1968, o ano em que os estudantes ficaram cara a cara com a utopia
Poucos anos traduziram tão fielmente a dramática tensão entre o “o velho” e “o novo” como 1968. “As pessoas se deram conta de que estavam vivas, de que não precisavam mais se conformar com os papéis predeterminados que lhes queriam impor”, comentou o dramaturgo José Celso Martinez Correa, do Teatro Oficina. “Foi quando as pessoas perceberam que poderiam sair desses túmulos para viver em liberdade.”
Por André Cintra e Raisa Marques*
Publicado 22/05/2018 14:54 | Editado 25/10/2020 17:37
Houve uma explosão de protestos em todos os cantos do mundo – no Brasil e nos Estados Unidos, na Europa Ocidental e no Leste Europeu, no Japão, na Nigéria e no México. Para o jornalista e escritor Zuenir Ventura, 1968 foi o prenúncio da globalização, “o ano que não terminou”. Mark Kurlansky – que, como Ventura, se aventurou a escrever um livro sobre o tema – foi igualmente taxativo: “Nunca houve um ano como 1968 e é improvável que volte a haver”.
Um período histórico de poucos meses produziu um conjunto de transformações estéticas, comportamentais e artísticas que, até hoje, são incontáveis. Para os estudantes, era o auge. “Não surpreende que a década de 60 tenha se tornado a década da agitação estudantil”, resume o historiador anglo-egípcio Eric Hobsbawm (1917-2012) em A Era dos Extremos. “O efeito mais imediato da rebelião estudantil foi uma onda de greves operárias por maiores salários e melhores condições de trabalho.”
No entanto, a luta por uma nova sociedade não resultou apenas em vitórias. A democracia saiu ferida de 1968 – nenhum dos povos que foram às ruas conseguiu derrubar efetivamente o status quo, a sociedade de consumo, a velha ordem. Ao contrário: na maioria dos países em ebulição, o autoritarismo ganhou impulso. Segundo Olgária Mattos, “o desejo revolucionário era maior que a situação revolucionária”.
O “1968 brasileiro” foi também de utopias e frustrações. O presidente da República era o “linha-dura” Arthur da Costa e Silva, que tinha assumido o poder em 15 de março de 1967, em substituição a Castello Branco. Sua promessa era uma “política de alívio”. No discurso de posse, falava em “governar para o povo”, “multiplicar as oportunidades de educação” e “reatar os entendimentos com a classe trabalhadora”.
Nem o povo nem os movimentos sociais lhe deram ouvidos – e fizeram bem. Foi sob o governo Costa e Silva que o Brasil virou uma ilha de trevas, cercada de arbitrariedades e terror por todos os lados. Nos primeiros meses do novo governo, o movimento estudantil, ainda que clandestino e fragilizado, conseguiu realizar encontros, debates e manifestações. Os universitários promoveram o 29º Congresso da UNE, renovando sua direção e elegendo Luís Travassos para presidente.
Já a Ubes conseguiu finalmente realizar mais um Congresso Nacional de Estudantes Secundários, após três anos de espera. Os secundaristas, na realidade, já davam algum sinal de fortalecimento antes de 1968. Protestos contra o ensino imposto pelos militares e o acordo MEC-Usaid pipocavam em vários estados do Brasil, como a Bahia. “Tinham, assim, manifestações com 10 mil, 15 mil pessoas. Tinha manifestação de manhã, de tarde e de noite”, lembra o ex-ministro da Cultura Juca Ferreira.
“O ano de 1967 foi um ano importantíssimo para o movimento estudantil em nível nacional”, afirmou o jornalista e ex-líder estudantil Franklin Martins ao projeto Memória do Movimento Estudantil (MME). Para ele, “o movimento em 1967 é um movimento de ganhar raiz, ganhar profundidade e maturidade para poder decolar. Quando chega 1968, o movimento estudantil – não sabíamos disso, estou falando retrospectivamente – está pronto para se tornar um grande movimento de massas, de peso, de influência nacional, e de colocar em xeque aquela ditadura que estava ali. Não era capaz de substituí-la, mas ao menos de mostrar que aquela ditadura não se sustentava mais. E foi o que ele fez”.
Ainda assim, o período pré-1968 teve uma série de debilidades para o movimento. “De setembro de 1966 até meados de 1968, as lutas estudantis, a despeito de seu prosseguimento, não assumiram mais caráter nacional”, escreve Artur Poerner no livro O Poder Jovem. De acordo com o escritor, outra novidade das manifestações, sobretudo as passeatas, era a “participação maciça – e mesmo majoritária – de estudantes secundaristas”, o que refletia a composição do corpo discente no Brasil. Segundo o Censo Escolar de 1964, havia na época pouco mais de 1,8 milhão de secundaristas e apenas 137 mil universitários.
Em 1967, o governo acusou derrotas, como a extinção do Diretório Nacional dos Estudantes, criado dois antes para substituir a UNE. Com o Decreto-Lei 288, o regime revogou a Lei Suplicy, mas piorou ainda mais a situação do movimento, ao proibir oficialmente a organização de quaisquer entidades estudantis – até mesmo as governistas – em nível nacional e estadual. A decisão foi tomada ainda no governo Castello Branco.
O fator Edson Luis
Os grandes conflitos entre a ditadura e o movimento estudantil em 1968 têm como estopim a morte de um secundarista, Edson Luís de Lima Souto, no Rio de Janeiro. “A reação à morte do Edson Luís foi de uma amplitude, de uma radicalidade que ninguém imaginava, mesmo os que achavam que o ano seria de mobilizações. Mas rapidamente a gente percebeu o potencial de mobilização para além da universidade”, recorda-se o economista Jean Marc von der Weid, que foi eleito presidente da UNE em 1969.
Edson Luís foi assassinado durante uma manifestação em frente ao Restaurante Central dos Estudantes, num prédio do centro do Rio de Janeiro. Conhecido como Calabouço (por ter abrigado escravos presos no Império), o enorme restaurante era uma espécie de patrimônio dos estudantes, custeado pelo Ministério da Educação. Tinha fama de servir refeições horríveis, mas a preços extremamente baixos, “qualquer coisa assim como centavos”, diz o jornalista e ex-vice-presidente da Ubes (1968), Bernardo Joffily, em entrevista ao MME. “Como juntava 10 mil estudantes por dia, inevitavelmente se transformou num centro de efervescência estudantil.”
No governo Costa e Silva, os subsídios do MEC para o projeto minguaram, a tal ponto que, em setembro de 1967, uma ampla reforma do Calabouço foi interrompida sem anúncio nem explicações. Além disso, os militares ameaçavam demolir o prédio para a construção de um viaduto. Em resposta, os estudantes a realizarem vários protestos durante meses.
Uma dessas manifestações ocorreu na noite de 28 de março de 1968, uma quinta-feira. Cerca de 600 estudantes discutiam os detalhes de uma passeata agendada para o dia seguinte, que reivindicaria melhorias para o Calabouço e o fim da ditadura. Mas a Polícia Militar, avisada de antemão, cercou o restaurante em clima de guerra, imaginando que os manifestantes tacariam pedras na embaixada americana. Com seis carros ao redor do local, os policiais já chegaram com cassetetes em mãos. “Vão lá e quebrem tudo”, tinha ordenado o tenente Alcindo Costa.
De repente, começaram os tiros – o Calabouço era metralhado sem parar. “Ao lado do galpão do restaurante funciona o Instituto Cooperativa de Ensino, onde é ministrado um curso do artigo 99 (Madureza). No momento da invasão estava sendo dada aula de Geografia. O professor protestou e foi espancado pelos policiais”, registrou a Folha de S.Paulo.
Uma bala perdida atingiu o comerciário Telmo Matos Henrique, que estava num prédio vizinho. Dois estudantes também foram atingidos – o próprio Edson Luís, no peito, e também Benedito Frasão Dutra, no braço e na cabeça. Dezenas de pessoas estavam feridas. Quando o massacre policial acabou, Edson Luís e Benedito foram levados à Santa Casa de Misericórdia, que ficava a três quarteirões de distância. Nenhum sobreviveu.
Benedito foi internado em estado grave, permaneceu em coma na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e morreu no dia seguinte, aos 20 anos. Edson Luís chegou ao hospital já sem vida, vítima de um tiro à queima-roupa, no peito, que saiu da arma calibre 45 do comandante da tropa, aspirante a PM Aloísio Raposo.
Em O Poder Jovem, Poerner descreveu o secundarista morto, filho de uma lavadeira, como “um menino ainda – completara 18 anos em 20 de fevereiro (…). Órfão de pai, viera, havia três meses, de Belém do Pará, para cursar o artigo 99 do 1º ciclo (uma espécie de supletivo) no Instituto Cooperativo de Ensino, anexo do Calabouço, onde passava a maior parte do dia, inclusive auxiliando em serviços burocráticos de secretaria e de limpeza do estabelecimento”. Edson, segundo Bernardo, “era uma pessoa meio que adotada pelo movimento. Não era uma liderança, mas uma pessoa muito querida. Foi morto porque estava numa passeata contra o fechamento de um restaurante estudantil – essa é a moral da história”.
A fim de denunciar o crime cometido pela ditadura, os estudantes que esperavam na Santa Casa decidiram sair com o corpo de Edson Luís, que foi conduzido até a antiga sede da Assembleia Legislativa da Guanabara, na Cinelândia. Impedidos pela multidão de entrarem, agentes da PM e do Dops ameaçavam lançar bombas de gás. Nas ruas, a mobilização e os protestos continuavam. O governador Negrão de Lima mandou soltar os 14 estudantes presos na passeata e suspendeu as aulas em todos os estabelecimentos de ensino. A essa altura, as inúmeras faculdades do Rio já estavam em greve.
“As pessoas começaram a entrar noite adentro. Circulavam em bares da Zona Sul, faziam discurso e passavam o chapéu para recolher dinheiro para fazer o enterro do Edson Luís. Foi um agito generalizado”, diz Jean Marc. Segundo Bernardo, “a escadaria (da Assembleia) se transformou num palanque. As pessoas chegando, as escolas e faculdades fechando espontaneamente, e toda aquela massa de gente indo para a Cinelândia se somar ao velório”.
Dentro da Assembleia, o corpo de Edson foi posto sobre a Mesa Diretora e coberto pela bandeira nacional, por cartazes de protesto e por um caderno do próprio estudante. Dois médicos fizeram então a autópsia, acompanhados do secretário estadual de Saúde. Lideranças de diversas entidades clandestinas discursavam. Ao lado do caixão, proliferavam faixas com palavras-de-ordem, como “Assassinaram um estudante. Poderia ser seu filho” e “Brasil, seus filhos morrem por você”.
Segundo o jornal O Dia, “até às 15 horas, os estudantes haviam recebido, de donativos, 3 mil cruzeiros novos, que se destinarão à construção de uma estátua, em homenagem ao morto, em frente ao Restaurante Central dos Estudantes. O restante, segundo ficou deliberado, seria enviado à família do estudante, em Belém do Pará, e custearia os funerais, pois foi recusado o oferecimento do governo estadual”.
Ao fim da tarde de 29 de março, milhares de pessoas faziam fila para velar o corpo de Edson Luís. Artistas, sindicalistas e intelectuais compareciam. Na presença de 60 mil pessoas, o corpo de Edson Luís fez seu último trajeto. “Coberto pela bandeira nacional, o caixão desceu as escadarias da Assembleia sob os acenos de milhares de lenços. O povo entoava o Hino Nacional. Do alto dos edifícios caíam pétalas de flores e papéis picados. A multidão gritava ‘Desce! Desce’ para que os que, nas janelas, se limitavam a içar bandeiras negras. Muitos desciam e se integravam ao acompanhamento”.
Foram mais de três horas de cortejo até o Cemitério São João Batista. Anoitecia e, para ofuscar o protesto, autoridades deixaram de acionar parte da iluminação pública. De nada adiantou. Velas e lanternas carregadas pelas pessoas iluminavam a passeata. “A gente parou em frente ao prédio da UNE para fazer uma reverência. O prédio da UNE, que tinha sido fechado pela ditadura e não estava funcionando. Foi um dos momentos mais emocionantes”, afirma Bernardo.
“A manifestação no enterro do estudante foi absolutamente monumental”, agrega Jean Marc. “Foi um marco. O ano político começou com esse fato”. Edson Luís, segundo Bernardo, “não foi o primeiro morto da ditadura militar, mas foi, digamos assim, o primeiro morto público da ditadura militar”. Para Artur Poerner, “foi o momento de apogeu do movimento estudantil. Os estudantes eram, naquele momento, a vanguarda da resistência à ditadura militar”.
Mais repressão
O impacto do cruel assassinato de Edson Luís se estendeu e irritou os militares. Manifestações contra a ditadura se alastraram, culminando com os protestos de 1º de abril, no aniversário de quatro anos do Golpe de 1964. A polícia, orientada a descer o pau, foi ao ataque e deixou dois mortos (sendo um estudante), 60 feridos e 321 presos só no Rio de Janeiro. Tropas do Exército, da Marinha e da Aeronáutica tomaram a cidade. A Universidade de Brasília foi ocupada por estudantes. Houve atos em Goiás e em São Paulo, onde 4 mil estudantes se reuniram na Faculdade de Medicina da USP.
Em 4 de abril, o Exército escalou seus milicos em vários cantos do Rio de Janeiro para “prevenir distúrbios”. Mesmo assim, centenas de pessoas se achegaram pela manhã à Igreja de Nossa Senhora da Candelária, no centro carioca, para celebrar a missa de sétimo dia de Edson Luís. Foi outro pretexto para a violência do regime se deitar sobre uma massa indefesa de pessoas. A cavalaria da PM invadiu a igreja, e os agentes encheram estudantes e religiosos de golpes de sabre.
Chocado com a perversidade do regime, o vigário-geral dom José de Castro Pinto desobedeceu às ordens dos militares. No mesmo dia, à noite, ele realizou outra missa, desta vez para 600 pessoas. Na saída, os padres escoltaram os presentes até a Avenida Rio Branco. Foi depois desse ponto que a truculência da manhã ressurgiu, ainda mais grave, com direito a rajadas de metralhadora e bombas de gás. Até os fuzileiros navais foram convocados para liquidar a celebração a Edson Luís. Por sorte, não houve mortes – apenas feridos. Duas semanas depois, os militares proibiram eleições em 68 municípios, considerados “áreas de segurança nacional”.
É no “calor da hora”, portanto, que a Ubes realiza, de 21 a 24 de abril de 1968, o 20º Congresso Nacional dos Estudantes Secundários, em Belo Horizonte. O local era mais do que apropriado. “Lembro que, em Belo Horizonte, havia uma pequena tropa de 400, 500 estudantes que, todos os dias, fazia o que nós chamávamos de comício-relâmpago. Comício-relâmpago é o seguinte: você não combina nada, vai chegando a um lugar de aglomeração de gente, sobe num caixote, faz um discurso de quatro, cinco minutos, pega o caixote e vai embora, se der sorte. Então, quando não havia manifestações, havia esses comícios relâmpagos”, diz Bernardo Joffily.
Cerca de 140 delegados compareceram ao congresso, que prestou homenagem ao guerrilheiro Ernesto “Che” Guevara, líder da Revolução Cubana (1959), morto pelo Exército boliviano em outubro de 1967. A nova diretoria foi encabeçada pelo pernambucano Marcos Antonio Machado de Mello. Seu vice foi o próprio Bernardo, que ocupava o mesmo cargo na Ames. A diretoria contava ainda com Emiliano José e Célio Turino, entre outros membros.
Protestos de sobra ocorreram também em 1º de maio, na comemoração do Dia do Trabalhador. Manifestantes e policiais entraram em confronto na Praça da Sé, em São Paulo. A mobilização estava reforçada por entidades sindicais da região metropolitana, com destaque para o Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco. Depois de receberem o governador Abreu Sodré com ovadas, os manifestantes incendiaram o palco e marcharam até a Praça da República.
No Rio, durante três dias seguidos, houve confrontos prolongados entre universitários e agentes da repressão. Começou em 19 de junho, quarta-feira, durante um ato em frente ao Ministério da Educação. No dia seguinte, centenas de estudantes ocuparam o prédio do Conselho da Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Praia Vermelha. Aproximadamente 400 deles foram presos na Faculdade de Economia, levados até o campo do Botafogo e humilhados.
Em crônica para o Jornal do Brasil, o jornalista José Carlos Oliveira relata casos de “moças e rapazes deitados de bruços, com a cara enfiada na grama; moças forçadas a andar de quatro diante de insolentes soldados da PM; dezenas de estudantes encostados a um muro e com as mãos segurando a nuca, ou na mesma atitude, mas deitados de bruços”. Soldados urinavam sobre os estudantes e passavam seus cassetetes entre as pernas das universitárias.
Revoltados com a insolência criminosa dos agentes, os estudantes voltaram às ruas em 21 de junho, a “Sexta-Feira Sangrenta”. A manifestação, marcada para a Praça Tiradentes, se converteu numa batalha campal de quase dez horas. Mais uma vez, Dops e Polícia Militar se uniram para reprimir a toda força. Não contavam, porém, com o apoio maciço da população, que se posicionou ao lado dos estudantes em uma batalha tão desigual. Quatro pessoas morreram e mais de mil foram presas pelo Dops.
A Passeata dos 100 Mil
O grande feito dos estudantes, até aquele momento, foi ter despertado o povo para o fiasco do regime militar. Os brasileiros – que já não demonstravam mais tanta simpatia pelos militares no poder – estavam engasgados com o assassinato de Edson Luís e a “Sexta-Feira Sangrenta”. Foi sob esse clamor que, em 26 de junho, o centro carioca abrigou a célebre Passeata dos 100 Mil.
Apesar do nome, a maior de todas as manifestações contra a ditadura (até então) levou muito mais do que 100 mil pessoas às ruas do Rio de Janeiro. Da concentração na antiga Esplanada do Castelo, a marcha percorreu a Cinelândia e a Avenida Rio Branco, encerrando-se na Uruguaiana. “Foi mesmo um momento de grande exaltação da liberdade, parecia que tudo era possível, que a ditadura era capaz de desistir”, afirma ao MME Alfredo Sirkis, que foi dirigente da Ames no período
“Aos gritos de ‘liberdade, liberdade’, os estudantes deram início aos discursos inflamados, clamando por mais verbas para as universidades, ensino gratuito, contra a tentativa de transformação das universidades em fundações e em protesto contra a prisão dos líderes estudantis”, assinalou o carioca O Jornal. Vladimir Palmeira garantiu que a morte de Edson Luís seria vingada. Pelos secundaristas, quem falou foi o presidente da Ames, que classificou como “empulhação” o pronunciamento feito um dia antes pelo ministro Tarso Dutra, em cadeia nacional TV e rádio.
Em protesto contra o acordo MEC-Usaid, uma bandeira americana foi queimada. Cinco estudantes foram detidos pelo Dops por distribuir panfletos “subversivos”, mas a manifestação transcorreu sem maiores incidentes. Mesmo se houvesse percalços, a Polícia Federal já havia orientado a proibição de filmes ou reportagens sobre “tumultos em que se envolveram os estudantes”.
“Por todo o trajeto, enquanto as moças pintavam inscrições com ‘spray’ nas paredes, toneladas de papel picado brotavam do alto dos edifícios, emprestando à manifestação um colorido festivo. Correspondentes estrangeiros comentavam a facilidade com que o povo debate os seus problemas mais sérios e profundos”, captou O Jornal. Além de estudantes, participaram sindicalistas, líderes comunitários, artistas, religiosos, intelectuais, setores do empresariado.
Paulo Autran, Chico Buarque, Vinicius de Moraes, Edu Lobo e Norma Benguel estavam lá. O Correio da Manhã registrou a presença de pelo menos 150 padres. Um representante dos favelados, muito aplaudido, afirmou que “eles também estavam na luta”. Rubens Corrêa Magalhães, de apenas 14 anos, apoiou-se sobre uma banda de jornal e gritou: “O povo armado derruba a ditadura!”.
A passeata elegeu uma comissão, formada por cinco pessoas – um médico, um padre, uma mãe e dois estudantes –, que levariam até Costa e Silva as reivindicações do povo brasileiro. Exigia-se liberdade para os presos políticos, a reabertura do restaurante Calabouço, mais verbas para as universidades, o fim de censura às artes, defesa dos interesses nacionais e melhores condições de vida para os trabalhadores.
Mais do que dar um “não” a cada pedido, o governo Costa e Silva voltou a radicalizar: em 17 de julho, proibiu definitivamente todas as manifestações públicas. Ainda assim, o estado de São Paulo é palco de duas ocupações. Numa delas, estudantes tomam a Faculdade de Filosofia da USP, na Rua Maria Antônia. Na outra, operários ocuparam a fábrica da Cobrasma, em Osasco.
Em Salvador, foram os secundaristas que deram início a uma das manifestações que mais mobilizaram os soteropolitanos. “Começou com o movimento secundarista por conta de aumento da passagem de ônibus e aquilo foi indo que nem uma bola de neve, até que a universidade entrou”, afirma ao MME o ex-líder estudantil Luís Raul Machado. “O governador foi para a televisão dizer que, assim como os estudantes tinham tido uma sensação de liberdade porque ele tinha deixado as passeatas acontecerem, do dia seguinte em diante eles iam sentir o peso da mão da autoridade. Era o Antônio Carlos Magalhães. E eram levas de estudantes e populares, porque ali já não era mais só movimento estudantil. Pela rua, você não tinha mais controle.”
Na noite de 18 de julho, o terror saiu das ruas e invadiu o ambiente teatral. Integrantes do grupo parapolicial CCC (Comando de Caça aos Comunistas) depredaram o Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, e promoveram um atentado contra a produção e o elenco da peça Roda Viva, que estava em cartaz desde janeiro. Todos saíram muito feridos, como a atriz Marília Pêra, que foi espancada nua, e o contrarregra José Araújo, que teve a bacia quebrada. Para os anticomunistas doentios do grupo, Roda Viva era “subversiva”. Escrita por Chico Buarque e dirigida por José Celso Martinez Correa, a obra girava em torno da ascensão e queda do músico Benedito Silva, numa denúncia da indústria cultural.
A esquerda contra o CCC
Em outubro, eclodiu a “Batalha da Maria Antônia”. O confronto envolveu estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP e da Universidade Mackenzie – instituições que se localizavam em calçadas opostas da Rua Maria Antonia, em Higienópolis, em São Paulo. Na época, o prédio da USP abrigava a União Estadual dos Estudantes (UEE), que tentava organizar o Congresso da UNE. O Mackenzie, por sua vez, dava guarida ao CCC e a outras entidades anticomunistas.
O clima começou a ficar pesado na manhã de 2 de outubro, quando estudantes de lado a lado se estranharam. Enquanto faziam “pedágio” para arrecadar verbas à UNE, vários “uspianos” foram atingidos por ovos e pedras que vinham do Mackenzie. Depois de horas de troca de insultos entre os estudantes, a reitora do Mackenzie, Esther Figueiredo Ferraz, chamou a Tropa de Choque e consegui esvaziar o local.
No dia seguinte, o clima esquentou de vez. Estudantes do Mackenzie atravessaram a rua para arrancar uma faixa de protesto contra a ditadura. O pau comeu solto. Munidos de armas, paus, pedras e rojões, os estudantes transformaram a Maria Antônia numa praça de guerra. Calcula-se que, durante quatro horas, cerca de 5.500 jovens se digladiaram. O prédio da USP foi incendiado, e vários imóveis foram danificados. Chamada para conter os estudantes, a polícia atirava para o alto – em vão. Já os reacionários do Mackenzie lançavam bombas e coquetéis molotov. Entre as dezenas de feridos estavam quatro estudantes baleados, sendo três universitários.
O outro era o secundarista José Carlos Guimarães, de 20 anos. Sangrando sem parar depois de levar um tiro na cabeça, ele morreu a caminho do Hospital das Clínicas, nos braços de estudantes da USP. Segundo a autópsia, “havia seis ou sete pedaços de chumbo no cérebro” do jovem mártir. José Dirceu, um dos principais líderes estudantis da época, subiu sobre escombros da batalha e, empunhando a camisa de Guimarães, convocou os estudantes progressistas a se manterem firmes contra a ditadura. Cerca de 4 mil pessoas saíram em passeata até Faculdade de Direito da USP, perto dali, no Largo São Francisco.
“Em solidariedade aos estudantes paulistas massacrados pelo CCC”, três passeatas agitam o Rio de Janeiro na semana seguinte, tarde de 9 de outubro. Uma das marchas, com mais de mil manifestantes, era dominada por secundaristas. Os estudantes foram duramente reprimidos pelas forças policiais, e as três manifestações terminaram com sete pessoas baleadas, dezenas intoxicadas por gás lacrimogêneo e mais de 130 presos.
As autoridades divulgaram que os tiros foram dados pelos próprios estudantes. Não colou, mas esse procedimento – de falsificar as versões oficiais – já ia virando regra. No mesmo dia, estudantes da USP quebraram as barricadas do Crusp (Conjunto Residencial da USP), que estava sob ameaça de invasão policial. Os corajosos universitários foram criminalizados até mesmo por Abreu Sodré, que os chamou de “agitadores e extremistas”.
“Mais para o final do ano, ainda houve umas passeatas lá em Vila Isabel, em que morreram dois estudantes e uma manifestação que tentou se aproximar do jornal O Globo, que, para nós, era o símbolo do imperialismo, mas a polícia não deixou e teve também mortes, tiros. O movimento estudantil começou, realmente, a ser reprimido a bala, no segundo semestre de 68”, diz o jornalista e escritor Alfredo Sirkis, que foi dirigente da Ames no período.
Cerco a Ibiúna
Na manhã de 12 de outubro, os universitários sofreram um novo revés. Agentes da Força Pública e do Dops invadem o sítio Muduru, em Ibiúna (SP) onde se realizava, clandestinamente, o 30º Congresso da UNE. Foram presos 1.240 estudantes – entre eles, Antonio Guilherme Ribeiro Ribas, que presidia a União Paulista de Estudantes Secundários (Upes). Presidentes de outras entidades – como Luís Travassos (UNE), Vladimir Palmeira (UME) e José Dirceu (UEE-SP) foram encaminhados ao Dops.
A nata do movimento estudantil estava controlada, para a alegria das autoridades autoritárias. “Agi com energia para reprimir a agitação e a subversão quando determinei, após horas de angústia e apreensão, a prisão de estudantes subversivos que participavam do congresso da UNE”, tagarelou Abreu Sodré.
Ao ser descoberto pela ditadura, o Congresso de Ibiúna determinou o ponto de refluxo do movimento estudantil dos anos 60. Costa e Silva fecharia ainda mais o cerco nas semanas seguintes. Em 22 de novembro, o general-presidente criou Conselho Superior de Censura e sancionou a lei que censurava peças teatrais e filmes. Com o Ato Institucional Número 5 (AI-5), baixado em 13 de dezembro, ridículos centros cívicos tomaram o lugar dos grêmios estudantis, que foram extintos. Mas não foi só.
Se o regime militar já era odioso desde seu início, sua “longa noite” começou na sexta-feira 13 em que emergiu o AI-5. “Golpe dentro do golpe”, a mais autoritária das medidas da ditadura cassou direitos elementares do povo, massacrou os movimentos estudantil e sindical, desatou a prática da tortura e selou os “anos de chumbo”. O direito ao habeas corpus em casos de crimes contra a segurança nacional foi suspenso. O governo fechou o Congresso, as Assembleias Legislativas e as Câmara dos Vereadores.
O Congresso permaneceu fechado até 22 de outubro de 1969, enquanto o Judiciário ficou esvaziado, ao bel-prazer do general-presidente de plantão. Juntos, o governo Costa e Silva e a Junta Militar que lhe sucedeu foram responsáveis pela cassação do mandato 105 congressistas, 178 deputados estaduais, 36 vereadores e 30 prefeitos, além de juízes e ministros do Supremo Tribunal Federal. A censura prévia foi estendida à música, ao teatro e ao cinema. O regime “de exceção” estava a pleno vapor.
O alto escalão do governo assumia, pela primeira vez, o termo “ditadura” para caracterizar o regime, ao que o ministro do Trabalho Jarbas Passarinho reagiu com uma frase memorável: “Às favas os escrúpulos de consciência”. O movimento estudantil se desmobilizou. As entidades não conseguiam mais se organizar em nível nacional, e lideranças eram cada vez mais presas ou cerceadas. “A repressão expulsou boa parte dos militantes, pelo menos do que a gente poderia chamar de uma vanguarda política do movimento secundarista”, atesta Juca. “Foi um período de inflexão.”
A Ubes, atacada em sua base, ia em busca de sobrevida. Por tudo isso, o Conselho de Estudantes Secundários, em dezembro de 1968, em Salvador, ocorreu sob imensos cuidados. Na virada de 1968 para 1969, a repressão corria solta. Dezenas de políticos oposicionistas tiveram seus mandatos e direitos políticos cassados, como o ex-governador Carlos Lacerda e a dona do Correio da Manhã, Niomar Muniz Sodré Bittencourt. O número de presos políticos chegou às centenas. Até Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos e exilados. O decreto-lei 477, de 26 de fevereiro de 1969, autorizou a perseguição de professores, alunos e funcionários de estabelecimentos de ensino público – a medida penalizou 263 pessoas até 1973.
Pelas vias legais, não havia mais formas de combater o regime militar. Com o apoio de líderes estudantis secundaristas e universitários, organizações guerrilheiras tiveram impulso – e a reação aos “anos de chumbo” tomou a forma da luta armada.
[Este artigo é um resumo de “1968, de Cara com a Utopia”, capítulo especial do livro Ubes, Uma Rebeldia Consequente – A História do Movimento Estudantil Secundarista do Brasil, de autoria de André Cintra e Raisa Marques]
* André Cintra, jornalista e escritor, trabalhou no Vermelho entre 2006 e 2011. É secretário municipal de Comunicação do PCdoB de São Paulo (SP). Raisa Marques, historiadora e pesquisadora, é mestranda em História do Brasil pela Universidade Salgado de Oliveira. Foi membro da diretoria executiva da Ubes por duas gestões.