Gênero: Obstáculos estruturais à igualdade que insistimos em ignorar
Às vésperas do dia internacional da mulher, Waleska Maria Lopes foi submetida a uma situação que deixa claro que ainda precisamos avançar muito na promoção do direito à igualdade e no combate às desigualdades de gênero e de acesso a oportunidades.
Por Renan Medeiros de Oliveira*
Publicado 17/03/2018 16:51
Nas dependências de uma faculdade pública federal – a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) –, Waleska assistia a aula de Introdução à Sociologia, lecionada por um professor de ciências sociais. Mãe solteira e morando em uma cidade distinta da de sua família, durante as aulas a aluna não tem com quem deixar sua filha de 5 anos, que, portanto, a acompanha. Essa realidade é similar à de diversas outras estudantes universitárias. Ocorre que, diferente do que se verificou em outros casos – como o de Eliana Figueredo, em que o professor Alessandre Mendes ajudou a aluna a acalmar o filho que chorava em sala –, Waleska foi impedida de assistir à aula acompanhada de sua filha.
No Brasil, há cerca de 67 milhões de mães, e estima-se que 31% delas sejam solteiras. Ou seja, há um grande número de mulheres que criam seus filhos sem contar com o exercício da paternidade responsável dos pais biológicos das crianças. Isto cria ainda mais embaraços para que a mulher siga seus objetivos livremente, tendo em vista que a organização da sociedade tem em seu éthos uma lógica machista.
Alega-se que a ordem social é imparcial, mas a razão imparcial é a do homem branco, heterossexual e proprietário, de modo que se excluem as particularidades humanas1. As estruturas sociais foram pensadas por e para homens, a lógica por detrás das instituições públicas e privadas é machista, voltada para a manutenção do patriarcado, dos privilégios e do status quo. Tais instituições partem do pressuposto errôneo, que vem sendo cada vez mais questionado, de que a aptidão – e até mesmo o desejo – natural das mulheres é cuidar do lar e dos filhos. Os espaços de trabalho, de estudo, os órgãos estatais de decisão, dentre diversas outras esferas, não são pensados para pessoas que engravidam2 e que estão sujeitas à jornada dupla, tripla ou até a mais intensas – e, frequentemente, com salários menores ou sem salário, no caso do trabalho doméstico. Diante disso, devemos questionar constantemente a razão que governa os lugares que ocupamos para que, para além de pararmos de agir de modo a perpetuar essa lógica excludente, possamos atuar de forma a garantir a todas e todos o igual acesso e as adaptações necessárias de acordo com suas condições particulares.
Nesse sentido, o direito à igualdade vai muito além de assegurar a previsão formal de oportunidades e de acesso a todos. Tal direito tem também sua dimensão material, que exige, de acordo com a clássica fórmula aristotélica, que os desiguais sejam tratados desigualmente na medida de suas desigualdades. Vale dizer, em virtude da diversidade entre as pessoas, que são inexpugnáveis da natureza humana, é preciso adotar medidas que garantam a todos tratamento consentâneo com sua condição. É o caso, por exemplo, das cotas raciais para ingresso nas universidades, criadas para minimizar as consequências de uma estrutura social racista e elitista e garantir acesso à educação de qualidade a negros e pobres, que, em geral, não têm acesso a uma educação básica satisfatória.
Uma das formas de garantir a igualdade material para mães estudantes que não tem com quem deixar seus filhos durante as aulas é a creche da própria instituição ou o auxílio creche. No caso da UFRN, este auxílio é de R$ 100,00 (cem reais), atende a 120 pessoas atualmente e o edital para se candidatar é anual. Contudo, não são todas as universidades que dispõem de creche ou de auxílio para pessoas com filhos, de forma que a única saída para elas pode ser levar seus filhos consigo. No caso de Waleska, felizmente, uma creche da região se sensibilizou com a situação e ofereceu bolsa integral para a criança ficar durante o período de aulas da mãe. Essa, contudo, não é a solução encontrada por todas as pessoas em circunstância similar. Além disso, cabe unicamente à Waleska decidir se colocará sua filha na creche ou se decidirá continuar levando sua filha para as aulas, o que, entendemos, é um direito seu.
Ademais, a educação é mecanismo de empoderamento3. Através dela, nos tornamos sujeitos com maior capacidade de raciocínio, de sopesamento das escolhas e, consequentemente, mais autônomos4. A educação, como dispõe o artigo 205 da Constituição Federal, é “direito de todos e dever do Estado e da família”. Não cabe a ninguém criar embaraços ou ignorar problemas estruturais que impedem o pleno acesso à instrução. Pelo contrário, ainda segundo o dispositivo constitucional, a sociedade deve colaborar com a promoção e o incentivo à educação.
Impedir que uma mãe que não tem outra alternativa se não levar seu filho consigo de assistir uma aula em uma universidade pública é uma atitude que contribui com a perpetuação da lógica machista e diminui ainda mais as possibilidades da mulher de ascender profissionalmente. Como salienta Flávia Biroli, “[q]uanto menores são os recursos e os mecanismos públicos para apoiar indivíduos e famílias na tarefa de cuidar dos dependentes, maior é o impacto da dedicação a essa tarefa no exercício de outras atividades, sobretudo daquelas remuneradas, e na construção de carreiras profissionais”5. Assim, é imprescindível garantir a mulheres e a indivíduos responsáveis por cuidar de seus filhos o acesso igualitário à educação formal e a outras formas de profissionalização. Essa é apenas uma das posturas que devemos adotar diariamente para combater as desigualdades estruturais e a lógica patriarcal excludente.
*Renan Medeiros de Oliveira é Mestrando em Direito Público e Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pós-graduando em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Pesquisador no Centro de Justiça e Sociedade da Fundação Getulio Vargas (CJUS/FGV) e na Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ – Clínica UERJ Direitos. Pesquisador Permanente do Laboratório de Regulação Econômica da UERJ – UERJ Reg.
Referências
1- YOUNG, Iris Marion. O ideal da imparcialidade e o público cívico. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 9, p. 169-203, set./dez. 2012.
2- OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 16, n. 2, pp. 314 3 320, mai./ago. 2008.
3-Cabe destacar que apenas o acesso à educação formal não é suficiente para combater a desigualdade, já que, no Brasil, as pesquisas indicam que as mulheres, por mais que trabalhem mais horas do que os homens e, em alguns casos, tenham nível de escolaridade mais elevado, continuam a receber menos. Assim, é necessário proceder a uma redistribuição, no sentido dos ensinamentos de Nancy Fraser. Cf. FRASER, Nancy. From redistribution to recognition? Dilemmas of justice in a “postsocialist” age. New Left Review, n. 212, p. 68-93, jul./ago. 1995.
4 – Cf. XIMENES, Julia Maurmann. A mulher e o direito à educação: instrumento de promoção da igualdade material. In: FERRAZ, Carolina Valença et al. (Coords.). Manual dos direitos da mulher. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 131-149.
5- BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e Política: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 122. A autora ainda destaca que “[a] privatização das relações de cuidado e dependência oculta seu impacto diferenciado na vida de mulheres e homens – as primeiras são tipicamente prejudicadas por estar na posição de cuidar dos mais vulneráveis, em atividades não remuneradas ou mal remuneradas. Impede, ainda, a tematização adequada das conexões entre dependência e desigualdades”. BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Op. cit., p. 121.