RJ: Moradores das favelas olham intervenção militar com temor e dúvida
Exército é criticado por revistar mochilas de crianças e tirar fotos de moradores e seus documentos. Acostumados com truculência da PM, muitos elogiam abordagem, mas dizem que de nada adiantará.
Por Felipe Betim
Publicado 25/02/2018 14:48
São onze da manhã, uma sexta-feira que deveria ser como outra qualquer na Vila Kennedy. Um barbeiro na calçada faz tranquilamente a barba de um homem. Jovens com uniformes de escola e trabalhadores de bicicleta passam pela rua. Aposentados bebem cerveja e jogam sinuca. Mas o exército avança lentamente com seus fuzis, tanques e jipes pelas largas ruas dessa comunidade do Rio de Janeiro. Mães com filhos em volta observam curiosas da porta de casa. Algumas crianças chegam a acenar. Na porta de um comércio de esquina, quatro amigos conversam. Entre eles está Wellington, um rapaz negro de 33 anos. "Enquanto eles não tirarem meu direito e ir vir, está tudo certo. O Exército não tem vínculo com a comunidade, então pode ser melhor que a polícia. Mas isso aqui não vai dar certo não", comenta, enquanto uma escavadeira das Forças Armadas retiram blocos de ferro e concreto presos no chão. Serviam de barricadas, instaladas ali por traficantes de drogas que dominam a comunidade, para impedir o avanço da polícia.
Apesar das tropas ainda estarem oficialmente agindo dentro do decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), em vigor desde julho passado, a intervenção federal decretada pelo presidente Michel Temer (PMDB) já é uma realidade para Wellington e outros moradores de favelas do Rio. Além da Vila Kennedy, 3.200 homens e mulheres das Forças Armadas e da Polícia Civil também estiveram nas vizinhas Vila Aliança e Coreia nesta sexta. O saldo foi de 27 pessoas detidas. Na terça estiveram na comunidade Kelson (Zona Norte), onde detiveram quatro, e em rodovias. Já outras favelas, como o Complexo da Maré e o Dona Marta, viveram tiroteios entre policiais e traficantes. A crise de segurança, que resultou na morte de 6.731 pessoas no ano passado do Rio — uma taxa de 40 mortes por 100.000 habitantes — segue em pleno vapor.
Se por um lado o Governo Temer pretende com a intervenção federal disfarçar o fracasso da reforma da Previdência e tentar angariar apoio da sociedade em ano de eleições, por outro disparou o alarme em setores da sociedade. Nas redes sociais, um vídeo que falava sobre quais precauções os negros devem ter durante a intervenção viralizou. A ONG Anistia Internacional, uma das principais defensoras dos direitos humanos no mundo, lançou uma dura mensagem a respeito do decreto. "Acreditamos que é uma medida inadequada e extrema que coloca em risco a vida da população", argumentou Jurema Werneck, diretora-executiva da organização no Brasil, durante a apresentação do relatório anual da organização. Lá estava Glaucia dos Santos, uma moradora do Complexo do Chapadão que perdeu um filho no réveillon de 2014, vítima de violência policial. Ela expôs seus temores: "Mais uma vez o nosso velho estado colocando o povo contra o povo. Se meu filho não tivesse sido assassinado, ele estaria na intervenção. Quem faz a intervenção, os militares, também são jovens da favela. Como ficam esses jovens? Como ficam suas mães?", questionou.
A Vila Kennedy é um bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro que tem ruas largas e casas simples. Foi inaugurado como um conjunto habitacional em 1964 pelo governador Carlos Lacerda para reassentar famílias que viviam em favelas da nobre Zona Sul. Maria chegou nessa época, quando tinha apenas três anos. "No início a gente podia dormir do lado de fora, não tinha essa guerra", lamenta ela. A 40 quilômetros do centro, a comunidade foi abandonada à própria sorte pelo Estado e, ao longo do tempo, foi se favelizando e sendo ocupado pelo crime organizado. "Se for pra entrar aqui e ir embora logo, vai voltar ficar como estava. Isso é enxugar gelo, então é melhor nem entrar".
Em comunidades como a Vila Kennedy, tiroteios entre facções rivais ou com a Polícia Militar (PM) fazem parte da rotina dos moradores. A chegada do exército significou certo alívio para muitos. "Tomara que fiquem aqui e não saiam mais", diz uma mulher enquanto compra comida para os cachorros. Diante da loja há três homens do exército e a vendedora diz que "podiam estar ali sempre". Os "moleques", diz ela, "estavam muito folgados, andando com armas pelas ruas". Existe um desejo de ordem e paz para que os menores possam crescer, mas todas pessoas com quem o EL PAÍS conversou estão, ao mesmo tempo, desconfiados, céticos e com medo sobre o que pode vir depois da intervenção. Sabem que as soluções mágicas apresentadas por sucessivos governos nunca funcionam a longo prazo. A última delas, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), carro-chefe do Governo de Sérgio Cabral — hoje preso e condenado em vários processos por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e organização criminosa — fracassou. Acreditam que é necessário algo mais que além da simples repressão contra os traficantes. E temem que a violência do Estado acabe também afetando a vida dos moradores sem ligação com o crime. Algo que já costuma acontecer.
"Eu tenho mais medo dos PMs do que dos traficantes. Eles julgam pela aparência, já os traficantes sabem quem é morador e quem não é. Outro dia eu tava passando pela noite e os policiais me perguntaram 'tá indo pra onde?'. Eu disse que tava indo para casa, mas pegaram minha mochila e jogaram os bagulho no chão", conta Wellington. "Na minha casa não entra ninguém porque eu bato de frente e sei dos meus direitos. Tem mandado judicial?", acrescenta. O rapaz pondera que que os agentes ganham mal e arriscam sua vida. Matam muito, mas também morrem muitos deles. Ele entende que muitos deles acabem tendo seus esquemas corruptos com traficantes e trabalhem sob pressão. Ao seu lado, um mototaxista de 28 anos conta o que aconteceu com ele há dois dias. "Dois dias atrás, durante uma operação, falaram que minha casa era suspeita e entraram. Só estava minha esposa em casa. Revistaram ela todinha, jogaram roupa no chão e fizeram uma bagunça imensa. E no final ainda falaram pra ela arrumar", conta. "São muitos despreparados, só porque que é favela acham que todo mundo é bandido. Acha que em Copacabana fazem igual?", questiona.
Vinícius, de 22 anos, está acostumado a passar pelo mesmo tipo de tratamento. "A PM já chega metendo o pé na porta mesmo, abuso de poder totalmente. Entrar na minha casa é normal, to acostumado já com isso. Hoje mesmo, antes da operação, chegaram dando tapa na cabeça, colocando saco plástico", conta o rapaz, que trabalha vendendo esfirra em Santa Cruz. "Me jogaram pra lá, me jogaram pra cá, quando fui ver senti falar dele. E quando fui ver, um celular velho tinha sumido. Acham que só porque moro na favela sou vagabundo".
Quando o EL PAÍS chegou a sua casa, cinco homens das Forças Armadas estavam fazendo perguntas. Ele, descalço e só vestindo uma bermuda, respondia tudo e apresentava seus documentos. Em determinado momento, um soldado tirou uma foto de seu rosto e de seu RG com o celular, um procedimento que o Exército estava fazendo de modo sistemático com outros moradores. Ativistas, organizações de Direitos Humanos, a Defensoria Pública e a OAB-RJ fizeram duras críticas ao procedimento de "fichar" os moradores. Já o Comando Militar do Leste assegurou que o procedimento é legal e tem a "finalidade de agilizar a checagem de dados junto aos bancos de dados da Secretaria de segurança". O organismo disse ainda que a foto "é deletada" após ser enviada ao sistema da Polícia Civil.
Se comparados com a PM, tanto os soldados como os agentes da Polícia Civil são "tranquilões", diz Vinícius. Sua vizinha clara concorda. "A abordagem do exército foi bem mais educada. Mas daqui a pouco eles vão sair e volta tudo ao normal. A gente vive do portão pra dentro, porque é sempre tiroteio", diz ela.
Razão não lhe falta a Clara. Dias antes, na última terça-feira, as Forças Armadas fizeram uma operação similar na Favela Kelson's, na Zona Norte do Rio. Também foram duramente criticados por revistar as mochilas de meninos e meninas de que iam para a escola. Dois dias depois, na quinta, o EL PAÍS esteve na comunidade para ver o que havia acontecido após a operação. Apesar de que ao lado está uma área militar, não havia nem polícia nem exército nas ruas. Meninos de entre 12 e 15 anos com bermudas e sem camisa andavam pelas ruas mostrando pistolas. As barricadas foram destruídas durante, mas todo o resto segue igual. O posto de saúde continuava sem funcionar — há três meses está fechado — e os moradores precisam andar 40 minutos até outro para, com sorte, serem atendidos. Os funcionários dos Correios já não entram "porque têm medo", segundo explicou a Associação de Moradores. Ao menos as obras da Prefeitura para asfaltar a rua principal também continuam, as lojas seguem abertas, crianças brincam pela rua… O ambiente, apesar de tudo, é de silêncio e de uma tensa paz. "Aqui eu me sou bem com todo mundo. Com polícia, com soldado, com capitão, com traficante… Não tenho problema com ninguém. Eu cuido da minha vida, aqui é cada um no seu quadrado", diz uma sorridente senhora que toma cerveja na calçada. No entanto, soube-se depois através da imprensa que, naquela mesma quinta, uma senhora foi torturada por traficantes por supostamente ter dado informações para a Polícia. O tráfico também oprime.
O que fazer então? "Não tem que resolver só a parte de violência, tem que resolver o social. Tem que dar escola e saúde boas pra criançada. Mas aí eles vem só pra reprimir morador…", opina um vizinho que não quer se identificar. Na Vila Kennedy, Davi diz o mesmo: "Falta trabalho, saúde, educação… Não adianta nada, daqui a pouco eles vão embora e tem barricada de novo, carro roubado de novo. Se depois do exército trouxessem projeto social, cultura, esporte para as crianças…".
Wellington, o rapaz que conversa com seus amigos enquanto os militares destroem barricadas na Vila Kennedy, fala sobre suas mágoas. "Uma coisa que me revolta é que eu, que sou trabalhador, não tenho valor nenhum pro governo. To valendo só 900 reais acordando 5 horas da manhã pra pegar o ônibus lotado. Se eu tiver pagando imposto e INSS em dia e tomo tiro na cabeça, vai ser difícil pra caralho conseguir o que tenho direito. E se eu morro, o que meus filhos vão ganhar? Porra nenhuma", desabafa o homem, que trabalha com construção civil no centro da cidade. Nos últimos meses passou para o turno da noite e fica fora de casa na madrugada. "Com essa operação, tenho medo de sair para trabalhar e que eles metam o pé na porta e assustem minha esposa, que tá no oitavo mês de gravidez". E insiste: "Não vai funcionar, com certeza tem alguém por trás disso ganhando dinheiro. O Bezerra da Silva era um profeta quando dizia que 'Se gritar pega ladrão, não fica um meu irmão. Suas letras são um tapa na cara da sociedade". Coincidentemente, o sambista teria completado 91 anos no mesmo dia da operação na Vila Kennedy.