Educação virou balcão de negócios com orientação do Banco Mundial
Educação deixou de ser direito humano e obrigação do Estado para ser negócio com objetivo de lucro. Esse novo mercado de educação básica, segundo o estudo da revista Época Negócios, “movimenta cerca de R$ 67 bilhões por ano, valor que ultrapassa a renda líquida do ensino superior, de R$ 55 bilhões”.
Por Paulo Cannabrava Filho*
Publicado 02/03/2018 12:44
O processo de concentração coloca o ensino em mãos de grandes corporações com ações em bolsa, ou seja, com a obrigação de remunerar os investidores. É assustador o avanço do capital sobre o ensino que deveria ser universal e gratuito, como está na Constituição.
Antecedentes
Na República Velha, a taxa de analfabetismo no Brasil rondava os 80% da população e só os filhos dos ricos tinham acesso às escolas, pois praticamente não havia oferta de ensino público. Foi a Revolução de 1930 que realmente promoveu uma revolução educacional.
Orientado pelo Conselho Nacional de Educação, integrado por educadores como Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, o Ministro da Educação de Getúlio Vargas, Gustavo Capanema, semeou o país de escolas: Grupos Escolares para o primeiro grau, colégios para o segundo e terceiro graus (ginásio, científico ou clássico), as escolas técnicas e as universidades federais. Não foi uma brincadeira. Só em São Paulo, foram construídas, equipadas e postas pra funcionar mais de mil escolas.
Foi essa revolução cultural que deu condições para o plano de desenvolvimento e industrialização do país. E o país se industrializou e manteve taxas de desenvolvimento das mas altas do mundo por quase 30 anos.
Coloco à reflexão esses fatos porque a revista Época Econômica traz um artigo sobre o novo livro de Tim O’Reillly, “TF – What’s the Future and Why It’s Up to Us” (Que futuro é esse e por que ele depende de nós, em tradução livre) no qual ele conta que o mesmo processo aconteceu nos Estados Unidos.
O futurólogo nascido na Irlanda e criado em San Francisco, agora “o oráculo do Vale do Silício, diz que a educação primária universal foi um dos melhores investimentos do século 19, e a educação secundária universal, do 20. Esquecemos de que em 1910 somente 9% das crianças estadunidenses se formavam no curso secundário. Em 1935, esse número tinha subido para 60% e em 1970 chegava a quase 80%”.
As dramáticas consequências
Veja a diferença. Os EUA correram em matéria de educação e mantiveram o ritmo até hoje. O Brasil retrocedeu. As escolas públicas de excelência já não o são em todos os níveis, salvo algumas universidades. Os dados do censo escolar são terrificantes. Depois falaremos disso. Hoje, o tema é a ocupação estrangeira. Ficam, porém, registrados alguns dados:
– A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, PNAD Continua do IBGE, revelou que, em 2016, cerca de 66,3 milhões de pessoas de 25 anos ou mais de idade (51% da população adulta) tinham concluído apenas o ensino fundamental.
– Menos de 20 milhões (15% dessa população) tinham concluído o ensino superior e, entre os pretos ou pardos, só 8.8% tinham nível superior, enquanto o percentual dos brancos era de 22,2%. No superior completo, as mulheres eram a maioria com 16,9% e os homens, 13,5%.
– Segundo o PNAD, das 10,3 milhões de crianças com menos de 4 anos de idade, 75% estão fora da escola, a assustadora cifra de 7,7 milhões. Que futuro está reservado a essas crianças?
– Com as crianças de 4 a 17 anos, a situação melhorou um pouco. A pesquisa mostra que são 2.486.245 de crianças e adolescentes fora da escola, o equivalente a 6% do total de alunos.
– O Censo Escolar da Educação aponta que nos três ciclos da educação básica diminuiu o número de matriculados em 2017: de 48,8 milhões em 2016 para 48.6 milhões em 2017. Onde estão essas meninas e esses meninos?
– Pesquisa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (o INEP do Ministério da Educação) sobre a situação do ensino fundamental, entre 1997 e 2012, revela que as matrículas nas escolas públicas caíram e isso deveria fazer as pessoas pensarem. Nas escolas estaduais, a queda foi de 8,7%, nas municipais, de 8,7%.
– Em São Paulo, o Estado mais rico, com um PIB superior ao da Argentina, segundo a Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade), a rede estadual perdeu 1,8 milhão de alunos entre 2000 e 2014, uma queda de 32,2%: de 5,6 milhões caiu para 3,8 milhões de estudantes. No mesmo período, as matrículas nas escolas privadas cresceram 13,3%, mas não absorveram os que deixaram a escola pública. O que levou ao aumento na escola privada foi a má qualidade do ensino público. Essa mesma pesquisa mostra que só na capital havia 173.815 crianças e adolescentes fora da escola.
– Pesquisa da Ação Educativa, ONG especializada com amplo trabalho de campo, apontou que só 35% das pessoas com ensino médio estão plenamente alfabetizadas. Isso significa que 65% da população nessa faixa é analfabeta funcional. Por outro lado, 38% da população com ensino superior têm nível insuficiente de leitura e escrita. Ou seja, saem das universidades com diploma de graduação e são analfabetos funcionais. E há também aqueles que pagam para ter um diploma e sabem nada.
– Nessa mesma época, o Brasil contava com 14 milhões de analfabetos e o Ipea calculava que seriam necessários 22 anos para zerar. Pode um absurdo como esse? A consequência é que 70% da população é considerada analfabeta funcional. Em 1970, oficialmente, o analfabetismo atingia 45% da população, e a deserção escolar, aqueles que não terminam a escola primária, estava em torno de 70%.
A ordem veio do Banco Mundial e do BID
A preocupação com os sistemas de educação pelas metrópoles coloniais é coisa que vem de longe, continuada pelas metrópoles imperialistas e agora aperfeiçoadas para a recolonização não só do Brasil, mas de toda a América Latina. As instruções para como proceder para as aquisições por empresas estrangeiras fora dadas pelo Banco Mundial e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para toda a América Latina.
Um só exemplo. Em 1955, Washington destinou 12,9 milhões de dólares para estender a influência cultural estadunidense às universidades latino-americanas. A primeira experiência foi com a Universidade Católica do Chile, que firmou um convênio com a Universidade de Chicago.
Como no Chile havia muita influência dos intelectuais Raul Prebish e Celso Furtado, os mentores do estruturalismo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), havia a necessidade de iniciar uma contraofensiva monetarista.
Nessas escolas não se falava de política. Aproveitavam o deslumbramento dos mentalmente subdesenvolvidos diante das maravilhas da sociedade de consumo e das guerras. Formavam técnicos para servirem aos interesses do império. Mais de 20 chilenos assim formados conduziram as políticas econômicas em diferentes governos. Essa ofensiva resultou no confronto entre ambas as tendências — estruturalistas e monetaristas — em praticamente todos os países.
A polêmica entre as correntes foi candente no Brasil nas décadas de 1950 e 1960. De um lado, Celso Furtado e Santiago Dantas, do outro, Roberto Campos e Roberto Simonsen.
O golpe de 1964 foi contra os estruturalistas mas não acabou com o sonho. Hoje, defendem o desenvolvimento integral estruturalistas como Ladislau Dowbor e Luiz Gonzaga Belluzzo, e do outro lado, os monetaristas de novo tipo, vendidos ao pensamento único, os “chicago’s boys”, os que estão no poder desde a posse de Fernando Henrique Cardoso: Armínio Fraga, Pedro Malan, Gustavo Franco, Pérsio Arida, Francisco Meireles, entre outros.
Os próprios militares deram sequência aos projetos desenvolvimentistas dos estruturalistas, executado principalmente por Ernesto Geisel (1974 – 1979), com o desenvolvimento de projetos estatais de petroquímica, estaleiros, indústria metalúrgica pesada, geração e distribuição de energia elétrica, enfim, o necessário para continuar o projeto de industrialização.
Ao mesmo tempo, houve uma grande abertura para entrada de capital e indústrias de propriedade estrangeira. Estas ocuparam o setor mais dinâmico da economia, ou seja, aquele investimento em produção com retorno mais rápido do capital: indústrias, químicas, farmacêutica, material de higiene e toucador, alimentícia, automobilística, etc.
Em síntese, o governo militar criou a infraestrutura necessária para o desenvolvimento industrial mas, em vez de favorecer a indústria e o capitalista nacional, abriu as portas para as transnacionais, que acabaram por se impor hegemonicamente. Como já dissemos repetidas vezes, lembrando o livro de Renée Dreiffus, 1964 não foi um simples golpe de estado, foi a captura do Estado pelas transnacionais e todo o aparato imperial que elas representam.
Com a evolução da doutrina neoliberal, a partir, principalmente, dos anos 1980, chegamos ao pensamento único imposto pelo capital financeiro, que não é nem estruturalista nem monetarista. Quem manda agora é o Cassino Global.
Nesta nova etapa, estão acelerando a desestatização e desnacionalização do setor de produção e infraestrutura. O que vendem por uma bagatela não são meras empresas estatais, são mais de 50 anos de investimento em formação de engenheiros e técnicos, pesquisa e desenvolvimento que resultaram em gigantescas obras de geração e distribuição de energia, e as indústrias de base, empresas como a Petrobras. Esse processo abordaremos num outro capítulo.
Para estar na moda, as escolas têm que formar gente com espírito empreendedor. Não precisa ser um intelectual para isso. A tal ponto chegou essa nova pedagogia, que um diretor de uma dessas escolas de excelência nos EUA, disse que é melhor para os jovens “abandonarem as universidades e se dedicarem a resolverem seus problemas”.
Foi se impondo o “deus mercado”. “O mercado sabe”.