A família Marinho, seu apreço aos militares e à intervenção no Rio
Um ditado popular bem conhecido por aqui é “nunca cuspa no prato que você comeu”. Digamos que ele é uma maneira bem tosca de dizer que é preciso sempre manter a gratidão para os que te ajudaram. Nos dez mandamentos da Família Marinho, este talvez seja o número 1.
Por Renata Mielli*
Publicado 21/02/2018 18:03
As organizações Globo cresceram de mãos dadas com a ditatura militar. Ela serviu ao projeto de unificação nacional promovido pelos generais do Brasil grande. Foi a correia de transmissão e legitimação do poder autoritário e se beneficiou disso.
Representante genuína da elite política e econômica, a Família Marinho nunca vacilou em se posicionar na cena política alinhada a estes interesses, que na esmagadora maioria das vezes não é o interesse da população e nem do país. Democracia, liberdade, direitos sociais, distribuição de renda, soberania, não são objetivos que constem dos dez mandamentos da Globo e nem da elite nacional.
Então, não é de se espantar o apoio da Família à intervenção militar no Rio de Janeiro, manifesto em editorial do jornal O Globo – o porta-voz oficial dos Marinho – nesta terça-feira (20/02/2018): Intervenção é oportunidade para sanear instituições. “Sanear essas instituições [polícia militar, civil, e segurança pública] é fundamental para que as ações coordenadas entre as forças federais e as polícias do estado possam surtir efeito, o que não vinha acontecendo. Mas é preciso que elas sejam duradouras. Operações tópicas, realizadas no varejo, já se mostraram ineficazes. Podem funcionar por algum tempo, mas, quando as forças se retiram, tudo volta a ser como era antes. Portanto, não se pode cometer o mesmo erro”.
Já preparava esta coluna antes de ontem para falar de como a Rede Globo, através de seus telejornais – particularmente o Jornal Nacional – criou um clima de terror que certamente impulsionou a intervenção. O Editorial só veio confirmar o que já estava evidente – a organização que apoiou a ditadura militar, apoia a intervenção militar no Rio de Janeiro.
A história vai mostrar se este apoio foi apenas passivo ou ativo. Infelizmente, sabe-se que, sai presidente, entra presidente (me refiro aos da República mesmo), uma eminência parda tem sido presença constante no Palácio do Planalto (primeiro o pai, Roberto Marinho, agora os filhos). Por isso, não duvido que uma decisão como esta, a de decretar uma intervenção militar na segurança pública do Rio de Janeiro, sede das Organizações Globo, tenha sido tomada sem que os chefões do maior grupo de comunicação do Brasil tenham sido consultados.
Um telejornal focado na violência carioca
Para não suscitar dúvidas, é claro que há uma crise social gravíssima no Rio de Janeiro. Essa crise social, por questões históricas, geográficas e populacionais criou as condições para a consolidação de um sofisticado sistema criminoso. A falência do Estado, a inépcia dos governos, a falta de uma política de segurança pública são um alimento para a violência na capital fluminense. E, esse cenário foi piorado diante de um governo federal que congela gastos por 20 anos e impõe uma agenda de desmonte dos serviços públicos. Vale lembrar que o Rio de Janeiro é uma cidade com forte presença de equipamentos públicos federais (por ter sido até a década de 50 a sede do governo federal). A devassa contra a Petrobras também impacta fortemente a dinâmica da economia no Rio de Janeiro e tudo isso é preciso se avaliar quando se discute os problemas do Rio.
Mas, esta situação de crise social e violência não é, nem nunca foi, exclusiva do Rio de Janeiro. O Brasil possui 27 Estados, em todos eles – e em alguns até mais do que no Rio – os índices de violência são alarmantes. Segundo dados do 11º Anuário de Segurança Pública, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no final de setembro de 2017, o estado do Rio de Janeiro ocupava o 10º lugar no ranking dos estados mais violentos do país (se considerado a taxa de assassinatos por 100 mil habitantes). Em números absolutos, o Rio de Janeiro ocupa a segunda posição, atrás da Bahia. Já, se olharmos apenas para os municípios, a capital carioca não aparece entre as 30 cidades com maior taxa de homicídios no país, segundo Atlas da Violência publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, em 2016.
Mas quem vê o Jornal Nacional pensa exatamente o contrário disso. Para a principal vitrine jornalística do país, a violência praticamente se restringe ao Rio de Janeiro.
Assisti pacientemente a todas as reportagens sobre violência veiculadas pelo JN de 01 de janeiro até 16 de fevereiro de 2018, dia em que o desgoverno Temer decretou a intervenção militar no Rio. Em 41 edições do JN, apenas 8 não abordaram temas relativos à violência e segurança. Das outras 33, dez não trataram de questões envolvendo o Rio de Janeiro. Vale registrar que até 09 de janeiro, uma greve da polícia militar no Rio Grande do Norte mereceu a atenção do noticiário. Outro assunto foi a crise envolvendo os presídios de Goiás no início do ano.
Ou seja, de 41 edições do Jornal Nacional, vinte e três trouxeram reportagens sobre a violência do Rio de Janeiro. Na maioria delas, o tom das matérias eram dramáticos, com uma narrativa que destoa do tratamento dado aos demais casos de violência.
A Globo enquadrou este carnaval carioca como o mais violento dos últimos anos. Apesar dos casos mostrados pelo noticiário da emissora – arrastões na praia e roubos de turistas – não ser diferente do que se passou em outros estados. Nenhuma reportagem da emissora buscou mostrar a violência durante o carnaval em Salvador, Recife, Olinda, São Paulo – isso para citar apenas quatro cidades que tiveram grandes blocos de rua.
Ao escolher o Rio de Janeiro como capital da violência e ocultar da sua cobertura os casos de violência que acontecem no restante do país, a Globo criou uma narrativa de pânico e sublinhou na sua cobertura a falta de ação e comando para enfrentar o “crime organizado” no Rio de Janeiro.
O tom de cobrança de ações efetivas estava subjacente a toda a cobertura. Até desembocar no anúncio da intervenção. No dia 16 de fevereiro, mais da metade do tempo do Jornal foi dedicado ao decreto do Temer. Entre os parlamentares, especialistas e pessoas ouvidas sobre a medida, praticamente todos avalizaram a decisão do governo federal. As considerações e ponderações, quando apareciam, não eram para alertar para os perigos à democracia ou aos direitos das pessoas, mas sim para os limites da intervenção. A única posição contrária, foi a leitura no final da reportagem pela Renata Vasconcelos, em segundos, da posição da ONG Human Rights Watch.
A intervenção militar na segurança pública no Rio de Janeiro pode até não ter – diretamente – o envolvimento da Família Marinho, mas indiretamente certamente o tratamento dispensado pela Rede Globo à cobertura da violência no Rio contribuiu para essa decisão. Que, como já foi amplamente dito, tem graves consequências para a democracia e provavelmente não vai resolver a situação dramática do Rio de Janeiro, que sim, precisa de respostas na área da segurança, mas precisa em primeiro lugar de respostas políticas e econômicas para recuperar o papel do Estado como indutor da econômica, para gerar empregos e renda e reduzir a situação de penúria do povo fluminense.
A Globo demorou exatos 49 anos para fazer o seu “mea culpa” por ter apoiado a ditatura militar. Em editorial publicado no dia 31 de agosto de 2013, o jornal finaliza afirmando que “À luz da História, contudo, não há por que não reconhecer, hoje, explicitamente, que o apoio foi um erro, assim como equivocadas foram outras decisões editoriais do período que decorreram desse desacerto original. A democracia é um valor absoluto. E, quando em risco, ela só pode ser salva por si mesma.”
Ao que parece, precisaram menos de cinco anos para que a Família Marinho mudasse sua opinião e se esquecesse do que escreveu. Ou, talvez, aquele editorial foi apenas uma posição bastante oportuna para o momento político e não revelasse, de fato, a opinião do grupo.
Talvez daqui a 50 anos vejamos outro mea-culpa por ai, isso se as Organizações Globo ainda existirem.