imigrantes alemães e italianos para que a população brasileira "branqueasse" e todas essas pessoas tiveram mais acesso às coisas básicas do que a população negra. Esse problema vem desde o dia 14 de maio de 1888. A gente teve mudanças sim. As cotas inseriram muitos negros nas universidades e no serviço público. Mas o problema racial do Brasil continua. A gente teve 350 anos de escravidão e temos 130 anos pós-escravidão e tudo aquilo que foi utilizado para inferiorizar o negro e que a sociedade aceitasse que ele fosse tratado como animal continua na cabeça das pessoas. A grande maioria das pessoas ainda acredita que o negro é um ser inferior. E aí temos diversos problemas da sociedade na questão racial. A gente continua discutindo o racismo, faz evento, faz debate e ele persiste. Temos a lei para punir o racismo e ninguém é punido quando sabemos que existem diversos casos de racismo que acontecem diariamente no Brasil. Enquanto os problemas não forem encarados como devem ser encarados tudo vai continuar assim. O Brasil deve se assumir um país racista e a partir daí trabalhar pela inserção do negro na sociedade e pela igualdade de condições. E quando a gente fala de igualdade não é aquele lema da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), "Somos todos iguais". O negro não é igual, o italiano não é igual, todo povo tem as suas peculiaridades. E a questão do negro é muito mais séria por que tudo que envolve o negro tem uma carga muito grande de preconceito. A gente vê na religião, nos costumes, tudo o que foi trazido da África foi embranquecido. E as pessoas ainda acreditam nessa inferioridade das pessoas negras.
Voltando para o futebol, uma das histórias mais famosas foi a tentativa de embranquecimento da seleção brasileira após o vice-campeonato mundial em 1950. Foi-se recomendado que o Vicente Feola escalasse uma seleção mais branca possível em 1958 e, graças a deus, ele não deu ouvidos a isso. E muita gente pensa assim não é, Marcelo?
E nesse episódio, a CBD (antiga Confederação Brasileira de Desportos) contratou um psicólogo que fez um teste de QI no Garrincha que deu um resultado muito baixo. Esse psicólogo aconselhou a comissão técnica a nem levar o Garrincha e nem outros jogadores negros pra Copa do Mundo de 1958. Ele e o Pelé não começaram como titulares e depois conquistaram o Mundial. Vamos lembrar do caso do goleiro Barbosa que morreu injustiçado depois da tentativa se encontrar um culpado pelo vice-campeonato da Copa de 1950. Vamos voltar a 1921 por exemplo, quando o presidente Epitácio Pessoa baixa uma determinação para que atletas negros não fossem convocados porque ele queria que o mundo enxergasse o Brasil mais claro. A gente tem inúmeras situações de racismo e preconceito envolvendo a seleção brasileira e a gente também gostaria de lembrar que a seleção nunca teve um técnico negro. Não é vitimismo. Quando a gente coloca a ausência de treinadores negros nos clubes e nas seleções, sempre aparece alguém pra perguntar qual é a importância da cor da pele para se ter técnico da seleção e lembrar que o que vale é a competência. Daí vale lembrar que a gente já teve vários treinadores que não tinham competência para comandar a seleção e o racismo que mais existe no país é o institucional. Não vemos negros no poder, não vemos negros em cargos de visibilidade, no esporte não vemos negros sendo técnicos ou presidentes de clube. O grande problema não são os casos de racismo. A grande questão que precisamos trabalhar no Brasil é o racismo institucional. É a falta do lugar do negro. E quando ele chega num lugar de destaque, seu talento, a sua capacidade é sempre colocada em dúvida. Dentro do futebol a gente pode ver isso. Temos um grande número de jogadores atuando, mas fora das quatro linhas a gente tem uma pequena parcela desses negros trabalhando em cargos de comando nos clubes e na seleção. Temos é que lutar contra esse racismo institucional que existe no Brasil.