Um país sem rumo industrial
Uma conhecida boutade, originária do mercado financeiro de Nova York pós-2ª Guerra Mundial (1939-1945), ironiza a vulnerabilidade dos países capitalistas diante da hegemonia norte-americana. Segundo esse ditado, “quando os Estados Unidos espirram, o restante do mundo pega um resfriado”. Aqui e ali, surgiram versões alternativas, em que a segunda parte da oração é adaptada.
Por André Cintra
Publicado 30/03/2018 14:27
A depender do contexto – ou da conveniência –, trocava-se “restante do mundo” por Brasil, América Latina, Europa, etc. Se a intenção fosse enfatizar a gravidade do impacto – o tamanho da desgraça –, bastava mudar a doença. Em vez de “resfriado”, por que não gripe, pneumonia ou tuberculose?
Para entender o processo de desindustrialização, desnacionalização e semiestagnação por que passa a economia do Brasil há quase quatro décadas, convém não subestimar a velha sentença. No ano da graça de 1980, um “espirro” lá na América do Norte fez o Brasil adoecer gravemente. Graças à política de austeridade puxada pelo Federal Reserve (o banco central dos Estados Unidos), as taxas de juros internacionais dispararam como nunca. Anunciadas como uma resposta aos dois choques no petróleo (1973-1974 e 1979), as medidas acabaram por desencadear uma nova e inesperada turbulência: a chamada “crise da dívida externa” sobre as nações latino-americanas, que tinham feito a maior parte dos empréstimos junto às instituições estadunidenses com juros flutuantes.
De uma hora para outra, a dívida desses países com os Estados Unidos disparou, bem como o déficit público. Era o prenúncio, no Brasil e em todo o continente, da “década perdida”. O caso brasileiro é emblemático. Durante o regime militar (1964-1985), o País vinha apostando no crescimento com endividamento externo. A situação se intensificou com a crise do petróleo de 1973-1974, já que éramos importadores do produto – uma das bases de nossa matriz energética – numa fase de alta demanda. Entre 1973 e 1978, a dívida externa cresceu 500% – de US$ 13,962 milhões para US$ 71,778 milhões. Foi a polêmica cartada da ditadura para garantir avanços expressivos no PIB, da ordem de quase 10% em 1976 e 1980 – ou seja, mesmo depois do “milagre econômico”.
A “crise da dívida” escancarou as fragilidades desse modelo, atingiu em cheio a taxa de investimentos e a produção industrial, além de provocar (ao lado de outros fatores) a mais profunda recessão na história do Brasil. Na grande crise de 1981-1983 – que durou nove trimestres –, nossa economia despencou 8,5%. A renda per capita caiu ainda mais, regredindo 12% de 1981 a 1984. Com o bloqueio abrupto do crédito aos países em desenvolvimento, a dívida externa não parava de aumentar, a ponto de, ao longo da década de 1980, comprometer quase 8% do PIB brasileiro ao ano.
Outros países do continente trilhavam caminho igual. Nem mesmo os sucessivos e humilhantes acordos financeiros com o FMI (Fundo Monetário Internacional) impediram que Argentina, Brasil, Equador e México recorressem, em determinados momentos, à moratória da dívida. A economia brasileira, semiestagnada, passou a viver dos chamados “voos de galinha”, com picos de crescimento efêmeros e pontuais. Desde a década de 1980, só ultrapassamos a marca de 7% de avanço no PIB em três anos – 1985 (7,95%), 1986 (7,99%) e 2010 (7,53%). Em compensação, houve mais duas longas recessões, de 11 trimestres, cada uma – em 1989-1992 (com recuo de 7,7% do PIB) e 2014-2016 (queda de 8,2%).
Outra vilã pública e notória que emergiu na “década perdida” foi a alta geral dos preços. No Brasil, a taxa média de inflação anual – que foi de 6% nos anos 1930, 12% nos anos 1940 e 19% nos anos 1950 – ficou em 40% nas décadas de 1960 e 1970. Já havia, portanto, uma tendência exponencial de crescimento inflacionário. Mas o desequilíbrio se tornou crônico no período subsequente – a taxa média foi a 330% ao ano na década de 1980 e a 764% de 1990 a 1995. A inflação só foi controlada a partir de julho de 1994, com a adoção do Plano Real. Antes disso, em oito anos, seis planos econômicos anti-inflacionários tinham fracassado em sequência. A “vitória”, de todo modo, teve um preço altíssimo.
“A estabilização do nível geral de preços levada a cabo em meados dos anos 1990 livrou a economia brasileira da hiperinflação, mas não teve forças para eliminar a herança dos malfadados anos 1980. As condições em que foi realizada a estabilização custou ao Brasil uma combinação perversa entre câmbio valorizado e juros estratosféricos, com graves prejuízos para o crescimento e a diversificação da indústria”, opinou o economista Luiz Gonzaga Belluzzo em artigo para a revista “CartaCapital”. Segundo ele, “o ‘afastamento’ das transformações manufatureiras globais nos legou insuficiências em vários setores: infraestrutura de telecomunicações móveis, PCs, computadores portáteis, tevês de plasma e LCD, câmeras digitais, componentes eletrônicos, para não falar da robótica, dos novos materiais e da nanotecnologia”.
O fim do ciclo nacional-desenvolvimentista no Brasil se dá num momento em que o capitalismo, em fase acentuada de financeirização desde as décadas de 1960 e 1970, lança as bases da globalização neoliberal. É o momento em que os empréstimos do FMI passam a ser condicionados não apenas a garantias financeiras convencionais – mas a uma série de imposições na política macroeconômica dos países em desenvolvimento. Sob a embalagem amena de “reformas estruturais”, o Fundo exige de seus “parceiros” contrapartidas que, juntas, forçam a desregulamentação das economias nacionais. Entre essas medidas, sobressaem o superávit primário, a maior autonomia do Banco Central frente ao governo e a privatização de empresas estatais.
O governo José Sarney (1985-1990) até flerta com o receituário neoliberal, mas mão adere às suas recomendações de corpo e alma. O neoliberalismo só vai ganhar vigor no Brasil nos anos 1990, com a abertura econômica (comercial e financeira) efetuada o governo Collor (1990-1992) e o entreguismo da era Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Teve, ainda, uma sobrevida relativa no primeiro governo Lula (2003-2006). Um de seus marcos é o controverso tripé econômico, implantado em 1999, no início da segunda gestão FHC, e formado pela articulação de três variáveis: austeridade fiscal (via superávit primário), metas de inflação (sob controle do Banco Central) e câmbio flutuante. Acirra-se a oposição entre os rendimentos do trabalho (os salários) e os rendimentos do capital.
Para o economista José Luis Oreiro, o pacto liberal-dependente se estende de 1991 a 2005. “Trata-se de uma coalizão de interesses formada pelos capitalistas rentistas, pelos profissionais de finanças e por parte da classe média urbana”, escreve ele em artigo na revista “Cadernos do Desenvolvimento” publicado em 2015. “É um pacto liberal porque rejeita o desenvolvimentismo e o papel do Estado no processo de desenvolvimento econômico. É dependente porque implica uma aliança política com as elites dos países ricos, as quais passaram a impor a sua agenda de reformas econômicas e institucionais para o Brasil.”
Oureiro, assim como o economista e ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira, sustenta que a estratégia liberal-dependente gera uma nova moléstia – a “doença holandesa” –, que consiste na sobreapreciação da moeda nacional por longo prazo, ou seja, o real valorizado frente ao dólar. Exportadores de commodities podem eventualmente se beneficiar da “doença holandesa”, caso o preço de seus produtos, determinado pelo mercado mundial, oscile em alta. Porém, a combinação, vigente desde 1995, de altíssimas taxas de juros com valorização da taxa real de câmbio induz a desindustrialização e compromete o potencial da economia brasileira. Como o capital se encarece, não há incentivo à sua acumulação e ao crescimento. A indústria nacional até dispõe de tecnologia no estado-da-arte mundial, mas perde competitividade. Logo, o País passa a sofrer de desindustrialização precoce e longa semiestagnação.
“Para os economistas liberais, o desajuste macroeconômico se resolve, basicamente, com ajuste fiscal. Em tese, não importa quem paga a conta. Mas, na prática, os sacrificados são sempre os trabalhadores assalariados, e nunca os rentistas”, diz Bresser-Pereira. “O liberalismo no Brasil só atende, portanto, o interesse dos rentistas (quem vive de juros, dividendos e aluguéis) e dos financistas (aqueles que administram o rendimento dos rentistas).”
A partir de 2005, o governo Lula, favorecido pelo boom internacional de commodities, ensaia uma política econômica de tipo “social-desenvolvimentista”. Iniciativas como a valorização do salário mínimo, a ampliação dos gastos sociais e o incentivo ao crédito ajudam a distribuir renda e a fortalecer o mercado interno. Com o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), lançado em 2007, ramos como a construção civil, o setor naval e a indústria de petróleo e gás são aquecidos. Mas, como Lula não enfrenta os juros altos nem a moeda sobreapreciada, a tendência à desindustrialização se mantém. De 2005 a 2012, apesar de todos os êxitos econômicos, a participação da indústria de transformação no PIB cai de 20% para 13%.
A desindustrialização piora ainda mais nos anos seguintes, acentuada pela recessão de 2014-2017 e pelo golpe de Estado de 2016 contra a presidenta Dilma. No curso da crise política e econômica, o novo governo, encabeçado de forma ilegítima por Michel Temer, assume um programa ultraliberal e desnacionalizante, contrário aos interesses da indústria e do desenvolvimentismo. A taxa de investimento cai sensivelmente, a política de conteúdo local é paulatinamente abandonada, a indústria naval implode e a retomada do crescimento é puxada, essencialmente, pelo setor primário. Segundo o IBGE, a indústria de transformação equivalia, ao fim de 2017, a 11,8%, menor taxa desde os anos 1950.
Não é exagero dizer que, muito além de uma “década perdida”, a indústria nacional já está em crise há quase quatro decênios e começou a regredir antes de atingir seu potencial produtivo manufatureiro. Com políticas neoliberais como as de Collor, FHC e Temer, o organismo da economia brasileira nem mesmo precisa mais de um espirro dos Estados Unidos para entrar em colapso. São novos (e tristes) tempos!
André Cintra é jornalista e assessor da Fitmetal