Juristas rebatem procuradores e mídia: Curitiba não é juízo universal
A decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), determinando que os processos do ex-presidente Lula sobre o sítio de Atibaia (SP) sejam julgados em São Paulo, e não no Paraná, restabelecendo o princípio do juiz natural provocaram uma grita nos meios de comunicação, juntamente com a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba.
Por Dayane Santos
Publicado 26/04/2018 13:32
Surfando na campanha que eles criaram de "impunidade", a Lava Jato se coloca como um poder soberano, único capaz de julgar o ex-presidente Lula. De acordo com os procuradores, "não há que se falar em falta de relação" da delação da Odebrecht com a corrupção na Petrobras e, portanto, a decisão do Supremo não os invalida e "não tem qualquer repercussão sobre a competência" do juiz "para processar e julgar" as ações penais.
Mas os procuradores vão além. Decidiram reinterpretar a decisão do Supremo e afirmaram que não haverá modificação de competência, "mas o mero encaminhamento de termos de colaboração", ou seja, não vão cumprir a determinação da Corte.
"A decisão do STF não impede que os mesmos colaboradores sejam ouvidos sobre fatos relevantes para instrução de outras investigações e ações penais, que tiveram e têm sua competência definida no âmbito dos canais próprios de decisão e revisão do Judiciário", diz os procuradores na petição.
Apesar da grande mídia dar palanque e holofote para essa tese, que ainda tenta atribuir aos ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski uma espécie de "conluio da impunidade", a legislação brasileira estabele regras bem clara para o juiz natural e a competência, que nada tem a ver com a impunidade.
Entenda o princípio do juiz natural
O juiz natural é um princípio estabelecido pela Constituição Federal e define regras de como e quem vai julgar os processos, garantindo independência e a imparcialidade do tribunal julgador e impedindo a instalação de tribunais de exceção, ou seja, criados para julgar pessoas ou casos específicos depois do fato, impedindo que se possa manipular um julgamento. Significa dizer que competência ou incompetência não está relacionada a um adjetivo de qualidade, mas uma legitimação de jurisdição.
Tratando especificamente sobre o caso Lula, o professor Afranio Jardim destaca que há três pontos que demonstram a incompetência de Curitiba para julgar o ex-presidente por inexistência de da chamada conexão entre os crimes.
Para quem assiste ou lê as notícias propagadas pela grande mídia ou acompanha o discurso de alguns procuradores, as investigações da Lava Jato tratam de crimes de um mesmo autor e de uma mesma ação. Essa narrativa tem o objetivo político de insuflar a perseguição e a criminalização da política.
Mas quando se analisa os fatos à luz da lei e, principalmente da Constituição, essa narrativa é desmontada. Conexão decorre quando a prova de um crime influencia na existência de outro crime. No caso específico da Lava Jato, crimes que aconteceram em São Paulo e no Rio de Janeiro estariam sendo julgados no Paraná porque existiria uma conexão entre esses crimes com os que aconteceram no Paraná, que originou a Lava Jato.
Pela regra de conexão, uma vez definida a competência de julgamento, ou seja, onde deve iniciar o julgamento, todos os crimes conexos a esses primeiros que ocorreram no Paraná devem ser julgados por ele.
Para o renomado processualista penal Afranio Jardim, professor associado de Direito Processual Penal da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e procurador aposentado do Ministério Público, a alegada existência de conexão que manteria a competência na 13ª Vara Federal de Curitiba para julgar os crimes atribuídos ao ex-presidente Lula não se configura e o Supremo tem razão em modificar a competência transferindo para a São Paulo.
"Verifica-se que o ex-presidente Lula não está sendo julgado por um órgão jurisdicional competente. Na realidade, o juiz Sérgio Moro escolheu o seu réu e, com o auxílio entusiasta do Ministério Público Federal, foi buscar um determinado contexto insólito para “pinçar” acusações contra o seu “queridinho réu”", disse o jurista.
O professor questiona qual a hipótese de conexão do artigo 76 do Código de Processo Penal (CPP) existe entre o crime de lavagem de dinheiro, praticado pelo doleiro Alberto Youssef, através do Posto Lava Jato localizado no Paraná, e os crimes atribuídos ao ex-presidente Lula, que teriam sido praticados em São Paulo.
O artigo 70, do CPP, diz que "a competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução".
Já o artigo 76 do mesmo código diz que a possibilidade de modificação de tal competência "será determinada pela conexão" se, ocorrendo duas ou mais infrações, houverem sido praticadas, ao mesmo tempo, por várias pessoas reunidas, ou por várias pessoas em concurso, embora diverso o tempo e o lugar, ou por várias pessoas, umas contra as outras; se, no mesmo caso, houverem sido umas praticadas para facilitar ou ocultar as outras, ou para conseguir impunidade ou vantagem em relação a qualquer delas; ou quando a prova de uma infração ou de qualquer de suas circunstâncias elementares influir na prova de outra infração.
"O juiz Sérgio Moro não diz, não explica, não demonstra. Ele apenas assevera que os processos contra o ex-presidente Lula são da sua competência, porque conexos com aquele processo originário e outros mais. Meras afirmações, genéricas e abstratas", argumenta o jurista.
"Por mais incrível que possa parecer, a 13ª Vara Criminal da Justiça Federal de Curitiba passou a ser uma espécie de juízo universal de todos os crimes que, de alguma forma, possam ter causado prejuízo à Petrobras", avalia o professor, que destaca que a Constituição estabelece que a Petrobras é uma sociedade empresária de direito privado, ou seja, economia mista (estatal exercendo atividade privada), e a a mesma determina que a Justiça Federal é competente para julgar casos que envolva a empresa, pois leva em consideração o titular do bem jurídico violado pelo delito.
A citação sobre a Petrobras é porque o juiz Sergio Moro, em resposta aos embargos apresentados pela defesa do ex-presidente Lula sobre a sentença que o condenou no caso do tríplex, admitiu que o imóvel não ‘veio’ de contratos da Petrobras.
Disse Moro:
Para o professor Afrânio, "o sujeito passivo das infrações penais [Lula] não é critério para concentrar competência de crimes diversos e consumados em lugares distintos. Estamos diante de clara nulidade absoluta dos três processos em que o ex-presidente Lula figura como réu".
Lava Jato não está acima da lei
Outros juristas concordam que a decisão do Supremo respeito a Constituição e o princípio do juiz natural. Em entrevista ao Conjur, o criminalista Daniel Bialski afirmou que “não se pode colocar sobre o mesmo juízo qualquer fato relacionado a personagens somente porque têm algum tipo de vinculação".
"A vinculação, a conexão e a continência têm que ser complexa, completa e plural, para que o mesmo juízo possa julgar todas as causas correlatas. O Supremo entendeu que não era o caso. Por isso, decidiu desta forma”, avalia.
O criminalista Daniel Gerber reforça que “Curitiba não é um ‘juízo universal’ para analisar todo e qualquer caso que surja de delações", como insiste em afirmar os procuradores.
"Pelo contrário, atos que em nada se vinculam com a estrutura inicial da Lava Jato – desvios na Petrobras – devem ser considerados de forma independente, se submetendo às regras de competência do Código de Processo Penal. Significa dizer que a distribuição livre de tal processo em São Paulo apenas atende ao que ordena o Código processual e nada mais”, afirma Daniel, rebatendo a histeria provocado pela grande mídia.
Para o advogado Everton Moreira Seguro, também ouvido pelo Conjur, diferentemente do que se propaga, a decisão do Supremo “não significa que os investigados terão algum tipo de benefício com esta troca, pois o que está sendo levado em consideração são as regras de competência onde os crimes supostamente ocorreram e a localização dos imóveis”, que estão acobertados sob a jurisdição da Justiça Federal de São Paulo.
A tese dos procuradores de que a decisão causa um "tumulto processual" para defender a prevenção (confirmação e manutenção da competência do juiz que conheceu a causa em primeiro lugar) também é criticada por Afranio.
Segundo ele, a prevenção é fator de fixação entre foros ou juízos igualmente competentes. "A competência da Justiça Federal leva em consideração o bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora e não em razão de o agente do delito ser ou não um funcionário público federal", explica. "Relevante salientar ainda que, no processo penal, a conexão ou continência se dá entre infrações penais e não entre processos".
E completa: "A prevenção é critério de fixação da competência entre órgãos jurisdicionais que já sejam todos genuinamente competentes. Vale dizer, a prevenção não modifica a competência, mas “desempata” entre foros ou juízos igualmente competentes. Assim, se um determinado órgão jurisdicional pratica uma medida cautelar sem competência para tal, ele não passa a ser competente para as infrações conexas. A sua incompetência originária não é sanada, mas sim ampliada", salienta.
Segundo ele, a regra estabelecida pela lei está sendo "desconsiderada de forma absurda". "Tal dispositivo legal é expresso ao dizer, de forma cogente, que a competência de foro é fixada pelo lugar em que se consumou a infração penal e, no caso de tentativa, pelo lugar em que foi praticado o último ato de execução", reafirma, destacando que "não havendo conexão entre infrações praticadas em foros distintos ou não havendo mais a possibilidade de um só processo e um só julgamento, não há justificativa para a modificação da competência do foro originário".
O professor do curso de pós-graduação de Direito Penal do IDP-SP, Conrado Gontijo, também salienta que o debate é antigo e que existem outros decisões do Supremo que determina que só deve ficar em Curitiba o que estiver diretamente ligado à Petrobras.
"Tecnicamente, existe um caminho para a defesa questionar a competência de Sérgio Moro. Mas isso depende de uma verificação detalhada dos autos. Ele [Moro] não pode condenar afirmando não ter a ver com a Petrobras. Se se reconhece que não existe a vinculação, será necessário o reconhecimento da incompetência do juiz que julgou o caso e o encaminhamento ao juízo competente”, analisa Gontijo.
Defesa de Lula
A defesa do ex-presidente Lula protocolou pedido para que ele promova a "imediata remessa" dos autos processuais das ações do sítio de Atibaia e do terreno do Instituto Lula para São Paulo, conforme determinou o Supremo.
"Diante do exposto, requer-se a imediata remessa dos autos processuais para livre distribuição na Seção Judiciária do Estado de São Paulo com os consectários legais decorrentes da incompetência deste Juízo (Código de Processo Penal, artigo 564, I), a menos que se queira desafiar a autoridade da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal", dizem os advogados na petição.
Em entrevista, Cristiano Zanin afirma que a decisão do STF também pode ser utilizada no caso do tríplex, que levou à condenação de Lula a 12 anos de prisão. "Temos um recurso especial e um recurso extraordinário no TRF-4. Neles, já falamos que o caso envolve um juiz de exceção. Mas claro que essa decisão do STF é importante e será acrescentada nos autos para ser levada em conta pelos desembargadores", afirma Zanin.